2 de novembro de 2011

Num mundo melhor III

(Parthenon, Atenas)

Confirmam os media esta manhã que é firme intenção (aprovada por unanimidade em Conselho de Ministros) do Governo grego submeter a referendo nacional a aprovação da aplicação das medidas de reestruturação financeira incluídas no pacto de ajuda proposto e aprovado recentemente pela União Europeia. O simples expressar da ideia, ontem, provocou um verdadeiro trambolhão nos mercados, que esta manhã já deram indícios de querer recuperar novamente, como se tudo não tivesse passado de uma crise de histeria passageira. E sabemos que não é. A própria UE já ameaçou retirar os apoios duramente negociados com Atenas há poucas semanas.

Sem pensar muito no assunto (com o risco de julgamento que tal possa acarretar) ocorre-me que os mercados atenderam ao referendo - um instrumento normal em democracia - como uma contrariedade, um obstáculo à sua realização, isto a despeito de George Papandreou ter afirmado que pretende organizar a consulta o mais rapidamente possível, ou seja, ainda durante o mês de Dezembro.

Os mercados (sempre eles) não se conformaram sequer com o anúncio da substituição das cúpulas militares, numa reação que tem sido vista como prevenção de um eventual golpe de Estado que estaria a ser preparado com o intuito de aproveitar a aparente insatisfação de 60% da população grega com as medidas constantes do pacote de ajudas e portanto como um atentado ao sistema demorático.

E no entanto, George Papandreou mais não fez que evocar o passado e, na terra onde nasceu a democracia, entendeu dar plena voz ao povo num assunto crucial que inevitavelmente marcará esta e a próxima geração de gregos. Sem (para já) dramatismos, enfrentando o risco de ter de sair do "euro" e de mergulhar a Grécia num isolacionismo económico (a exemplo do que aconteceu com a Argentina em 2001), arrastando consigo a própria União. Mas fê-lo garantindo que não haveria qualquer perturbação da ordem democrática, afastando dos quartéis a possibilidade de uma decisão que pudesse impedir a voz do povo, esperando-se que assim garantindo as indispensáveis condições de tranquilidade para a ocorrência da consulta popular. As diversas partes podem agora esgrimir argumentos num ou noutro sentido, o Governo até pode sair derrotado em referendo, mas inequivocamente a democracia sai reforçada em Atenas. Por um lado, porque dificilmente um golpe de Estado se conseguirá agora impor (falta-lhe o indispensável apoio popular, uma vez que os gregos dificilmente quererão abdicar do direito de decidirem o seu futuro) e por outro, não menos importante, a mensagem que se passa aos mercados é claramente a de que os mercados estão ao serviço da democracia e não o contrário, sendo esta um empecilho aos mercados quando não segue o seu passo, nem os seus interesses.

Evidentemente, a questão não é apenas filosófica, tanto mais quanto se coloca no seio de uma Europa espartilhada dos centros de decisão, com as suas cúpulas submetidas a interesses pouco claros, nem sempre coincidentes e não raras vezes muito divergentes até. O acertar do passo da democracia em Atenas, quanto mais não seja pelo recentrar da questão, pelo que significa, constitui uma pequena lição, à Europa e ao mundo, permite aos gregos manter a cabeça erguida e reafirma o seu pleno direito, de fazer parte desta Europa que tem a seu cargo a defesa de alguns dos mais significativos valores e princípios da humanidade.

Afinal, e nisto posso perfeitamente estar enganado, mas quer-me parecer que Papandeou e a Grécia limitam-se a salientar uma brecha importante na Europa que urge colmatar: a Alemanha e a França (ou antes: Merkel e Sarkozy) chamaram a si o poder de tomar importantes decisões que esvaziaram a a Comissão Europeia do seu poder coordenador. O referendo grego, last but not the least, vem ainda chamar a atenção para algo que tem estado a acontecer na prática: a Europa a reboque de agendas próprias da Alemanha e França, ou de pequenas exigências pontuais de outros países (de que são exemplo o inaceitável pedido de garantias feito pela Finlândia e pela Eslováquia). Neste sentido, como na sociedade de indivíduos, nesta Europa não se pretende que qualquer país se possa submeter a outro, ainda que isso possa representar um suicídio. De Atenas, onde o sinos tocaram pela democracia, chega-nos essa mensagem que, tendo feito soar alarme nos mercados (pelos motivos errados), nos devia ter tocado, como europeus de corpo e alma, muito mais profundamente.

Ainda que possa vir a ser necessário isolar a Grécia por não se conseguir evitar o seu suicídio, cabe-nos ao menos assisti-la de forma condigna na "morte" pela qual os gregos possam vir a optar e criar os mecanismos indispensáveis para isso. A solidariedade e a cooperação a que Delors aludia frequentemente, a isso obrigam.

Hoje, não sendo atenienses nem gregos, somos todos cidadãos europeus. Com tudo quanto isso representa.