10 de abril de 2008

Sobre: o mar é a morte ou o amor incondicional

Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
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Sophia, O Mar
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O avô ainda não era avô. Nem pai, nem marido, nem contramestre. Era apenas uma criança quando a sua mãe morreu e ele deixou de ir à escola. Depressa esqueceu o que tinha aprendido, a caligrafia, os reis de Portugal (o último havia partido poucos anos antes), os rios, as cidades. Começou a trabalhar, primeiro na fábrica de conserva de peixe e depois no mar. Costumava recordar-se da primeira noite no mar, do empurrão do bote para a água gelada, do escuro, do fervilhar do peixe na rede, dos gritos dos homens no cerco, do frio nas mãos e na gola molhada do casaco de lã espessa. Com o passar do tempo, os outros pescadores passaram a ser a sua família e por isso a chegada a terra, já de manhã, significava apenas que iria para uma casa onde se sentia só. Um dia isso mudou. Encontrou a avó. Esta reensinou-o a escrever o nome numa caligrafia tremida e a fazer as contas do pescado. Lia-lhe histórias ao entardecer junto à roseira no lado de fora da cadeia da vila. Casaram na igreja. O avô continuou a ir ao mar. Pedalava todas as manhãs na velha pasteleira cheia de cromados a caminho da praia. A avó tinha medo, mas não deixava que o avô sentisse isso. Assim, todas as manhãs, esperava no areal, junto das outras mulheres, pela chegada dos botes coloridos que a pouco e pouco se iam aproximando da rebentação. Acontecia-lhe por vezes ir de madrugada até perto da costa a ver se distinguia a lanterna do avô no meio das outras que se avistavam ao longe, reluzindo no escuro da faina. Sossegava quando via o mar calmo sob a luz lunar e não pregava olho a noite inteira quando o pressentia revolto. Numa manhã, o bote do avô não regressou, quando o avô e a avó já eram pais de um rapaz. A avó vestiu-se de negro, pôs um lenço na cabeça e desceu à praia. Molhou os pés na água, ela que nunca o fazia, nem sabia sequer nadar.
O avô chegou mais tarde, tinha havido uma avaria no motor e passaram o dia no mar a tentar arranjá-lo. Chegou esgotado, viu-lhe o luto e enfureceu-se: "Eu não morro, entendes? Sobretudo não morro no mar. Eu volto sempre, sempre, para junto de ti. Não quero nem hei-de morrer sem ser ao teu lado e quero morrer antes de ti para não suportar a dor da tua perda. Tu és mais forte que eu, ouviste?" A avó soluçou, deu-lhe um abraço e pediu-lhe desculpa por ter duvidado dele.
O avô cumpriu o prometido. Mesmo quando o motor voltou a avariar, ou quando uma tempestade terrível virou o bote numa ocasião, a avó não desceu à praia. Prendeu o cabelo no alto da cabeça. Mesmo quando lhe trouxeram a notícia do bote que dera à costa, ela limitou-se a dizer que o avô tinha prometido que voltava sempre. Era em Agosto. Dois dias depois o avô voltava. Exausto, mas voltara, tinha sido socorrido por uma embarcação espanhola e por isso demorara mais a regressar. A avó abraçou-o e manteve-se serena. Nunca mais duvidou.
O avô e os outros homens passaram duas semanas a reparar o La Forza del Destino. Quando terminaram, o avô regressou ao mar e a vida continuou.
Quando as embarcações chegavam, o avô, já contramestre, tinha direito à primeira escolha do pescado. Dava-o a amanhar a uma das mulheres e então chamava um rapaz da praia, mandava-o a casa levar o peixe, onde a avó aguardava nas lides e contas domésticas. O filho mais velho ia ocasionalmente à praia com o cão, a ver o loteamento do pescado e o leilão na areia, muito antes da construção da velha lota. Por vezes ainda ia a tempo de assistir à subida dos barcos retardatários pela parelha de burros, com a ajuda de braços dos homens, deslizando-os sobre tábuas de pinho ensebadas colocadas na areia. Isto passou-se anos antes do Manel dos Tractores comprar um Deutz, que veio substituir as parelhas de burros.
O avô almoçava com a família e depois regressava à praia para amanhar as redes danificadas pelo peixe. Levava então a boina de terra e roupa de trabalho, os pés nus para melhor desentrançar a rede. A avó ia mais tarde, com as crianças, à praia, o cesto da merenda numa mão e a sombrinha na outra, a ver o avô trabalhar. Regressava mais cedo para preparar a janta e o farnel da madrugada. Nunca se aproximava da água, o mar metia-lhe medo, sentia-se mais segura em terra. O avô, por sua vez, confiava mais no mar e era naquela língua estreita de areia fina que os seus elementos se encontravam. A avó nunca foi do mar, nem o avô da terra. Eram diferentes, completamente diferentes, mas era nessa diferença que o seu amor se alicerçava.
O avô morreu em casa, na cama de ambos. Já tinham então três netos. Chorou na manhã em que partiu. Apertou, com as forças que lhe restavam, a mão da avó, e partiu serenamente. A avó não chorou. A sua dor imensa não lhe permitia chorar. Tê-lo-à feito na solidão em que a encontrei por vezes, nas ocasiões em que desceu à praia a ver a partida dos barcos, a chegada, o amanhar das redes, ou quando um rapaz da praia lhe trazia o pescado a mando de um antigo rapaz da praia, já pescador.
A avó sobreviveu ainda vinte anos. Já bisavó, foi a enterrar num dia de sol, na campa do avô. Este ano é o do centenário do avô.

