21 de dezembro de 2008

Que la nuit te soit douce
Je suis la
pour egayer ce nuit
ce soirée
ou on mange [pour] une vie
si tu veuilles m' entendre
et laisser ce silence si amer
Je veut te chanter
encore une fois
une fois de plus
ma musique
et bouleverser ton coeur
balayé par la pluie.
Que la nuit te soit douce
ce nuit de silence sans fin
dans laquelle les hommes
sont tranquilles dans leus danse.

19 de dezembro de 2008

Para Yann Elliès

Para Yann Elliès (a salvo desde 20 de Dezembro e sob os cuidados da marinha australiana), um Aventureiro dos mares do Grande Sul, que fazia uma volta ao mundo em solitário a bordo do Generali, 750 milhas a Sul da terra mais próxima, quando quebrou o fémur esquerdo. São os ossos do ofício e uma parte da paixão.



Imagens transmitidas por Marc Guillemot, Safran

18 de dezembro de 2008

In tempus praesens: Bach encontra Gubaídulina

Anne-Sophie Mutter volta ao estúdio com os Solistas de Trondheim depois da gravação do concerto das Quatro Estações. E novamente, também agora não se limita apenas a tocar Bach, na medida em que a sua predilecção é a música contemporânea. Por isso, dado que Sofia Gubaidulina, uma das mais destacadas compositoras da actualidade compôs recentemente um concerto - In tempus praesens - e dedicou-o a Anne-Sophie Mutter, esta aproveitou a ocasião e repetiu um sucesso já experimentado com o concerto das Quatro Estações de Vivaldi, onde junta os solistas de Trondheim e a London Symphony Orchestra sob a regência do russo Valery Gergiev, contrapondo a contemporaneidade de Gubaidulina aos dois concertos para violino e orquestra de cordas de Joahnn Sebastian Bach.
Há quem se divida quanto ao resultado, mas num aspecto não há duas opiniões divergentes: Anne-Sophie Mutter é exímia na sua arte de encantar enquanto dedilha o violino. Imprescindível portanto neste Natal (da Deutsche Grammophon).



Mutter cresceu bastante. As noções musicais que agora fluem não são apenas de uma intérprete perfeita e rigorosa, mas de alguém que tem a flexibilidade para perceber que da forma como dedilha o violino o mundo pode mudar se o fizer com a alma que percebeu que tem. Bach torna-se muito mais rico do que alguma vez o foi na musicalidade e o concerto de Gubaidulina é vibrante nas mãos de Mutter, desde a primeira nota, que antecede um curto solo de violino, magnificamente interpretado, quase como um pedido de alguém que não consegue respirar e precisa de o fazer. Está dado o mote e os solistas de Trondheim são por sua vez contagiados pela energia de Mutter. Uma nota apenas: não há concessões musicais ao barroco nestas peças: a musicalidade é toda contemporânea.

C. Simic revisited


Virava uma página
uma após outra
uma de cada vez
em silêncio
mas eu conseguia ouvi-lo a virar as páginas
na sala ao lado
banhadas pela luminosidade amarelada
do candeeiro de latão instalado junto à janela
Por vezes dormitava
mas a cabeça nunca pendia
nem os olhos soçobravam na atenção
o avô
mesmo sem ler
parecia que percorria também o meu livro
porque ao deitar me falava dos personagens das minhas histórias
Este inverno trouxe-me os seus cem anos
e a memória do seu perfume de mar
arde
em cada lenho que
melancolicamente
atiro para o fogão.

15 de dezembro de 2008

O Met na rádio

O Metropolitan de Nova Iorque comemora, este ano, o seu 125º aniversário. Fundado em 1883, é o maior centro de espectáculos dos EUA. Sendo uma das primeiras companhias de ópera, atrai muitos dos mais famosos e prestigiados artistas de todo o mundo. A Temporada regular do Met é de Setembro ao início de Maio, incluindo concertos no Carnegie Hall e no Lincoln Center, bem como digressões e concertos de Verão nos parques de Nova Iorque e Nova Jersey. Uma das mais importantes missões do Met tem sido a transmissão em directo na rádio aos sábados à tarde para mais de 300 rádios nos EUA, e para 40 países nos cinco continentes. Para a Europa, através da União Europeia de Radiodifusão (UER), com a qual a Antena 2 transmite em directo a temporada de 2008/2009.

10 de dezembro de 2008

Eco-chick, dress responsibly

Sustainable Style Foundation

Até há pouco tempo o consumismo/moda estavam associados ao desperdício e ao desnecessário consumo de recursos naturais das fases a montante ou a juzante à compra, ao uso e ao dejecto do objecto consumido, quantas vezes deitado fora apenas porque deixou de estar na moda, ou de ser cool. Sendo uma verdade, o certo é que os blogs de cariz ambiental que abordavam criticamente o tema centravam-se em dicas que não resultavam mais do que de meras regras de senso-comum, muitas das vezes desprovidas de sentido prático. Mas desta vez o Eco-chick associou-se a especialistas do sector, juntou massa cinzenta do mundo da moda e do tecido produtivo, com o patrocínio do Banco Mundial e o resultado é francamente espantoso. A responsabilização do consumidor (e não apenas do produtor) permite uma criação de variedade e padrão estético muito para além do meramente aceitável.

Por isso, pela importância do tema, não se trata apenas de um site de eco-geeks, de uma moda passageira proveniente de gente com ideias fundamentalistas. Trata-se de algo que diz respeito a todos, tem que ver com a própria cultura social de cada um, no fundo, com o próprio carácter do indivíduo. O que, sem ser uma novidade argumentativa, não deixa de constituir uma inovação num sector tido como retrógado e averso à mudança até agora.

For too long environmental blogs have catered to men and moms. It was either diatribes about peak oil or recipes on how to make organic baby food. When all the rest of us want to know is: Where can I get a fair trade spanking paddle?
Eco Chick can fill you in!

The blogteam at Eco-chick includes a model who has a degree in entomology, an alternative health freak who’s used herself as a guinea pig, a science nerd, a news junkie and a London-based expat; the site is run and hosted by an anarchist webmaster. Today’s chicks want to know what’s going on, and want to laugh. Eco Chick agrees.

While we have a woman’s perspective, all are welcome to contribute, comment and create. It’s a simple principle; every object has a life cycle, whether it be a bar of soap, a take-out container, an energy bar, a pair of shoes or a loveseat. It was somewhere before you got it, and it will go somewhere else when you’re done or gone. Just because you can’t see it before or after you buy it/use it/eat it/love it doesn’t mean you’re not responsible for it. We’ll show you how to find the things you love, and keep you updated on what’s going on in that great green world.

