16 de abril de 2008

Urban Gardens

Não foi há muto tempo, nem há pouco. Mas naquele dia escreveu um poema. Não era um poema extraordinário, nem ela era brilhante nisso. Nem o era a tirar fotografias, embora gostasse muito de fotografias. Era contudo extraordinária no gosto que tinha pela vida; passava horas a imaginar formas de tirar da vida o que esta tinha para dar, como um fósforo, que se acende e depois volteia na mão com cautela para permitir que se queimem as duas extremidades. Não, não era uma criadora, apenas buscava o intenso, percorrendo sempre o perímetro exterior do limite do razoável, perseguindo se necessário a própria sombra. Tinha uma lucidez extrema, um gosto apurado e uma infinita capacidade de análise que a esgotavam e consumiam nos repetidos momentos em que se entregava à categorização sistemática das suas observações. Atravessava então, quando o fazia, aquela linha do razoável.
De modo que a poesia constituía por vezes o seu abrigo, senão mesmo o único abrigo que lhe permitia fugir da realidade intensa e dolorosa do mundo. Afligia-a a vitória do bem, o bem tinha de vencer sempre.
Naquele dia escreveu um poema. Fê-lo numa folha de papel colorido arrancada de um bloco de notas com argolas em espiral da Tate Modern que me entregou fazendo-o serpentear entre os pratos, talheres e chávenas dispostos sobre a toalha de linho branco que cobria a mesa da esplanada onde tomavamos o café matinal. Tirou-me uma fotografia enquanto eu lia o que escrevera. Quando terminei, recordo-me que nesse preciso instante senti necessidade de me levantar da mesa contornando-a, e beijei-a porque fui invadido por uma imensa ternura. Abracei-a. E senti então a plenitude da felicidade imensa que no momento me invadiu. Experimentei a mesma sensação há pouco tempo, enquanto contemplava uma pintura de David Alfaro Siqueiros numa galeria em Berlim. Dobrei e guardei o papel colorido como um tesouro que li e reli vezes sem conta nos dias e anos que se seguiram, até que o perdi sem que me conseguisse recordar onde. Já não me lembro do que dizia, chegam-me hoje, apenas, os três primeiros versos:
.
os nossos pensamentos,
nada mais existe para nós
senão este estado exprimível por quatro letras

2 comentários:

Anónimo disse...

A memória é lenta a depurar o essencial. Enleia-nos em redes pquenas e malhas grandes e às vezes a memória é a turbulência das perdas, ou os reencontros que pensávamos não desejar.
Guardamos fragmentos, e quem não os guarda não tem a densidade destas algas agarrados aos pés.
Talvez nos tagam o sabor do mel melancólico,mas também quem ama apenas os seres felizes? É por isso que eu gosto de ti, preciso das tuas palavras para saber que há códigos que não me são estranhos. Neste hospital em que agora estou, também tenho vários papéis no bolso, para não naufragar. T

Anónimo disse...

Também gostava de recordar bons momentos. Mas não tenho o que recordar. Acho que existiram, mas foram apagados juntamente com tudo o resto. Um fardo demasiado pesado para carregar e que serviu apenas para me fazer quem sou hoje. Não sou grande coisa - velha, feia e gorda :), mas sou qualquer coisa.

...

T,
estás mesmo num hospital ou isso é uma maneira de querer dizer qualquer outra coisa?
Desculpa, mas tenho que fazer estas perguntas estúpidas. Vocês nunca dizem nada preto no branco.

Se for mesmo um hospital a sério (daqueles com uma cruz vermelha e tudo), espero que não seja nada de muito sério e desejo-te rápidas melhoras. Vai dando notícias.

Beijinhos