26 de dezembro de 2017

14 de dezembro de 2017

... and love

no tempo dos poemas
no verdeiro tempo dos poemas
tudo era um poema:
os escritos na areia 
uma concha rolada pela maré
o cheiro da urze
o ranger da areia na maré vaza
a volatilidade dos sentidos

no tempo dos poemas
o sobressalto do amor
confundia-se:
com a irrealidade do horizonte
a morte era uma insignificância
a vida um lugar imenso
as palavras não eram ainda
uma natureza-morta

no tempo dos poemas
a poesia era perigosa
e afetava a latitude das estrelas
as correntes dos mares
o tumulto do universo
Deus não existia
somente a dissipação
da vida




12 de dezembro de 2017

Silêncios




A verdade existe onde não estou
O silêncio não existe 

nem onde o penso
embora às vezes
                          pense o silêncio
oiço-o

imagino-o
               como notas musicais
apagadas


como palavras que se animaram no meu interior

                                                                     e se rasgaram

nesses momentos             raros
o silêncio é uma casa vazia
o silêncio sou eu


Seville revisited 10.000 miles after a solstice

7 de dezembro de 2017

Ondas

Delicioso o ardor desamparado
o baloiço esquecido do tempo
que sopra a vida
onde permanecemos como um navio
a flutuar
sobre o mar

devagar
devagar
devagar

6 de novembro de 2017

uma pequena comoção

sonhei: de novo
soprava o vento
ondulavam as campânulas
sob uma cúpula azul
de onde me chegava
o eco galhofante
das juras do amor
eterno

não oiço: sequer
a tua fina voz
translúcida 
um espectro
varando a luz sólida 
do fim de tarde
o grito das gaivotas
clamando o teu nome

levanto-me: hoje 
velho
sonhando com a poesia
dos versos simples 
onde já não cabe 
a alma inquieta
por tudo o que ruía
em meu redor

hoje: comove-me
o futuro
a frescura da água
um verso de Rilke
a memória
de um mamilo teu
adormecido
entre os meus dedos

Onde estou?
Onde estava?
não desperto de nenhum sonho
somente acordo
cicatrizo: a luz
o amor acaba
às colheradas
como um frasco de mokambo.

10 de outubro de 2017

Dia 1+9/10 ou o dia "0" para a Catalunha



Hoje Puidgemont pode declarar a independência unilateral da Catalunha. Hoje, isso pode não significar nada ou pode significar tudo. A ideia é perigosa e contundente pois, isolada e de costas voltadas para a Europa, a aventura tem tudo para falhar (a França e a Espanha não reconhecerão a Catalunha como estado independente e outros se lhe seguirão). Economicamente, pode ser um desastre, como atestam as recentes decisões de alteração de sede de grandes empresas com sede na província. E no entanto, não deixamos de dever à Catalunha alguma da nossa soberania conquistada em 1640, quanto mais não seja porque nos divide uma histórica questão fronteiriça com Espanha.

Na Europa do Séc. XXI os separatismos são vistos de soslaio porque colocam em causa a ideia da construção e da unificação europeia e nessa medida a separação de um estado-membro é uma rotura com a própria UE. Vão longe os tempos em que as aventuras independentistas e a redefinição das fronteiras europeias era uma aventura aceitável. Hoje, a união parece um valor intangível e portanto o romantismo da ideia separatista da Catalunha estará condenada ao fracasso, ainda que com um custo que pode ser elevado para as partes.

Ecoam longínquas as palavras de Oscar Wilde: "an idea that is not dangerous is unworthy of being called an idea at all". Parece um contrasenso pensar que a ideia de Europa está em risco hoje, independentemente do que suceder na Catalunha, mas não deixa de ser significativo pensarmos que o critério europeu tem variado ao longo dos tempos, como atesta a distância de posições entre o tempo em que se discutiam os separatismos nos balcãs e a forma como estes são entendidos hoje. 

A história ensina-nos que os movimentos independentistas acabam por triunfar. Por mais argumentos legalistas que se esgrimam, não raras vezes as independências impõem-se com violação de leis e normalmente da lei suprema, ou seja a lei constitucional. Dessa forma, valem mais os argumentos substantivos que os formais e legalistas, porque é infinitamente mais facil escrever uma nova constituição que estar a discutir alterações à do Estado que preexistente. 