Foyer aberto no São Carlos



Concertos ao Almoço


ENTRADA LIVRE (sempre às 13h00)

No sentido de celebrar a quadra natalícia, o São Carlos apresenta um ciclo de concertos de câmara, à hora do almoço, com entrada livre.


PROGRAMAÇÃO:


9.Dezembro - Camerata Vianna da Motta
J.S.Bach, 3º Concerto Brandeburguês
Heitor Villa-Lobos, Ária da Bachiana nº5

10.Dezembro - Quarteto Vianna da Motta
W.A.Mozart, Divertimento em Fá M
Anton Webern, Langsamer Satz
11.Dezembro - Camerata Vianna da Motta
Antonio Vivaldi, das 4 Estações: "O Verão", "O Inverno"

12.Dezembro - Camerata Vianna da Motta
Bela Bartok, Danças Romenas
Joly Braga Santos, Nocturno
Benjamin Britten, Simple Symphonie

13.Dezembro - Camerata Vianna da Motta
A.Corelli, Concerto per la Notte di Natale
Autores Vários, Canções de Natal


W.A. Mozart, Quartet in F major KV370 - 3º mov.

4 de dezembro de 2008

Eléctrico Azul ou também [anonymus]

O eléctrico percorre
com uma lentidão suave
e encantatória
a encosta da montanha
azul
enquanto o sol brilha nas vidraças
e me entorpece.
O calor momentâneo reconforta-me
e faz-me sentir uma imensa saudade de
...
Nas vidraças sucedem-se as
imagens
tremidas da tua
[digamos]
ausência
sentida como um fogo
ateado su
bi
tamente
que me consome
as entranhas e mais nada
Prendo-me no sussurro sossegado
do teu rumor
A minha alma inteiramente coincidente
com o declive acentuado do presente
na montanha azul
de rosto humano

Os meus dedos [com mil raios]
Sempre [eles] escorregam na face vidrada
da
janela
acariando o reflexo liso do reflexo do teu rosto
os teus cabelos
a tua pele

Podia por uma única vez
Chamar-te

[não me ouves e ainda assim:]
avisto-te
o teu corpo inteiro
o teu sorriso lindo
sober
bo
Apeio-me no cimo
chamo-me à Razão
e volto a embarcar com a passagem na mão
Com destino [in]certo.
Nada, De Carmen Laforet

3 de dezembro de 2008

O Albatroz de Santa Helena

Como uma criança
um deus menor de olhos azuis
plana sobre o mar
em vôos circulares
batendo as asas na contraluz do azul celeste
enquanto a espuma das vagas se ergue
branca
ao seu encontro.
Oiço, nesses momentos de êxtase
distintantemente no meio das vagas
um canto
de encanto
ressoando
que me aponta
sempre
o inevitável caminho do Sul.

27 de novembro de 2008

Uma tarde,
numa linda tarde de Outono
o meu olhar esbarrou no teu
de forma simples
despojada
descrevendo o arco de um poema
uma pequena melodia
sem fim
as minhas mãos procuraram as tuas
na distância
alcançando-as
enquanto sopesava o teu coração
.
Em silêncio
aprendi a gostar de ouvir o teu riso
e a mergulhar nas palavras que te adivinhava
mesmo quando nada havia a dizer
Acostumei-me
a ignorar as confusões do amor
mas não as estrelas
ou a lua
que em cada noite te oferecia
na esperança que aceitando-as
te tornasses a minha Esfinge.

25 de novembro de 2008

I have never seen anything like it: two little discs of glass suspended in front of his eyes in loops of wire. Is he blind? I could understand it if he wanted to hide blind eyes. But he is not blind. The discs are dark, they look opaque from the outside, but he can see through them. He tells me they are a new invention. "They protect one’s eyes against the glare of the sun," he says. "You would find them useful out here in the desert. They save one from squinting all the time. One has fewer headaches. Look." He touches the corners of his eyes lightly. "No wrinkles." He replaces the glasses. It is true. He has the skin of a younger man. "At home everyone wears them."
.
J.M. Coetzee, Waiting for the Barbarians
.
Eram pouco mais de duas da manhã, segundo o inconfundível carrilhão da igreja da Magdalena, quando o inspector jefe Javier Falcón chegou à porta da casa na juderia e se recordou que era o terceiro dia consecutivo em que não abria a caixa de correio. Assim, era apreciável a montanha de lixo que ali encontrou, desde as últimas promoções dos Preciados à liquidação total da E.Leclerc, passando pelas novidades de quartos de casal no Ikea, sem contar com os saldos no El Corte Inglés. Havia ainda um novo hamburger de callamares no McDonalds, uma carta da Endesa e outra do ayuntamento dando conta de uma nova alteração dos sentidos de trânsito em diversas ruas, a par de vários panfletos com a cara dos candidatos às eleições regionais cuja data se avizinhava. E um envelope branco, gasto e sujo, sem remetente, não enviado por via postal. Tentou vislumbrar o conteúdo, um maço de documentos, sem dúvida, mas o papel espesso não permitiu identificar do que se tratava na contraluz. Arriscou e enfiou o gume da faca da cozinha no rebordo do papel, abrindo-o de um gesto. Continha várias fotografias, a preto e branco, muitas contendo rostos de gente de olhos bem abertos, quase suplicantes, mirando a objectiva da máquina fotográfica. Gente jovem, mulheres, crianças e homens, a maior parte negros sub saharianos, mas muitas delas tinham em comum o facto de os fotografados estarem colocados atrás de grades finas ou rede metálica. Alguns prostrados no solo, vestidos com farrapos reflectindo a sua condição sub-humana, confundindo-se com o pó da terra. E por vezes homens brancos armados, envergando um uniforme e botas, invariavalmente óculos escuros, numa ou noutra fotografia, como sentinelas da desgraça alheia, de rosto fechado e vistas prolongadas apenas até à extremidade do cano da arma sujeita a tiracolo.
Um muro de tijolos. Um graffiti garatujado na pressa de uma ronda das sentinelas
i no más!
e a figura estilizada de Caronte transportando as carcaças dos ainda-vivos na sua barcaça. Esta noite não acaba? pensou Javier, enquanto abriu o frigorífico à procura de algo que a empregada temporária - como se chama ela? Não decoro o nome dela, irra, a Maria nunca mais regressa das Canarias? - pudesse ter deixado para picar. Nada, paciência, seja então pão e anchovas, pensou, lembrando-se vagamente que há cerca de seis meses tinha comprador uma lata de anchovas que nunca chegou a comer. Abriu uma garrafa de vinho e instalou-se na mesa da cozinha, revendo as fotografias, quando o telefone vibou em cima do tampo de mármore do lava-loiças. Atendeu, mas do lado de lá não ouviu nenhuma voz. A sineta do pátio soou, distraindo-o do telefone. Empunhou a arma e deslizou devagar pela porta da divisão, esgueirando-se para o pátio, encostado à parede, a tempo de ouvir alguém depositar algo na caixa de correio. Abriu o portão da rua de sopete, mas não avistou vivalma. Devagar, tornou a fechar o portão, olhando em redor por precaução. Procurou acalmar o batimento do coração nas têmporas enquanto tacteou a caixa de correio até sentir o invólucro. Um envelope idêntico ao anterior havia sido depositado. Correu de regresso à cozinha, fechando bem a porta atrás de si. Repetiu o gesto com a faca que não chegara a arrumar e não conseguiu reprimir um grito quando olhou para as fotografias que extraiu de dentro do envelope. Um homem deitado de costas num chão de terra batida mirando a câmara com ar de terror na primeira, o mesmo homem de olhar vítreo e um orifício na testa na segunda.
Maquinalmente, Javier procurou entre o primeiro lote de fotografias e reconheceu o negro entre as pessoas cujos rostos fotografados estavam espalhados por sobre a sua mesa da cozinha. deixou-se cair na cadeira e certificou-se que ainda tinha gravado no telefone o número de Alícia Aguado, a psicóloga cega.