9 comentários:

Anónimo disse...

É esta a hora perfeita em que se cala
O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.
...

É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.

Sophia de Mello Breyner

Nada é por acaso. os livros do mar que há tanto tempo cá moram. Gostei da visita da lucy. até da ideia de sermos ET. T

Anónimo disse...

Tão bonito.
Tenho pena. Pena que escrevas assim, pena que sintas assim e a vida te seja agora pequena.

Anónimo disse...

grande homenagem! ele certamente que merece... e bela história de amor também, não obstante o avô não ter podido cumprir a promessa... tão simples! parabéns...aos três!

E. disse...

Nenhuma vida é pequena. O avô cumpriu a promessa, voltou sempre, não morreu no mar. O mar não foi nenhuma morte, mas um amor incondicional.

Anónimo disse...

Encontrou o amor na espuma de uma onda sem sequer gostar de ondas. Esperou sempre que as ondas lhe devolvessem o amor.
Podia sempre confiar na cumplicidade das ondas, na certeza daqueles braços.
Procurou-se na luz, no mar, no vento e encontrou-se sempre no seu amor. O mar é sem dúvida amor incondicional.
Sorte a de quem o encontra, sorte a de quem é amado assim, sorte a de quem consegue viver o amor.
"Mar, amor e poesia até que a morte os separe."

Anónimo disse...

As franjas de encontro e perfeita permuta apesar das diferenças.

Tão simples o amor quando se tem esta noção de que nada de extraordinário é preciso para se sentir o mar oe o incondicional.

Sorte a do avô, construída com a sabedoria tranquila do mar, que as promessas são soretudo pétalas de dádiva em vida. E cumpriu-as todas.
Não gosto de homenagens, mas aproveito para enviar um abraço ao meu avô, pescador de Olhão, que três vezes naufragou, e como mestre de terra cumpriu o que prometeu à minha avó...esperar que ela fosse primeiro porque ele era forte, sobrevivera ao mar, sobreviveria à dor. T

Anónimo disse...

Sem palavras.

Quase que derramei uma lágrima.
Um dia ainda me fazes chorar.

CCF disse...

Muito, muito bonita esta história. Um canto do sul que chegou até aqui via T. Voltarei.
~CC~

E. disse...

Obrigado CC, já tinha passado, com prazer pelo Ardósia. Começo a seguir os blogs da família com muita atenção, porque são um caso sério de escrita. Beijinhos. Está em casa, desculpe se de quando em vez cheirar demais a maresia. Faz parte de mim. Sabe? corre-me nas veias, caí nela quando era pequeno.