E a UE? Tendo passado por quatro testes de fogo ao longo deste ano, com as eleições holandesas, francesas, alemãs e britânicas (com as italianas no ano que vem), a reinvenção europeia assume prioridade. O discurso otimista de Juncker há dias não disfarçou essa necessidade, quando traçou o caminho dos próximos tempos, até porque o caminho parece-se cada vez mais com uma encruzilhada onde temos de optar e cada opção nos fará perder sempre qualquer fragmento identitário, maxime a própria identidade. Noutro contexto, há tempos escrevia Eric Hanson, ilustrador da New Yorker 

Every time I go somewhere
I leave part of me behind

Mais do que a Catalunha e Espanha, vale mais perguntar Quo Vadis Europa?

2 de outubro de 2017

Poema català

No demano gran cosa:
poder parlar sense estrafer la veu,
caminar sense crosses,
fer l’amor sense haver de demanar permisos,
escriure en un paper sense pautes.
O bé, si sembla massa:
escriure sense haver d’estrafer la veu,
caminar sense pautes,
parlar sense haver de demanar permisos,
fer l’amor sense crosses.
O bé, si sembla massa:
fer l’amor sense haver d’estrafer la veu,
escriure sense crosses,
caminar sense haver de demanar permisos,
poder parlar sense pautes.
O bé, si sembla massa...

Miguel Martí i Pol, (de Vint-i-set poemes en tres temps, 1972)


Não peço grande coisa:
poder falar sem disfarçar a voz,
caminhar sem muletas,
fazer amor sem ter de pedir licença,
escrever num papel sem pautas.
Ou então, se parecer demais:
escrever sem ter de disfarçar a voz,
caminhar sem pautas,
falar sem ter de pedir licença,
fazer amor sem muletas.
Ou então, se parecer demais:
fazer amor sem ter de disfarçar a voz,
escrever sem muletas,
caminhar sem ter de pedir licença,
poder falar sem pautas.
Ou então, se parecer demais...

Sobreviurem? (*)

Ontem a palavra de ordem na Catalunha era "votaran" (votaremos). E assim foi, para muitos, com maior ou menor solenidade, com o formalismo censitário próprio (mas nem sempre assim foi). Rajoy fez o que lhe foi possível para evitar do sufrágio, recorreu à força e à força desproporcionada. Foi ultrapassado pelos acontecimentos e não controlou a guarda. E foi aí que cometeu o seu pecado, porque um Estado que não controla a sua guarda - sobretudo quanto esta não tem o sentido da proporcionalidade - ao tratar pessoas que querem exercer o seu direito de voto pacificamente, ainda que este não esteja autorizado, torna-se um estado perigoso. Talvez Rajoy e o poder em Madrid tivesse tido receio, mas o certo é que ontem, possivelmente, Rajoy perdeu a Catalunha. Os catalães têm ainda muito presente o tempo de Franco e não perdoam a Madrid nenhum excesso como o que se viu ontem.

Independentemente do oportunismo e da irresponsabilidade que possa existir na demanda pela secessão do lado dos independentistas, se Carles Puidgemont avançar com a proclamação da independência unilateral que prometeu ontem, no calor da "sua" vitória referendária, Rajoy não terá outra alternativa ao envio das tropas. Numa Espanha que ainda não se esqueceu da guerra civil e que ainda carrega as suas cicatrizes e rancores, a situação tem todos os ingredientes para se tornar explosiva se o diálogo não se estabelecer. A União Europeia, ainda mal refeita do embaraço do Brexit, tem agora uma frente muito mais urgente para mediar, antes que se perca o controlo.

Ontem ao ouvir "Els Segadores" (os Ceifadores), o hino catalão, ecoaram-me as palavras da letra de "Diguem No", de Raimón, o cantautor valenciano que optou por cantar em catalão:

"agora que estamos juntos
direi o que tu e eu sabemos
e muitas vezes esquecemos

Vimos o medo
ser a lei
Vimos o sangue
-o que apenas faz sangue-
ser a lei do mundo
[...]
vimos ser trancados
na prisão
Homens cheios de razão"


Talvez Rajoy e o Partido Popular não conheçam a letra de "Diguem No" e não se tenham dado ao trabalho de perceber o que está em causa. Talvez a União Europeia já chegue tarde do incêndio catalão, mas pode ser que ainda se evite o pior. A história ensina-nos que os povos sobrevivem a tudo, só não sobrevivem às guerras.
(*) sobreviveremos?

24 de agosto de 2017

Três por cento chegam

Em termos quantitativos, três por cento de qualquer coisa é sempre pouco. É uma infinitésima e insignificante parte de um todo, mas neste caso chega, porque é muito, muito bom. Os Três por Cento são uma banda de Indie Rock formada por Tiago Esteves (Voz, guitarra), Lourenço Cordeiro (Guitarra), Salvador Carvalho (Baixo) e Pedro Pedro (Bateria), que já por cá anda há uma dezena de anos a lançar (bons) originais como é o caso do single "Veludo",  que precedeu o lançamento do último álbum de originais. 