24 de novembro de 2008

E se Obama fosse africano?

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas – tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.
Inconclusivas conclusões
Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.
Mia Couto

20 de novembro de 2008

Ai se a moda pega com os filhos dos políticos portugueses...

Dmitri Nabokov, o filho de Vladimir Nabokov, planeia publicar em 2009 a última novela inacabada de seu pai, “The original of Laura”, isto apesar de, segundo a BBC, o escritor ter pedido para que fosse queimada.

18 de novembro de 2008

El Amor Brujo

Manuel de Falla

El Amor Brujo, Danza del Fuego Fatuo

El Amor Brujo é uma obra emblemática. Pela inovação, porque representa uma viragem na música ibérica traduzida num desvinculamento das tradições recebidas dos cânones da música clássica herdados do romantismo, mas sobretudo porque incorpora as tradições do flamenco andaluzo numa base clássica, assumindo marcadamente a fusão de dois estilos tão diferentes, sem contudo recorrer ao uso de qualquer sonoridade musical tradicional na música andaluza (não há castanholas, nem tamborinos, nem palmas, nem batida de pés no solo, nem sinos), embora os mesmos sejam perceptíveis através da interpretação de outros instrumentos como o piano, cordas ou metais. A grande riquezas da obra resulta ainda desse aspecto, da subsunção da alma flamenca em instrumentos não tradicionais na folk music, de uma forma quase subliminar.

A peça musical traduz diversos estados de alma dos personagens, os quais mudam ligeiramente entre os diversos "episódios", donde as ligeiríssimas variações entre frases musicais cuja percepção nem sempre é evidente.

A princípio, a obra, encomendada por uma bailarina cigana (Pastora Imperio), não foi bem recebida pelo público, mas os sucessivos acertos que lhe foram introduzidos por Falla levaram a que se tornasse num ícone a partir da segunda década do séc. XX, quando o compositor a transformou numa peça de ballet a acompanhar por uma orquestra inteira. A peça requer, quando interpretada a solo, bastante virtuosismo, patente de resto na tardia Dança Ritual do Fogo, brilhantemente interpretada por Arthur Rubinstein (e por ele retocada a versão para piano). Rubinstein travou conhecimento com Falla entre 1915 e 1916 aquando de uma digressão deste por Espanha, a caminho do vapor que o levou em 1916 para uma digressão no continente Sul Americano e tornou-se seu admirador.

No dia da estreia de El Amor Brujo, em 15 de Abril de 1915, em Madrid, o jornalista Rafael Benedito entrevistava Manuel de Falla para o La Patria: "Hemos hecho una obra rara, nueva, que desconocemos el efecto que pueda producir en el público, pero que hemos "sentido".

Falla compôs diversas versões de El Amor Brujo para orquestra grande, reduzida, coro e ballet e uma delas, uma versão para sexteto, foi estreado em Lisboa, em 1915.

Como R. M. Rilke, também Falla teve uma cidade sonhada, que no seu caso era Granada, segundo palavras da sua companheira: Una mañana de abril [...] dije: "Hoy vamos a visitar la Alhambra". Y allá fuimos [...]. Al llegar a las puertas de lo que fue palacio y fortaleza, dije a mi compañero de peregrinación: "Déme usted la mano, cierre los ojos y no vuelva a abrirlos hasta que yo le avise". Consintió en mi capricho, divertido como chiquillo que juega a ser ciego [...]. Condújele a la ventana central [de la Sala de Embajadores en la Torre de Comares] [...] "¡Mire usted!", dije soltando la mano de mi compañero. Y él abrió los ojos. No se me olvida el ¡aaah! que salió de su boca. Fue casi un grito.
MARTÍNEZ SIERRA, María. Gregorio y yo. Medio siglo de colaboración. Valencia, Pre-Textos, 2000, p. 195.

9 de novembro de 2008

Há sempre um mar por trás de cada sonho
uma planície debaixo de cada nuvem
uma lágrima em cada presságio
Há muito não pernoitava aqui
tacteando a claridade do mar
Onde terminará esta visão?

8 de novembro de 2008

Vendée Globe

Um homem, um barco, três oceanos, uma volta ao mundo,

24.000 milhas sem assistência e sem escalas


6 de novembro de 2008

O excesso de luz é uma treva.

