23 de abril de 2008

Rebentação

Xavier escolheu um livro ao acaso de entre os muitos que resgatara da sua vida passada. Enquanto o folheava, de dentro caiu uma página rasgada rabiscada e amarelecida pelo tempo. Abaixou-se para a apanhar do chão e leu-a, decifrando a custo a sua própria caligrafia:
.
Uma noite passada em vigília
uma longa noite
povoada de sorrisos lindos
reflectidos nas estrelas
desagua, ao amanhecer, num oceano oco
pleno de certezas mortas,
cachos de ondas rebentando contra um sólido dique
construído do lado errado do mar.
.
Tentou, em vão, recordar-se em que circunstância escrevera aquelas palavras. O fogo crepitava na lareira recentemente estreada. Abriu a janela de par em par, mas apenas o vento do Norte soprava e uma corrente de ar fê-lo tornar a fechá-la. Guardou o retalho de papel dentro do livro que conservava na mão e atirou-o para o fogo, deitando-se no sofá sem olhar para trás. O cheiro do papel queimado inundou o compartimento, pareceu querer reclamar uma parte das suas memórias, mas por fim sucumbiu ao aroma do azinho. Xavier fechou os olhos e pouco depois adormeceu profundamente.

4 comentários:

Anónimo disse...

Como os diques do lado errado podem fazer perigar sorrisos perfeitos,
nunca saberemos comos os malmequeres trazem as petalas descaídas para pintarem os nossos dorsos, e adensamos os nossos laços com noites demasiado sôfregas, grávidas de certezas ténues, perdemo-nos, não nos lemos nos silêncios sem crespúsculos.
Deveríamos acreditar nos láios
vermellhos das papoilas, ainda que
tão ténues. T

Anónimo disse...

Tenho tantas noites assim.
Mas as minhas desaguam em enormes dores de cabeça e num esforço sobrehumano para aguentar as tão intensas manhãs ("pronto... lá vem ela estragar a poesia", pensa ele)

Tenho saudades E.
Não me cruzo com ele há 2 semanas. "Cruzar" - o único prazer que tenho. E irá passar mais 1 semana até haver uma próxima possibilidade de isso acontecer.

Hoje ia perguntar-te como lidas com a saudade. Mas acabei de ler o blog de uma rapariguita que diz uma coisa linda:
"De tanto que te sonhei, que comecei (...) a existir contigo".

Anónimo disse...

Para a querida Lucy, era mesmo um hospital com cruz vermelha, ausência de água quente e toalhas, papa fria de fruta cerelac e outros atropelos a seres humanos.

Mas nada de grave, já cá estou fora, retiram-me as excrecências extras e trago também coisas magníficas, como o Enf António, 1.90 m de negritude ternurenta, uns olhos de mel e um sorriso capaz de derreter qulaque bisturi, uma benção.
Obrigada pelos beijinhos, sou mesmo sensível aos afectos, embora tenha esta tendência de desvirtuar as côres lucy. Beijos para ti . T

Anónimo disse...

Ainda bem que já está tudo bem T :)

(eu até gosto de cerelac. O de frutas não, o normal)

Tudo de bom com o Enf. António.
Caramba... como eu gostava de me entregar assim tão facilmente às paixões. Mas tenho o péssimo defeito de analisar tudo ao milímetro. E para chegarem à fase da análise, primeiro têm que passar milhentas fases. O homem comum geralmente não passa a 1ª. Sou muito esquisita.

Sim... eu sei. Vou acabar velha e sozinha :)