Foto AFP
Não me motivam particularmente as fotos ou as reportagens de guerra. Mas reconheço nos fotógrafos de guerra e de catástrofes um mérito e uma incapacidade invulgar de captar num instante todo o dramatismo de um momento que pode ser o último, ou o pós-último, na vida de uma pessoa. Dito isto, as fotografias de Robert Capa na praia de Omaha, ou a do combatente que cai mortalmente atingido diante da objectiva de Capa na guerra civil de Espanha, são ícones máximos dentro do género fotografia de guerra. Estas fotos retratam apenas a faceta dos conflitos, mas outras há que vão mais além e expõem verdadeiramente o mal, a natureza humana, a atrocidade. Não apenas da guerra, mas também da fome, da miséria, do lado diabólico da existência humana. Tais fotos têm a particularidade de chamar a atenção para causas que de outro modo cairiam no esquecimento (e faz parte da natureza humana procurar esquecer, não ver) o inferno em que por vezes se torna a existência de outros. Olhamos muitas vezes para as fotografias que nos chegam, mas não as vemos verdadeiramente, não nos detemos perante elas, não imaginamos por um instante o que encerram.
E estamos a falar da parte visível da fotografia. Porque em cada fotografia há uma parte invisível, mas que esteve lá, que aconteceu. A parte visível é o resultado de um conjunto de factores, de uma convergência de acontecimentos que se sucederam e combinaram para produzir aquele resultado que fica patente. Como linhas (de vida) que se interseccionam entre si, ou paralelamente se estendem ou, ainda, convergem para o centro (como na foto acima). Assim as vidas do atirador e da vítima do disparo, a da trajectória do projéctil em direcção ao corpo, da baioneta que perpendicularmente ao batimento do coração o penetra, rasgando linhas de tecidos num peito. Não há aqui nenhuma beleza, evidentemente, nem isso pode sequer ser discutido. O problema está na vertente ética que está associada a esta questão (fotografar/não fotografar, publicar/não publicar). Porque há uma evidente diferença entre a reportagem de um campo de batalha, onde pouco tempo há para pensar, calcular ângulos, luminosidade, distância e a fotografia de um campo de refugiados onde crianças enfraquecidas morrem de fome e doença, com abutres sobrevoando a paisagem, ou poisando em árvores próximas como aguardando pela sua presa.
Exploração? Horror? A ética do fotógrafo cinge-se ao dever de não interferir, ou deve interferir, alterando o curso da história natural? Em última instância, a presença da câmara em si provoca a alteração dos acontecimentos? O sul-africano Kevin Carter fez fotografias em vários teatros africanos, desde o Darfur, à Somália, passando pela Libéria, Uganda, Ruanda... É dele a fotografia do abutre poisado a escassos metros de uma criança cujos pais morreram e, abandonada, se arrasta para fora de uma aldeia em África no limite das suas forças O abutre aguarda pacientemente, no solo, pela morte da criança. Outra foto famosa de Carter: num dos conflitos entre facções sul-africanas, era costume amarrar os prisioneiros, colocar-lhes um pneu no pescoço e deitar fogo a este. Carter tirou uma fotografia destas, uma das últimas, porquanto teve consciência que essa foto pode ter sido tirada apenas porque a presença da objectiva pode ter estimulado os carrascos para a matança. Carter não teve a certeza, mas a incerteza atirou-o para uma depressão que, cumulada com um divórcio e dívidas, o levaram ao suicídio.
Esta a terceira parte da equação das fotos de guerra. O fotógrafo não é imune ao que se passa diante, nem fora do campo de visão da objectiva. Mais do que a ética, existe uma sensibilidade humana que fica alterada (violentada?) pela captação da imagem. Diz-se que Picasso fotografou ou recolheu fotos de Guernica (embora não tenha lá estado durante o conflito) e que essas fotos o inspiraram e levaram a pintar o quadro do mesmo nome. O certo é que no espólio do pintor foram encontradas diversas fotografias, mas nestas não existiam pessoas, apenas objectos e paredes destruídas, ou semi-destruídas, fotografias de fotografias de pessoas que podiam ter desaparecido na sequência ou em virtude do conflito.
Na foto acima, tirada há poucos dias por um correspondente da France-Press em Gaza, existe uma perfeita convergência de linhas em direcção ao orifício no centro da fotografia, motivada pelo impacto de um projéctil (isto pode ser melhor constatado se se clicar na foto, porquanto tem boa definição). Através do orifício vislumbra-se um rosto humano, como que um alvo, porventura no mesmo local onde outro ser humano pode ter sido anteriormente abatido. O fotógrafo está no lugar de um eventual atirador, uma vida depende do gesto de pressionar o "gatilho". Os buracos de balas na parede intensificam o dramatismo, a parede atrás do rosto humano, em tijolo nú acentua a precariedade da habitação dado o facto de estarmos perante o cenário de um teatro de guerra, numa das zonas mais conflituosas do mundo.