Omer Granot

Falésia das Várzeas de Quarteira, o mar às 08.15h
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Omer Goldman tem 19 anos. Regressa hoje a uma base militar para um terceiro ciclo de 21 dias de detenção. Recusa-se a servir num "exército de ocupação". É mais um desgosto para o seu pai, que desistiu de ser chefe dos espiões de Israel. Um relato na primeira pessoa:
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O meu pai é Natalin Granot, um especialista em Irão que se demitiu de "número dois" da Mossad, em 2007, quando não o promoveram a chefe da principal agência de espionagem de Israel. Eu, Omer Goldman, 19 anos, sou uma pacifista e, hoje, regresso à prisão nº 400, numa base militar próxima de Telavive. Recuso-me a servir num exército que comete, todos os dias, crimes de guerra nos territórios palestinianos ocupados.
Fui recrutada para o serviço militar obrigatório aos 18 anos, mas já no liceu eu decidira que não queria ir para a tropa. Assim que deixei a escola, e antes de me inscrever na faculdade, dei aulas a crianças pobres num bairro de judeus etíopes. Quando me chamaram, entreguei uma declaração aos oficiais onde afirmava: "Recuso alistar-me nas Forças de Defesa de Israel (IDF). Não farei parte deste exército que, desnecessariamente, pratica actos de violência e viola os mais básicos direitos humanos."No dia 23 de Setembro, sem ter sido julgada, fui cumprir 21 dias de detenção. Fui libertada a 10 de Outubro, mas voltei para um segundo período, desta vez apenas de 14 dias, porque fiquei doente. Saí novamente em liberdade, na sexta-feira, dia 30 de Outubro. Estes ciclos irão repetir-se até que o exército se canse, porque eu não vou desistir. Conheço pessoas que passam muito tempo reclusas. Um exemplo é Jonathan "Yoni" Ben-Artzi, sobrinho do líder da oposição, Benjamin Netanyahu. Esteve detido um total de 18 meses ao longo de oito anos. Em 2007, conseguiu que o Supremo Tribunal validasse os seus argumentos para não ser soldado (ele era completamente contra qualquer forma de luta - nem quando era miúdo aceitou aulas de judo), mas fracassou no intuito de ver reconhecido o estatuto de objector de consciência em Israel.
Neste país, as IDF são um "exército do povo", quase mitológico. Não podemos recusar-nos a servi-lo por motivos políticos. Há quem cite David Ben Gurion, o primeiro chefe de Governo, para justificar que um exército politizado não permite a sobrevivência da nação, e que quem quer ser um dissidente político deve levar as suas causas para o terreno civil. Mas foi Ben Gurion que permitiu a isenção do serviço militar aos ultra-ortodoxos que frequentem as yeshivot ou escolas talmúdicas. É um sistema de dois pesos e duas medidas, que favorece os religiosos porque eles têm peso político.
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Uma bala de borracha
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Eu soube que seria para sempre uma refusenik depois de ter participado num protesto contra a construção ilegal do muro de separação que atravessa a Cisjordânia. Eu e outras amigas estávamos na aldeia de Ni'alim e, de repente, reparei que o inimigo não eram os palestinianos sentados ao meu lado, como sempre me disseram, mas um soldado israelita que disparou contra mim uma bala de borracha. Fiquei ferida num braço, felizmente sem gravidade, mas uma palestiniana de 17 anos foi morta. As balas de borracha matam como as munições reais.
As minhas convicções ficaram mais fortes depois da Segunda Guerra do Líbano, no Verão de 2006. Comecei a questionar a sério a ética do exército, o uso de armas não convencionais, o envio de soldados para a frente de batalha onde morriam sem objectivos definidos. Comecei a ir mais aos territórios ocupados, e vi soldados a disparar sobre civis inocentes.
Antes de ser detida, procurei apoio psicológico, todas as semanas, durante um mês. A terapia deixou-me mais calma e mais forte. Sinto que a prisão será uma experiência, para o bem ou para o mal, que me deixará mais adulta.
A última coisa que fiz antes de entrar na minha cela foi deliciar-me com um prato de hummus [pasta de grão com azeite] - a minha comida favorita. Quando me libertaram, fui para uma festa dançar e ver pessoas que me fizeram sentir bem. Perdi muitos amigos, e até familiares, por causa das minhas posições. Aqui, em Israel, todos pensam que todos devemos ser soldados.
Depois do divórcio dos meus pais, eu vivo com a minha mãe em Ramat HaSharon, localidade de gente rica, nos arredores de Telavive. Ela compreende-me, mas tem medo que me façam mal. Tenho uma irmã mais velha, de 27 anos, que já foi militar e não vive connosco. Eu gosto muito do meu pai, mas ele nunca me foi ver à prisão, ao contrário da minha mãe. Ficou escandalizado por eu ser uma refusenik. Afinal, ele era uma espécie de general. É claro que se opõe, veementemente, ao que eu faço, mas a relação afectiva pai-filha nunca foi abalada. Também não creio que a carreira do meu pai seja prejudicada pelas minhas acções, embora eu tenha a certeza de que o meu caso está a ter mais repercussão pública por eu ser filha de Natalin Granot. Ele já se demitira em Junho de 2007. Segundo o escritor e jornalista israelita Igal Sarna, o meu pai era um operacional da Mossad que os jornais identificavam apenas como N. Subiu até chegar a adjunto do "número um", Meir Dagan, e sucessor designado. Ao contrário do que se esperava, Dagan não se reformou. Permaneceu no cargo e o meu pai preferiu demitir-se. Não havia lugar para dois "patrões" com demasiado poder.
E, para avaliar o poder do rival do meu pai, leia-se o que disse - numa sala em que a audiência explodiu de aplausos - o colunista político Emmanuel Rosen, que fez parte do painel de jurados que, em Outubro, atribuiu a Meir Dagan o prémio Man of the Year (Homem do Ano) de Israel. "Ele ganhou fama por cortar cabeças de palestinianos com uma espada japonesa. Ele nasceu com uma faca entre os dentes".
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Uma farda americana
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Não chamem à minha atitude uma rebeldia de adolescente ou um acto de revolta por o meu pai ter saído de casa da minha mãe. É muito mais do que isso. Fui uma de 40 estudantes liceais que assinou a "Declaração 2008 dos Alunos do 12º ano" - altura em que somos recrutados pelo exército. Foi em Abril de 1970 que surgiu a primeira iniciativa, com carta enviada à primeira-ministra Golda Meir. Causou imenso furor. Já era um protesto contra a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, conquistadas na guerra de 1967. Depois disso, houve mais três declarações, embora já não haja tanta polémica.Na prisão - uma prisão para raparigas dentro de uma prisão para rapazes -, tenho sorte porque estou com mais quatro alunas signatárias da "Declaração 2008", e duas delas são grandes amigas minhas, Tamar Katz e Mia Tamarin. É engraçado porque só enviam para aqui os "mais perigosos". Como podem classificar-nos como perigosas se somos pacifistas? Somos 60 raparigas no total, entre os 19 e os 20 anos, divididas em dois grupos de 30 para duas celas. Dormimos em colchões no chão e, todas as noites, uma de nós tem de ficar acordada para vigiar as outras... envergando um uniforme do exército norte-americano! É engraçado, não é? Acordamos às 5 da manhã e fazemos limpezas até à hora do pequeno-almoço. Retomamos as limpezas até à hora do almoço, e depois novamente até à hora do jantar. Na realidade, não há nada para limpar. Fingimos que limpamos - e nisto desperdiçamos imensa água, que Israel não tem - ou então pintamos umas pedras e tijolosTodos os que nos guardam são mulheres. Para mim, são elas as prisioneiras, e não nós. Questionam a nossa lealdade ao Estado e à religião. Gritam connosco a toda a hora e por razão nenhuma. Espezinham os nossos direitos, negando-nos o acesso a advogados. Só conseguimos, e nem sempre, alguns minutos por dia para falarmos com a família. Há um telefone fixo, quase sempre ocupado. Não há autorização para usar telemóvel. Podemos ler os livros que trazemos, mas as cartas que nos enviam do exterior são abertas previamente e nem sempre chegam até nós. Eles, os comandantes, não querem ceder porque sabem que, se o fizerem, estão a reconhecer que estão errados.Sonhos bonitos sem DeusNão somos sujeitas a tortura física, mas frequentemente conseguem quebrar-nos o espírito. Vamos dormir por volta das 22h00-23h00. Não somos nós que decidimos apagar a luz, nem quando podemos ir à casa de banho. São as guardas. Não é difícil adormecer porque quando caímos na cama estamos exaustas. Eu não tenho pesadelos. Só sonhos bonitos. Sonho que sou livre e estou a viajar pelo mundo. Quando me sinto mais triste, penso em coisas boas.Na prisão, nenhuma de nós acredita em Deus. Usamos a nossa cabeça e o nosso coração para encontrar forças. Falamos muito umas com as outras, e escrevemos cartas umas às outras durante a noite. Algumas raparigas, ainda que objectoras de consciência, nunca viram a realidade violenta e opressiva nos territórios ocupados que eu testemunhei. Começam agora a aperceber-se da necessidade de exigir mais respeito pelos direitos humanos.Não quero ficar na prisão muito tempo. Se me propuserem a possibilidade de serviço cívico aceitarei. Quero participar e ser solidária com a sociedade onde vivo. Se quiserem que eu seja voluntária a vida toda, sê-lo-ei..
Gostava de ir para a faculdade, talvez estudar Direito, mas o meu grande amor é a representação. Acho que vai ser muito difícil o meu futuro num país onde as pessoas são mais conhecidas pela unidade do exército a que pertenceram do que pela profissão que exercem.Talvez dentro de dez ou 20 anos as pessoas me compreendam e deixem de pensar em termos de judeu, negro, branco, cristão... Eu não acredito que a violência se combata com a violência. Esse nunca será o meu caminho, digam o que quiserem.
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Ficarei muito feliz se me escreverem. A minha morada nos próximos dias é esta:
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Omer Granot
Military ID 5398532 Military Prison nº 400
Military Postal Code 02447, IDF
Israel
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in Público, a partir de uma entrevista com Omer Goldman por telefone e e-mail, e notícias dos jornais The Times, The Guardian, Jerusalem Post, Ha'aretz e Al-Ahram.


