11 de julho de 2008

Prefácio de "Sul"


Eagles may soar

but weasels don't get sucked into jet engines

(John Benfield)


Anos volvidos depois da minha fuga, eis-me em Berlim Leste, pisando os passos de Bertolt Brecht. Ontem estive no 3 Groschen Bar, mas já nada parece ser o que era. O próprio Brecht é agora uma sombra do que foi. Há dias bebi uma cerveja com ele - a última - e a seguir passeámos no parque. Não se confessa arrependido de ter regressado a Berlim, mas é um homem desencantado com a vida. Não falo de uma decadência própria de quem tem toda a esperança de uma boa vida e de quem acha que legitimamente pode esperar ou fazer tudo, até perder tempo; falo antes do desencanto mortal que faz com que quem contrai semelhante vírus esteja morto muito antes do coração parar de pulsar. Foi este Brecht que recentemente conheci, apesar da sagacidade que emana do olhar que derrama por trás das armações que suportam as suas lentes grossas. É ainda uma pessoa impressionante, mas está morto.

Num apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para atravessar para ocidente. Procuro reunir as condições indispensáveis para eu próprio atravessar a fronteira e me juntar à alma que se separou de mim há anos, quando, ainda jovem, parti de Bratislava. Estou há demasiado tempo longe da alma que me viu crescer. Dela e de Hannah, a minha fiel companheira, a quem dedicarei este livro. Porque me compreende, aceitou e aceita como sou, este ser incompleto, imperfeito e difícil em quem me tornei. Ela me mostrou o caminho do amor e deu-me a maior prova de carinho possível.

O meu primeiro livro nunca se vendeu. Não passo de um escritor medíocre, ou se calhar nem sequer sou um escritor. Intencionalmente, escrevi sempre em alemão, mas talvez não saiba alemão suficiente para a minha escrita ser atractiva. Ou talvez apenas não escreva o que as pessoas querem ler. Ler e compreender Nietzsche não basta. Admito o meu erro - valha-me isso - : reconheço o meu pessimismo. Nos tempos actuais as pessoas querem ouvir falar de coisas alegres, querem finais felizes. E comédias ligeiras. Brecht falou-me disso num dos raros momentos em que o ouvi rir, enquanto ajeitava a gola do casaco para se proteger do orvalho do cair da tarde. E tal não é nada de diferente do que desejo. A minha alma disante é feliz. Vagueia livre, pelas planícies sul-americanas. Nunca pensei dizer isto, mas sou feliz. Mais do que alguma vez fui.

Neste apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para passar para ocidente. Sei que a Stasi me ignora, apesar do que por vezes escrevo, mas vivo apavorado com receio de ser encarcerado. Sei que sou apenas um pobre escritor que ninguém lê. E este livro - agora perto de estar terminado - é o destino que o meu espírito procura incansavelmente. Preciso, pois de o alcançar. O Sul é a minha liberdade para lá de Mühlenstraße, donde o título que escolhi antes de começar a escrevê-lo.

Berlim Ocidental, 20 de Agosto de 1961

PS: Brecht morreu em 1956. Este texto é dessa altura e mede o tempo que demorei a conseguir passar para o Ocidente e a encontrar um editor. Curiosamente, só o consegui fazer há dias, depois de terem construído um muro que me criou uma insuportável sensação de claustrofobia e me fez tomar a decisão de tentar a minha sorte. Não consegui assistir ao funeral de Brecht. Seria fácil mudar o que escrevi sobre si, mas hei por bem não o fazer. Espero poder visitar a sua campa um destes dias e depositar-lhe lírios.

Para Hannah, com todo o meu amor, onde quer que esteja.




Portishead, Roads
banda sonora de Requiem for a Dream

2 comentários:

Anónimo disse...

Portishead: a banda (sonora) da minha vida!

Anónimo disse...

Portishead, Nina Simone, não estás a tornar estas noites quase de lua chei nada fáceis.

Em tempos Nina Simone acompanhou-me tanto que temi que me identificassem com a jovem que é obrigada a tornar-se assassina pela polícia para salvar a sua pele. O que me identifica com ela é a dor, sempre com uma cosmética
perfeita, de quem não se permite falhar, mas felizmente distancia-me a perseverança. Desisto rapidamente da dor, pelo maior instinto, o mais poderoso, não o da sobrevivência, mas o do ódio que tenham pena de mim.

Portishead liga-me ao mar, à fase Cineclube, o mundo a decompor-se e tu sem conseguires segurar a mão de ninguém. Muito violento. Hoje muito sereno.

E no entanto E. copmo precisamos destes adereços na alma para não esquecermos que não há palavras para nos tecer os sentidos. Por vezes só a música consegue traduzir-nos. T