E estamos a falar da parte visível da fotografia. Porque em cada fotografia há uma parte invisível, mas que esteve lá, que aconteceu. A parte visível é o resultado de um conjunto de factores, de uma convergência de acontecimentos que se sucederam e combinaram para produzir aquele resultado que fica patente. Como linhas (de vida) que se interseccionam entre si, ou paralelamente se estendem ou, ainda, convergem para o centro (como na foto acima). Assim as vidas do atirador e da vítima do disparo, a da trajectória do projéctil em direcção ao corpo, da baioneta que perpendicularmente ao batimento do coração o penetra, rasgando linhas de tecidos num peito. Não há aqui nenhuma beleza, evidentemente, nem isso pode sequer ser discutido. O problema está na vertente ética que está associada a esta questão (fotografar/não fotografar, publicar/não publicar). Porque há uma evidente diferença entre a reportagem de um campo de batalha, onde pouco tempo há para pensar, calcular ângulos, luminosidade, distância e a fotografia de um campo de refugiados onde crianças enfraquecidas morrem de fome e doença, com abutres sobrevoando a paisagem, ou poisando em árvores próximas como aguardando pela sua presa.
Exploração? Horror? A ética do fotógrafo cinge-se ao dever de não interferir, ou deve interferir, alterando o curso da história natural? Em última instância, a presença da câmara em si provoca a alteração dos acontecimentos? O sul-africano Kevin Carter fez fotografias em vários teatros africanos, desde o Darfur, à Somália, passando pela Libéria, Uganda, Ruanda... É dele a fotografia do abutre poisado a escassos metros de uma criança cujos pais morreram e, abandonada, se arrasta para fora de uma aldeia em África no limite das suas forças O abutre aguarda pacientemente, no solo, pela morte da criança. Outra foto famosa de Carter: num dos conflitos entre facções sul-africanas, era costume amarrar os prisioneiros, colocar-lhes um pneu no pescoço e deitar fogo a este. Carter tirou uma fotografia destas, uma das últimas, porquanto teve consciência que essa foto pode ter sido tirada apenas porque a presença da objectiva pode ter estimulado os carrascos para a matança. Carter não teve a certeza, mas a incerteza atirou-o para uma depressão que, cumulada com um divórcio e dívidas, o levaram ao suicídio.
Esta a terceira parte da equação das fotos de guerra. O fotógrafo não é imune ao que se passa diante, nem fora do campo de visão da objectiva. Mais do que a ética, existe uma sensibilidade humana que fica alterada (violentada?) pela captação da imagem. Diz-se que Picasso fotografou ou recolheu fotos de Guernica (embora não tenha lá estado durante o conflito) e que essas fotos o inspiraram e levaram a pintar o quadro do mesmo nome. O certo é que no espólio do pintor foram encontradas diversas fotografias, mas nestas não existiam pessoas, apenas objectos e paredes destruídas, ou semi-destruídas, fotografias de fotografias de pessoas que podiam ter desaparecido na sequência ou em virtude do conflito.
Na foto acima, tirada há poucos dias por um correspondente da France-Press em Gaza, existe uma perfeita convergência de linhas em direcção ao orifício no centro da fotografia, motivada pelo impacto de um projéctil (isto pode ser melhor constatado se se clicar na foto, porquanto tem boa definição). Através do orifício vislumbra-se um rosto humano, como que um alvo, porventura no mesmo local onde outro ser humano pode ter sido anteriormente abatido. O fotógrafo está no lugar de um eventual atirador, uma vida depende do gesto de pressionar o "gatilho". Os buracos de balas na parede intensificam o dramatismo, a parede atrás do rosto humano, em tijolo nú acentua a precariedade da habitação dado o facto de estarmos perante o cenário de um teatro de guerra, numa das zonas mais conflituosas do mundo.
3 comentários:
Memória do Líbano 14/08/2006
Ninguém tem o lençol
Em branco
A pagina limpa
O sonho brando
Alguém já atirou para
A sombra do irmão
Já mordeu a mão
Que afagou
Há uma culpa em combustão
levando à perda do filtro e senti
a fúria que tapa o sol
E mata o tempo
Eu, perdida entre a geração
Que viu morrer e
A que matou, sem palvras de calmaria, sem lágrimas.
Foram as noites do silêncio denso
entre iguais. As noites de balas entre iguais, e o sabor da boca que me beijou ao morrer, porque nada sobrava de imortal. T
Um dilema de facto! No entanto, o horror fotografado traz-nos talvez a consciência da sua existência e isso é bom. Mas ao mesmo tempo o perigo da banalização desse horror é também grande. Entre as muitas portas de entrada para esta questão, recomendo-te "Oriente Próximo", de Alexandra Lucas Coelho. Gostei muito e ofereci a T.
~CC~
ccf (ou ardósia azul?), a T. falou-me muito bem desse livro e confesso a minha curiosidade. Na próxima passagem pela livraria adopto-o. Fica a promessa.
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