Angel Eyes, Leaving Las Vegas

From: Matt Dennis, Earl Brent

Performed by Sting

3 de novembro de 2008

Talvez pudesse escrever sem um porquê
ou uma razão
apenas pelo meu apelo interior
e sem nenhuma Razão
para além do que
por ora ninguém vê.
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Javier recusou o cigarro estendido pelo homem e não lhe conseguiu ver o rosto de imediato, semi coberto por um lenço enrolado em torno do pescoço.
- O Inverno vai chegando inspector jefe - atalhou o desconhecido - nem Sevilha é imune aos rigores das estações. Mas reparo que não me respondeu, tomo portanto o seu silêncio como um convite a acompanhá-lo.
- Quem é o senhor?
- Meu caro inspector jefe, esteja por favor seguro que a seu tempo terá todas as respostas que procura. Como sabe, a paciência é uma das virtudes do homem mas infelizmente neste mundo moderno em que desgraçadamente vivemos falta-nos por vezes a paciência. Veja este rio, manso, soturno, como um crocodilo prestes a lançar-se sobre a sua presa... enquanto os poetas lhe cantam louvores à quietude há centenas de anos. Não se fie no Guadalquivir, inspector jefe, há milhares de anos que ceifa vidas, a despeito do aspecto de cordeiro. Quantas almas repousam no lodo do seu fundo? A propósito, soube do óbito do comisario don Diego Cuadril, uma pena, um bom homem, competente. Conheci-o mal, na verdade apenas o vi uma vez, em circunstâncias que preferia não lhe revelar, se me entende, a intimidade de um homem não deve ser devassada por um estranho, sobretudo se esse homem se não pode defender. Que grande perda, de facto. A polícia de Sevilha vai ter dificuldade em substitui-lo. Talvez o meu bom amigo consiga uma promoção.
- Não lhe admito...
- Tem razão, perdoe-me a indelicadeza do desrespeito pela sua modéstia, mas creio-o o homem mais competente para o cargo, inspector jefe, não queria de forma alguma ofender a sua sensibilidade.
- Vai-me dizer o que pretende senhor...?
O homem puxou do maço de cigarros novamente, escolheu um e acendeu-o. Nesse escasso instante Javier conseguiu vislumbrar-lhe fugazmente o rosto, a tez acentuadamente morena, feições mestiças ou talvez árabes, a estatura média, vestindo um casaco comprido de cabedal negro, complementado por uma boina de feltro escuro ao melhor estilo parisiense, precisamente acentuada por um ligeiríssimo sotaque francês.
- Pretendo ajudá-lo, inspector jefe, a deslindar o caso dos seus mortos. Mas preciso que me ajude também.
- Não o entendo!...
- É simples inspector jefe: há uma organização a operar em Sevilha que pretende controlar um determinado sector de actividade cujos contornos não são, digamos, completamente transparentes e para rentabilizar ao máximo os seus negócios não olha a meios. É muito maior que imagina e nunca conseguirá chegar a todos os seus tentáculos, inspector jefe. A mim interessa-me eliminar uma parte da organização, que está apodrecida.
- Máfia?
- Se lhe dissesse que é a Máfia estaria a ser reducionista. A mania que temos de catalogar as coisas deixa-nos pouca liberdade para compreender a complexidade da realidade.
- Não o entendo. Seja essa realidade o que for, pretende denunciar os seus comparsas?
- Por favor, não insulte a sua inteligência inspector jefe. Proponho-lhe algo que o pode guindar ao estrelato.
- E em troca?
- Pense no assunto Don Javier. Voltarei a contactá-lo.
- Não creio que esteja interessado.
- Pense nisso inspector, pense nisso. Por ora não o maço mais. Aliás, esperam-me. As minhas desculpas por ter interrompido o seu passeio lunar. Oferecia-me de bom grado para o levar a casa, mas estou atrasado para um encontro. ALém do mais, tenho a certeza que recusaria, pelo que não insisto. Tome, por favor conserve isto e reflicta bem. Espero que o sono seja bom conselheiro, boa noite inspector jefe.
Javier estacou, segurando na mão direita o embrulho que lhe foi estendido pelo vulto. O homem percorreu agilmente a distância que o separava do passeio junto da avenida, quando a porta traseira de um mercedes preto de vidros escurecidos estacionado junto ao Paseo del Colón, em frente à Torre del Oro se abriu e o homem deslizou por ela, no que foi imediatamente seguido por outro que vigiava discretamente as redondezas junto de um quiosque de abas retorcidas em ferro pintado; assim que ambos entraram no veículo, este arrancou de imediato, apenas acendendo as luzes mais adiante, enquanto se afastava velozmente pelo que Javier apenas conseguiu vislumbrar os três últimos algarismos da matrícula: 395.
Abriu cuidadosamente o embrulho e não conseguiu evitar um calafrio quando concluiu que este conteria cerca de trinta moedas de um euro.
Líderes europeus procuram em conjunto uma solução para a crise

