Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.
.Sophia, O Mar.O avô ainda não era avô. Nem pai, nem marido, nem contramestre. Era apenas uma criança quando a sua mãe morreu e ele deixou de ir à escola. Depressa esqueceu o que tinha aprendido, a caligrafia, os reis de Portugal (o último havia partido poucos anos antes), os rios, as cidades. Começou a trabalhar, primeiro na fábrica de conserva de peixe e depois no mar. Costumava recordar-se da primeira noite no mar, do empurrão do bote para a água gelada, do escuro, do fervilhar do peixe na rede, dos gritos dos homens no cerco, do frio nas mãos e na gola molhada do casaco de lã espessa. Com o passar do tempo, os outros pescadores passaram a ser a sua família e por isso a chegada a terra, já de manhã, significava apenas que iria para uma casa onde se sentia só. Um dia isso mudou. Encontrou a avó. Esta reensinou-o a escrever o nome numa caligrafia tremida e a fazer as contas do pescado. Lia-lhe histórias ao entardecer junto à roseira no lado de fora da cadeia da vila. Casaram na igreja. O avô continuou a ir ao mar. Pedalava todas as manhãs na velha pasteleira cheia de cromados a caminho da praia. A avó tinha medo, mas não deixava que o avô sentisse isso. Assim, todas as manhãs, esperava no areal, junto das outras mulheres, pela chegada dos botes coloridos que a pouco e pouco se iam aproximando da rebentação. Acontecia-lhe por vezes ir de madrugada até perto da costa a ver se distinguia a lanterna do avô no meio das outras que se avistavam ao longe, reluzindo no escuro da faina. Sossegava quando via o mar calmo sob a luz lunar e não pregava olho a noite inteira quando o pressentia revolto. Numa manhã, o bote do avô não regressou, quando o avô e a avó já eram pais de um rapaz. A avó vestiu-se de negro, pôs um lenço na cabeça e desceu à praia. Molhou os pés na água, ela que nunca o fazia, nem sabia sequer nadar.
O avô chegou mais tarde, tinha havido uma avaria no motor e passaram o dia no mar a tentar arranjá-lo. Chegou esgotado, viu-lhe o luto e enfureceu-se: "Eu não morro, entendes? Sobretudo não morro no mar. Eu volto sempre, sempre, para junto de ti. Não quero nem hei-de morrer sem ser ao teu lado e quero morrer antes de ti para não suportar a dor da tua perda. Tu és mais forte que eu, ouviste?" A avó soluçou, deu-lhe um abraço e pediu-lhe desculpa por ter duvidado dele.
O avô cumpriu o prometido. Mesmo quando o motor voltou a avariar, ou quando uma tempestade terrível virou o bote numa ocasião, a avó não desceu à praia. Prendeu o cabelo no alto da cabeça. Mesmo quando lhe trouxeram a notícia do bote que dera à costa, ela limitou-se a dizer que o avô tinha prometido que voltava sempre. Era em Agosto. Dois dias depois o avô voltava. Exausto, mas voltara, tinha sido socorrido por uma embarcação espanhola e por isso demorara mais a regressar. A avó abraçou-o e manteve-se serena. Nunca mais duvidou.
O avô e os outros homens passaram duas semanas a reparar o La Forza del Destino. Quando terminaram, o avô regressou ao mar e a vida continuou. Quando as embarcações chegavam, o avô, já contramestre, tinha direito à primeira escolha do pescado. Dava-o a amanhar a uma das mulheres e então chamava um rapaz da praia, mandava-o a casa levar o peixe, onde a avó aguardava nas lides e contas domésticas. O filho mais velho ia ocasionalmente à praia com o cão, a ver o loteamento do pescado e o leilão na areia, muito antes da construção da velha lota. Por vezes ainda ia a tempo de assistir à subida dos barcos retardatários pela parelha de burros, com a ajuda de braços dos homens, deslizando-os sobre tábuas de pinho ensebadas colocadas na areia. Isto passou-se anos antes do Manel dos Tractores comprar um Deutz, que veio substituir as parelhas de burros.
O avô almoçava com a família e depois regressava à praia para amanhar as redes danificadas pelo peixe. Levava então a boina de terra e roupa de trabalho, os pés nus para melhor desentrançar a rede. A avó ia mais tarde, com as crianças, à praia, o cesto da merenda numa mão e a sombrinha na outra, a ver o avô trabalhar. Regressava mais cedo para preparar a janta e o farnel da madrugada. Nunca se aproximava da água, o mar metia-lhe medo, sentia-se mais segura em terra. O avô, por sua vez, confiava mais no mar e era naquela língua estreita de areia fina que os seus elementos se encontravam. A avó nunca foi do mar, nem o avô da terra. Eram diferentes, completamente diferentes, mas era nessa diferença que o seu amor se alicerçava.
O avô morreu em casa, na cama de ambos. Já tinham então três netos. Chorou na manhã em que partiu. Apertou, com as forças que lhe restavam, a mão da avó, e partiu serenamente. A avó não chorou. A sua dor imensa não lhe permitia chorar. Tê-lo-à feito na solidão em que a encontrei por vezes, nas ocasiões em que desceu à praia a ver a partida dos barcos, a chegada, o amanhar das redes, ou quando um rapaz da praia lhe trazia o pescado a mando de um antigo rapaz da praia, já pescador.
A avó sobreviveu ainda vinte anos. Já bisavó, foi a enterrar num dia de sol, na campa do avô. Este ano é o do centenário do avô.