Em Veludo misturam-se cores como se misturam sons, as cores adquirem timbres e os timbres revelam texturas e padrões que se entrelaçam na letra da música com interessantes frases líricas como

Nas águas furtadas do teu amor 
Procuro uma vista de rio
Tu sentes que o mar não sabe 
Amparar quando está frio 

As frases musicais sao igualmente interessantes e debitadas ao ritmo de uma cascata de água a correr. Refira-se que é refrescante constatar que os Três por Cento afastam-se da crescente e polémica interpretação anglofona por parte da nova vaga dos autores portugueses, que Vitorino criticava há pouco (ainda que ele tenha cedido à tentação no jingle que gravou para a Vodafone). 

Os Três por Cento marcam presença no próximo fim de semana no Festival do Crato, precisamente no mesmo dia em que sobem ao palco os Eagles of Death Metal (que se não me falha a memória atuam em Portugal pela primeira vez desde o atentado ao Bataclan em Paris, em cujo palco na altura atuavam).

17 de agosto de 2017

Asas

Feliz
Fecha os teus olhos e sorri
abre os teus ouvidos
e deixa-te embalar pela música
e a saudade dos teus sonhos

Abre as tuas asas entorpecidas

e voa para longe do mar
revolto
em que navegas

Há tardes que findam
nas quais ainda

se me ilumina o olhar
quando te recordo 
a levantar voo da palma da minha mão

onde flutuava o teu coração
e guardavas os teus sonhos

18 de julho de 2017

O Timbre certo


Os canadianos Timber Timbre já por cá andam há algum tempo. Já compuseram muita coisa boa, demasiado boa até. E agora (que é como quem diz, porque foi em abril), à sexta vez, aterra-nos no colo este "Sincerely, Future Pollution", que foi precedido do lançamento do single "Sewer Blues" (isso mesmo, Blues do Esgoto). As músicas sucedem-se numa variação mais ou menos homogénea à volta do mesmo tema e há uma certa atmosfera de vapor e um borbulhar no álbum que nos transporta para outra dimensão


Light a cigarette
Raise the roof above this ruin
As the song repents
Order of the underground
As the sewer runs clear
Stretch your skin in front of me
Unto every other year

Uma mera curiosidade: em Agosto vêm a Paredes de Coura.




10 de julho de 2017

Caminante, no hay camino

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
Se hace el camino al andar.
Al andar se hace el camino,
Y al volver la vista atrás 
Se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

Antonio Machado, Extracto de Proverbios y cantares (XXIX)

21 de junho de 2017

Este verão não era para ter começado assim. Com as labaredas a crepitar na copa dos castanheiros e dos pinheiros, com os pássaros atordoados, com o céu enegrecido, vidas perdidas. Desfeitas. Era suposto ter chegado de mansinho, fazer-se anunciar, com um raio de sol de cada vez, filtrado pelos ramos mais altos das árvores do bosque, o astro-rei recortado nos telhados e nas chaminés, entorpecendo os sentidos dos gatos dormitando nas aldeias, ao mesmo tempo que as cigarras afastavam o silêncio. As andorinhas jovens deixariam sem pressa os seus ninhos e preparar-se-iam para gozar o calor antes da sua primeira viagem de regresso ao local onde nunca tinham estado, mas onde sabiam ter de regressar. O amarelo instalar-se-ia progressivamente nos campos, montes e vales, substituindo suavemente o verde primaveril . Era assim que o verão devia ter chegado. E no entanto, desta vez os cardos mal floriram, as giestas ainda tinham flor, no pinhal os animais jovens ainda não se tinham libertado do leite materno. Hoje, os pássaros foram substituídos pelos drones e o olhar apenas alcança o negrume da terra, do silêncio da falta de vida. O fogo chegou, como no poema de Eugénio de Andrade:

Um dia chega 
de extrema doçura: 
tudo arde 
Arde a luz 
nos vidros da ternura. 
As aves 
no branco 
labirinto da cal. 
As palavras ardem, 
a púrpura das naves. 
O vento, 
onde tenho casa 


Custa a crer que ainda ali existam pessoas agarradas às cinzas, que viram as chamas a passar por cima das suas casas e nelas permaneceram para defender os seus bens, as suas vidas, sozinhas, com um balde de água. As suas vidas, enterradas numa casa, onde prefeririam ficar sepultadas se esse fosse o desígnio do deus em que muitas acreditam. Por vezes assim foi, a casa, a vida, confundidas numa só realidade. O fogo, ainda mal dominado, esse alastrará ao Terreiro do Paço, aos ministérios, à procura de culpados pelo incêndio no paraíso. A chuva desejada chegará tarde demais, mas não deixarão de chover acusações cruzadas com que se entreterão comissões à chegada do outono. Enquanto isso, no Pedrogão Grande, em Castanheira de Pera, na Portela do Fojo, em Góis, na Lousã, em Vilarinho, as gentes procurarão recuperar as suas vidas como puderem, a natureza procurará repor o que perdeu, as ciagarras voltarão a cantar, ainda que a ferida aberta demore muito a cicatrizar.