30 de outubro de 2008

Perto da meia-noite, Javier fechou a porta do gabinete, apagou a luz e saiu devagar deixando para trás o corredor a soltar os ecos dos passos e das vozes que o animaram durante o dia. Lá fora, o ar quente da noite de Sevilha misturou-se-lhe com a secura da garganta e ao longe um cão uivou enquanto uma mulher discutia com alguém junto à janela aberta de um edifício vizinho nas traseiras da jefatura. Mais longe, o choro de uma criança de colo com cólicas chegou ao pátio onde o inspector jefe tinha o seu seat estacionado. Sevilha estava normal. E por isso Javier Falcón resolveu percorrer a pé os cerca de três quilómetros que separavam o edifício da jefatura de sua casa, procurando traçar mentalmente o maior percurso possível a percorrer à beira do Guadalquivir. Principiou a caminhar e, perto da ponte de San Telmo, pareceu-lhe ouvir passos atrás de si, parecendo-lhe vislumbrar um vulto. Estacou o passo e em seguida voltou a acelerá-lo, sem contudo se voltar. A meio da ponte parou e acendeu um cigarro, olhando discretamente em redor. Não viu ninguém, com excepção de um ou outro veículo que àquela hora circulavam em direcção a Triana transportando gente para um começo tardio da noite. Prosseguiu devagar. Uma estranha ansiedade fê-lo pressentir que a abóbada de estrelas acima de si ameaçava desabar, fruto sem dúvida do seu instinto treinado, o que era comum quando algo estava para acontecer, ou quando a presença de alguém fora do seu campo de visão era sentida. Continuou a caminhar devagar. No fim da ponte, já do lado oposto do rio, aguardou um pouco e como não visse ninguém, avançou ao longo da margem esquerda, procurando no bolso por outro maço de cigarros. Reviu o dia e recordou-se que não tinha comparecido à entrevista marcada com o apresentador de televisão "como se chama o fulano? Ah sim Mendez Nuñez", e tinha-se esquecido de o avisar. De qualquer forma este deveria ter estado ocupado em noticiar as mortes, "como um abutre farejando carne em decomposição" pensou.
-Esta cidade tem um odor sufocante, não acha inpector jefe? Quer dizer, quando as laranjeiras não estão em flor...
Um vulto negro ao seu lado, junto de um candeeiro apagado, cujo rosto não vislumbrou na contraluz da luminosidade da margem oposta, estendeu-lhe um cigarro:
- São bons inspector e descanse que não são de contrabando. Importa-se que o acompanhe? A noite está demasiado pesada para ser suportada por um homem só.

29 de outubro de 2008

Açores, o mar na manhã de 29 de Outubro

Canal entre a Horta e Sta. Madalena do Pico

Chegada a Sta. Madalena do Pico
O livro de Sevlak aberto em cima da mesinha de cabeceira, na nota de abertura escolhida pelo próprio
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O amor revela as qualidades sublimes e ocultas daquele que ama, o que nele há de raro, de excepcional; nesse aspecto facilmente engana quanto ao que nele há de habitual.
Friedrich Nietzsche
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a lâmpada acesa, a cama no quarto por fazer, a coberta em desalinho no chão alcatifado, uma nota rabiscada a lápis num papel mal arrancado de um bloco de notas caído em abandono no chão
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Adeus Xavier, o nosso caminho termina aqui. Eu sei que sabias que teria de ser assim. Perdoa-me por não conseguir mais, mas não sou capaz. Não sei se me entendes, ou sequer se quererás entender, mas é a única coisa possível para mim, dentro de mim. Perdoa-me a cobardia de não esperar por ti, de não ter a capacidade de te dizer isto frente-a-frente, mas acho simplesmente que é melhor desta forma. Tenho receio da tua reacção, prefiro não enfrentar o teu olhar grave e zangado, nem ter de te atirar com as culpas, porque sabes que isso aconteceria inevitavelmente. Sou um animal ferido, Xavier Dias, e por isso acabou, não me procures mais, seria desastroso. Sê feliz, tanto quanto conseguires. C
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Xavier sentiu os joelhos dobrarem-se e depois o peso do corpo a desabar. Faltou-lhe a voz para gritar, esmagou o papel na palma da mão até a marcar e atirou-o contra a parede, com força suficiente para ter a sensação que a varara. Enterrou a cabeça nas mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos vergados. O urro de homem ferido foi inaudível, mas dilacerante, como a garra de um felino que rasga o peito da sua presa para a cravar no coração que bate apressadamente enquanto a vida se esvai. Ao mesmo tempo que a fúria o preencheu, Xavier consegiu perceber exactamente o alcance daquelas palavras, o efeito pretendido, o momento escolhido. No preciso momento em que estava perto de chegar a Sevlak, o seu objectivo, Clara propusera-se e conseguira atingi-lo de forma mortal; na verdade, planeara com sucesso fazê-lo, de forma impiedosa, certeira e premeditada. Nietzsche, que até então ignorara, a despeito de ter uma ligação com o passado de Sevlak, tinha inevitavelmente razão.

27 de outubro de 2008

Laxness e a realidade contemporânea islandesa

Ao fim e ao cabo, bem vistas as coisas, tudo parece seguir algum rumo, embora haja momentos em que muitos possam duvidar que assim seja. E os sonhos do homem tornam-se realidade, acima de tudo se ele nada fizer de especial para os realizar, e lá estão os primeiros sacos de cimento na calçada, apanhando o agricultor de surpresa. Diz-se que quando o homem se tornar merecedor de habitar uma casa melhor, terá uma casa melhor, que surgirá espontaneamente da terra para ele, a vida encarrega-se de brindar o indivíduo com tudo aquilo que ele merece, e o mesmo se diz da nação como um todo. A guerra tornou importantes muitas pessoas, e alguns países também, e é de facto deveras duvidoso que ilustres políticos possam fazer mais pela nação islandesa do que o fez uma guerra acompanhada de tremendos assassinatos em países estrangeiros. [...] O pão de outrem é o pior veneno que um homem livre e independente pode ingerir, o pão de outrem é a única coisa que o pode roubar da sua independência e da verdadeira liberdade.
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Halldór Laxness, 1935, Gente Independente

22 de outubro de 2008

Au bord de l'eau

Ecoute-moi
Si tu as le soin de prendre ton poids
Toute l’infinitude de ton poids réel
Et not pas celui masqué par ton amertume de gamin
Ou de petit oiseau sans ailes.
Si tu le fais, tu le verras

par toi-même
peut-être ce chemin fleuri
donc tu le cherches

et par lequel tu désespères.
Ecoute-moi, je me confesse devant toi
Je n’en sais rien, je n´en sais vraiment rien
Et je ne te connais plus
si cas il l’est que je t’ai aucune fois connu.
Regarde-toi ce qu’importe vraiment
Le soleil qui brille
Et la mer bleue qu'est toujours là chaque matin
Tout aussi comme les paumiers

ancrés au sable
indifférents
à ce qui se passe
au delá des bords de l’eau.

20 de outubro de 2008

"Mais diários". E de facto assim era. Duas caixas de papelão cheias de diários, pequenos livros pouco maiores que um bolso com capa de pele fechada por um pequeno elástico, amontoados uns em cima dos outros, com uma breve indicação do período retratado na capa, preenchidos por textos, desenhos, ilustrações, pensamentos dispersos, esboços. De cartas e confissões, liminarmente dispersas, palavras soltas como batidas pelo vento do tempo, mas presas ao papel para não se apagarem. Um delírio para Xavier. "A alma de Sevlak" - pensou - "estou próximo do seu centro. E ali? Os manuscritos dos livros, certamente, e mais adiante uma edição nova, sem título, nunca colocada à venda...". Deu uns passos, absorvido pela observação dos objectos que o rodeavam. Coseu-se com as sombras do espaço e habituou-se progressivamente aos vultos. Subitamente, a visão de uma mão negra, enluvada, sobressaltou-o. Porventura uma sombra, outra sombra? Um instante de receio apenas e a turvação dos sentidos, seguida do negrume, o desmoronamento da consciência e a cedência das pernas. A voz de Jan trouxe-o de regresso ao mundo dos vivos, acompanhada de uma dor latejante na fonte esquerda.
- Ei-lo! Como se sente? - perguntou Jan, estendendo-lhe uma bebida açucarada.
- Que se passou? - perguntou Xavier Dias, procurando recordar-se dos últimos instantes, sem se conseguir verdadeiramente erguer do leito de ferro enquadrado pela pintura dos pecados, sucumbindo as suas resistências ao olhar da Ira, uma mulher ruiva e sardenta retratada de dedo em riste e um queixo anguloso, de lábios cerrados escondendo uma fiada de dentes brancos que apenas se adivinhava encaixada num rosto fogoso enquadrada por uma cidade incendiada, cujo casario se equilibrava numa colina na distante paisagem da colina de um apocalíptico vulcão em chamas, clamando o fim dos tempos enquanto cuspia as trevas pelo topo do cone. A mulher envolvia-se numa túnica branca, parte da qual esvoaçava ao vento, descobrindo parcialmente um seio branco.
- Ouvi um baque e chamei-o. Como não me respondesse fui procurá-lo e encontrei-o tombado no chão.
- Fui atacado. Alguém me golpeou...
- Não creio. A única passagem para cima é por aqui e garanto-lhe que eu teria visto alguém passar,se fosse o caso. A menos que tenha sido o velho Sevlak!
- O fantasma? - questionou Xavier, incrédulo.
- Porquê? Não acredita em fantamas, Xavier?
- Claro que não - disse este descartando a ideia, enquanto limpava a testa com as costas da mão direita - preciso de ir lá a cima novamente.
- Tarde demais meu caro, está escuro, volte amanhã.
- Eu insisto...
- Se prefere, suba.
Xavier subiu, como pôde, as escadas íngremes de acesso ao último piso. A claridade filtrada pelas telhas apagara-se e o bréu invadira já o espaço do piso superior. As caixas contendo os diários haviam desaparecido, excepto os poucos exemplares que se achavam sobre a escrivaninha junto ao topo da escada. E os três caixotes contendo os manuscritos e as edições mais recentes dos livros de Sevlak haviam igualmente sido retiradas sem deixar rasto.
- Jan...
- Não lhe sei explicar Xavier. Não compreendo. Estou desolado. Venha, por favor desçamos, faz-se tarde, amanhã veremos o que se pode fazer.
Despediram-se ao nível da rua. Jan entregou a Xavier um lenço com meia dúzia de cubos de gelo para aplicar no hematoma que entretanto começara a inchar. Arrefecera, e a humidade da noite tornava-se visível e espessa, como um manto iluminado pela luz amarelada dos candeeiros da rua, reflectida nas pedras do pavimento escorregadio. A tarde dera lugar à noite húmida, como se o rio tivesse passado a respirar exalando o seu hálito bafiento sobre a cidade, impregnando-a. Nesse instante Xavier deu pela falta do telefone que carregava no bolso do casaco. Amanhã teria de regressar a procurá-lo. Nesse instante pensou em Clara, certamente estaria já preocupada, porventura teria acordado e por isso apertou o passo para ir ao seu encontro, depois de levantar a gola do agasalho, protegendo-se do que poderia muito bem ser o prenúncio de uma nova era glacial. Algo não batia certo em Arles, pressentiu, mas a despeito disso o carrilhão do campanário assinalou, pontual, as oito horas. Somente o tempo mantinha imperturbável o seu passo.