18 de abril de 2017

Routes de l'esclavage

Jordi Savall, Rotas da Escravatura


De todos os períodos negros da história da humanidade, há um de que pouco se fala, mas que se destaca pelo impacto que teve, tem e que perdura gravado no genoma humano. Em nenhum outro período histórico existiram tantas vítimas, tanta crueldade, com tantas e tão longas consequências para as gerações passadas, presentes e vindouras como durante os cerca de quatrocentos anos que mediaram o ano de 1492 e o de 1888 (ano da abolição da escravatura no Brasil). Nesse perído, vinte e cinco milhões de pessoas foram deportadas das suas aldeias, submetidas à condição de escravo, despojadas de personalidade e sujeitas aos mais ultrajantes tratos nas colónias dos países europeus. Durante esses perído - e nos anos que se lhes seguiram - vinte e cinco milhões de pessoas e os seus descendentes sentiram e sentem o veneno do preconceito racial, do racismo e da discriminação por terem ascendência africana. É o maior genocídio da história da humanidade, que o facto de apenas em 2001 ter sido reconhecido como tal em Durban, aquando da Conferência Mundial contra o Racismo não apaga. É uma história que toca toda a humanidade, sobretudo porque a escravatura ainda persiste nos nossos dias. O preconceito contra o outro continua  a ser uma questão fraturante no momento atual de intolerância generalizada que o mundo atravessa perante o recrudescer dos nacionalismos e a crise do multiculturalismo. A forma como a questão dos refugiados tem sido tratada pelo Ocidente retrata ainda um passado por resolver à luz das modernas concepções que dotam a pessoa humana de uma dignidade longe da que lhe é reconhecida.

Foi perante este cenário que em 1994 a UNESCO lançou o projeto "a Rota da Escravatura" com os objetivos principais de quebrar o silêncio sobre a questão do tráfego negreiro e a escravatura nas mais diversas partes do globo, trazer à luz do dia as criações culturais nascidas ainda assim no seio dessa tragédia e contribuir para o aprofundamento e reflexão sobre o diálogo multicultural.

Uma das formas de libertação do escravo baseava-se na música, que lhe permitia expressar-se, libertar-se, reinterpretar as suas raízes e aproximar-se pela música e pela dança, dos demais escravos de origens tão diversas. As músicas e tradições das suas terras de origem associavam-se assim às duas seus companheiros de infortúnio e muitas vezes às dos seus captores, combinando-se em formas musicais que perduravam através do diálogo musical formas musicais hispânicas, africanas, brasileiras, mexicanas e caribenhas, por vezes com laivos românticos renascentistas e até do próprio barroco.


Foi neste ambiente e para homenagear aqueles vinte e cinco milhões de vítimas que Jordi Savall lançou esta magnífica obra a que diversos artistas de todo o mundo dão voz, num hino à sobrevivência, à liberdade e à esperança. 

Jordi Savall exibiu este trabalho na Gulbenkian, na semana passada.  A Antena 2 dedicou-lhe a programação do Império dos Sentidos do dia 13 de abril, previamente à apresentação do trabalho

29 de março de 2017

Metafísica do amor

Podíamos [sem conseguir]
tentar saber um pouco mais
do amor
e de outras tantas coisas
iguais
como se isso
nos fizesse amar mais
ou mais depressa

Nos fizesse saber mais
da vida
e de tantas outras coisas
desiguais
brilhando difusamente
na face de uma vaga
mar adentro

Amor, amor
Podíamos tentar aceitar
simplesmente
que ao entardecer sucede a noite
e depois a alvorada
num ciclo
igual ou desigual
onde amanhã
é apenas a véspera de outro dia
especial
como tantos outros
[no entanto sem aceitar]

E que importa isso?
se já ninguém morre de amor
ou desamor
ou de falta de (hu) (a) mor
por muito que sacudido, desgraçado, beliscado
como os versos de uma canção
entoada desafinada
com um olhar
apagado...

Amar, amor
quem cantará as tuas glórias
e aspirará o ar dos teus suspiros
o prazer leve
e grave
enquanto dura
até que dura
Amor, amar

A chave da vida
trancada no segredo da memória