O Caçador de Tesouros

Não conhecia Le Clezio. Ainda não o conheço, verdade seja dita, mas o certo é que nunca tinha ouvido falar de Le Clezio até à semana passada, quando foi anunciado o vencedor do Nobel da literatura. Evidentemente, a curiosidade. E por ela se tomou O Caçador de Tesouros, na edição recente da Assírio & Alvim, traduzido por Ernesto Sampaio, que não passa despercebido nos escaparates. Não tem que enganar, capa encarnada, lisa, lombada azul-vivo mesmo ao lado da expressão carrancuda de Diego e Frida (do mesmo autor). Adiante pois. Pese-se antes de mais a densidade de um livro não muito longo, o peso das palavras nas mãos como deve ser a regra antes de se abrir qualquer livro. E adiante, que a curiosidade. Vire-se a capa, passe-se pela dedicatória singela ao avô Léon e eis a narrativa, que desaba desde o primeiro parágrafo

"Sempre me lembro de ter ouvido o mar. De mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído de fundo que acompanhou a minha infância. Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá. O marulho lento, incansável, das ondas que se quebram ao longe na barra de coral e depois vêm morrer na areia do Rio Negro. Não passa um dia sem que vá ao mar, nem uma noite sem acordar com as costas alagadas em suor, soerguido na minha cama de campanha, afastando o mosquiteiro e procurando avaliar a altura da maré, inquieto, tomado dum desejo que não compreendo.
Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes, vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o, o mar mexe-se, respira. [...]
O mar está dentro da minha cabeça, e é ao fechar os olhos que melhor o vejo e ouço, que consigo distinguir cada ribombo das vagas separadas pelos recifes e logo de novo unidas para virem quebrar-se na costa. [...]
Nada existe mais, nada a não ser o que sinto, o que vejo, o céu tão azul, o estrondo do mar a lutar com os recifes e a água fria que me escorre na pele. [...]
Abro os olhos e vejo o mar. Não o mar cor de esmeralda que via outrora nas lagunas, nem a água escura diante do estuário do Tamarindo. É o mar como ainda não tinha visto, livre, selvagem, dum azul inebriante, o mar que levanta o casco do navio, lentamente, vaga após vaga, ente sulcos de espuma percorridos por centelhas. [...]
Agora sei onde estou. Encontrei o lugar que procurava. Após estes meses de vagabundagem, sinto uma nova paz e um novo ardor."

Fica-se preso, como numa teia, à procura do tesouro, que se vai descobrindo página a página, em cada descrição ou episódio da narrativa. Le Clezio escreve. Sempre com o mar em fundo, omnipresente, como um personagem secundário que afinal é principal. O mar que sai de dentro do narrador (estamos avisados desde o primeiro parágrafo, de resto), porque se percebe o grau de intimidade deste com a água salgada. Não é apenas poesia, ou figura de estilo vulgar, não se trata apenas de um passeio à beira-mar, na praia, no molhe batido pela vaga de Inverno, de dizer que se gosta do mar mesmo quando efectivamente se gosta (e quem não gosta?); nada disso, aqui trata-se de água salgada misturada com sangue, a correr nas veias, linhas, parágrafos. E então tudo muda de figura, muda obviamente de figura. É um livro do mar. Por isso, no fim, guarde-se num sítio especial da estante. O mar preparou-nos este segredo, este tesouro. É disso que se trata.

18 de outubro de 2008

Montemor: oficina imperdível




Et de quatre!

Parabéns ao Rogério Santos pela organização e à Universidade Católica, pelo reconhecimento da importância do papel dos blogues na difusão cultural, donde o tema genérico - Blogues e cultura. Em 14 e 15 de Novembro há, por isso, bloggers à solta na UCP, no IV Encontro Nacional de Blogues.

O programa é o seguinte:
Dia 14
9:00 - Recepção
9:30 - Sessão de abertura
9:35 - Comunicação de José Luis Orihuela (Universidade de Navarra) - Cultura bloguer
10:30 - coffee-break
11:00 - 1º painel - Blogues e a actual segmentação da blogosfera Moderador: Prof. Fernando Ilharco
13:00 - Pausa para almoço
14:30 - 2º painel - Blogues culturais e educação Moderadora: Mestre Carla Ganito
16:30 - coffee-break
17:00 - 3º painel - Blogues, cultura e negócio Moderador: Prof. Rogério Santos
18:30 - Encerramento dos trabalhos do primeiro dia
Dia 15
9:30 - Ateliê de Photoshop - monitor: Dr. Mário Barros Ateliê de Ferramentas de Web 2:0 - monitor: Dr. Gonçalo Silva

16 de outubro de 2008

Pegou à sorte num dos vários cadernos de anotações em cima de uma escrivaninha coberta de pó onde se lia numa das páginas, a caligrafia irregular, pequena, mas levemente estilizada:

Os sonhos não perduram,
por vezes desabam como catedrais
de enredos bizarros
projectados em vitrais
superficialmente coloridos
mas vazios de ideiais.



"Fique à vontade" - dissera-lhe Jan - "e se vir o fantasma do velho Sevlak grite, estarei no andar de baixo a arrumar uns papéis. Ele normalmente não é agressivo, mas com um estranho nunca se sabe". Inicialmente parecera-lhe uma brincadeira, mas agora, apenas iluminado pela escassa luz de uma lâmpada coberta de pó pendurada numa trave do tecto, que a custo permitia a passagem de algum luminosidade, o vulto de Sevlak parecia poder surgir de cada canto. A um dos lados, um amontoado de caixotes constituía um chamariz. Mas no lado oposto à escada, várias telas dispostas ao alto monopolizaram as atenções de Xavier. Aproximou-se, olhando cautelosamente para trás de cada caixa e para o tecto, por onde penetravam fios de luz por entre as frestas das telhas. Pressentiu uma corrente de ar nas suas costas e voltou-se de imediato. "É só a tua imaginação meu velho, estás sugestionado pela história do fantasma do velho Sevlak. Ou é apenas um arrepio por saberes que estás quase a descobrir o teu graal? É ridículo. Que barulho foi este? Bolas, que lugar. Aqui estão as pinturas...merda, se tivesse um pouco mais de luz, espera, tenho aqui um isqueiro que me esqueci de devolver ontem, onde foi? Ah sim, no Restaurant Des Armes, tenho de lá regressar e entregá-lo". Outra corrente de ar. "A porta fechou-se, paciência, espero que não esteja trancada. Eis o primeiro quadro de Sevlak, parece que te vou conhecer um pouco mais meu velho e não se pode dizer que pintes mal de todo. Mas não serás a pessoa mais alegre. Um muro. E outro. Ainda outro. Espera, é sempre o mesmo, mas visto de ângulos diferentes e em momentos diferentes. E este? Um balcão de café, bancos altos, uma mulher sentada... é bonita, quem será?". A voz de Jan: "está tudo bem, Xavier?". Respondeu que sim, absorvido. Como é que alguém pôde desperdiçar o seu talento desta forma, pensou. Nunca se ouviu falar do escritor, nem do pintor Sevlak. "Ali, outro quadro". Um homem. Óculos e boina, gabardina comprida, sorriso tímido, boca larga, olhos inteligentes. Uma dedicatória a carvão, com caracteres levemente aparentados com a caligrafia dos cadernos de apontamentos: para Bertolt, uma pintura que não vale um vintém, como paga e agradecimento pela sua obra de três. Obrigado meu velho. Passos no lado oposto ao da escada. "Provavelmente alguém que passa na rua" - pensou - "mas parecem cá dentro. E ali, que mais há naquele canto?".