30 de junho de 2008

Separaram-se ao fim da tarde. Xavier acompanhou Clara até ao estacionamento de taxis na praça em frente ao museu, despediram-se e ele indicou o destino ao motorista. Embarcou no taxi seguinte, seguindo na direcção oposta ao longo do Quai d' Orsay. Na Ponte Alexandre III pediu ao motorista para virar à direita e seguir pela Avenida Winston Churchill, até aos Campos Elísios. Aí, pediu desculpa e deteve a corrida, dando uma generosa compensação ao motorista. O ar fresco do anoitecer embalava a copa das árvores e o maciço e frenético tráfico da tarde dava lugar ao lento deambular dos automóveis pela cidade, detendo-se pacientemente em cada semáforo. Xavier apeou-se e estacou durante instantes vendo o taxi a desaparecer na avenida e depois principiou a caminhar pelo lado direito em direcção à Concórdia, observando distraidamente os vultos nas esplanadas e um ou outro rosto iluminado pelo acender de um cigarro. Paris vestia-se agora para os noctívagos e para os românticos em busca de atmosfera junto ao Sena. Ajeitou a gola da camisa e apressou o passo à vista do obelisco. Um cego segurando um cão pela trela despertou a sua atenção. Ambos atravessaram a rua como um par de bailarinos perfeitamente sincronizados ao primeiro frémito do semáforo. Junto ao Louvre, Xavier consultou o relógio do telefone e meteu pela Rua de Richelieu, embrenhando-se em Montmartre. Deteve-se junto a um pequeno edifício de dois andares, com fraca iluminaçao. Num pequeno letreiro pendurado junto da entrada no rés-do-chão lia-se "Livres du Bout du Monde". Bateu na porta e entrou depois de cumprimentar o velho Louis.
[...]
Enquanto procurava entre as prateleiras de livros velhos, o telefone tocou. Era o seu editor. Não eram boas notícias, a última tiragem demorava a escoar e provavelmente iriam cancelar o contrato. Xavier desligou o telefone e continuou a sua tarefa com um encolher de ombros.

29 de junho de 2008

Blogs favoritos: Winx do sul

O segundo ano está no fim,
aprendemos todos bué
apesar de muito chinfrim
a turma sete é que é.
.
(apesar de não ser uma norma remeter para outros blogs, desta vez não consigo deixa de abrir uma excepção, por motivos que se compreendem bem)

24 de junho de 2008

Quando terminou a visita, Xavier dirigiu-se ao pequeno mas bonito café do Musée d' Orsay. Pediu um capuccino com uma Perrier e predispunha-se a beber o primeiro ao balcão de um trago só, quando o seu olhar, passeando pela sala, se deteve e poisou na criatura que instantes antes vira na sala trinta e cinco, agora sentada a uma mesa. Haviam trocado um breve olhar quando ela abandonou a sala, depois de se demorar a contemplar o noite estrelada sobre o Reno e ele cumprimentara-a com um aceno de cabeça, que ela devolveu com um breve mas iluminado sorriso quando ele lhe deu a primazia na passagem à sala seguinte, apertando contra o peito um livro encarnado de capa envelhecida que segurava numa mão de tez morena e dedos compridos desprovidos de qualquer adorno. O autor do livro era Eric Sevlak e, coincidência ou não, Xavier estava a ler um livro do mesmo autor, embora um título diferente.
...
- Creio que o pai de Sevlak foi aluno de Sigmund Freud - disse Clara, enquanto poisava o copo na beira da mesa, empurrando o cabelo longo para trás num gesto estudado, que nela parecia natural - e devem ter vivido durante algum tempo em Viena. Sevlak nasceu em Bratislava e apenas veio para o ocidente nos anos sessenta ou setenta. Isso explica porque os seus personagens são por vezes sombrios, densos e sisudos.
- Como sabe que são sisudos? - perguntou Xavier, recostando-se na cadeira, como se esperasse uma revelação grandiosa.
- Não sei se são, imagino-os apenas assim. E sabe uma coisa? É algo que me incomoda, mas não consigo imaginar os personagens de Sevlak sem serem sisudos, é algo que lhe colei na pele e, acho, é algo com que teria de viver para sempre, se ainda fosse vivo.
- Bem, acho que um escritor será sempre vivo enquanto os seus livros se lerem - retorquiu Xavier - pelo menos deveria ser assim.
- Talvez tenha razão - respondeu Clara - mas é algo que é indiferente. Para mim, Sevlak será sempre um autor sisudo, esteja vivo ou morto.
- E como classificaria os personagens de Kafka? Quer dizer, sem dúvida que são bastante mais sombrios...?
Clara deteve-se a pensar um instante e respondeu com um seco encolher de ombros: horríveis. Xavier não insistiu e mudou de assunto no momento em que Clara chamou a atenção do empregado. Apenas falariam de Kafka numa outra ocasião.

Un fin violin

Em 1694 Antoni, mestre luthier, exercia o seu mester em Veneza. No mais frio inverno do pós-renascimento europeu, em plena mini era glacial, salvara o último carregamento de madeira com que alimentava a sua arte mergulhando-a nas água da lagoa, numa pequena enseada perto da ilhota de S. Pedro. Assim a preservara de ser transformada em lenha para aquecimento dos enregelados habitantes da cidade.
Também devido ao frio, as águas da lagoa, habitualmente ricas em boro, concentravam uma dose maior deste químico que invadiu os poros da madeira, expulsando lentamente todo o ar que nela se encontrava, tornando-a excepcionalmente dura e compacta. Devido ao fio daquela era, as árvores de que a madeira era proveniente haviam crescido com extrema lentidão e por isso aquela era de excepcional dureza, resistência, densidade e com fantásticas qualidades acústicas. Antoni, da família Stradivari, uma das três principais famílias de luthiers de Veneza, conseguiu assim produzir, ao longo de mais de uma década, cerca de mil instrumentos de excepcional qualidade, que nunca, em toda a história da humanidade, foi alguma vez igualada.
Giuseppe Tartini, um violinista mediano de Pirão, então parte do reino de Veneza, mas na actual Eslovénia, acérrimo adversário de Vivaldi, foi o primeiro a registar a excepcional qualidade dos instrumentos de Stradivari. Quando efectuou a descoberta, parou de escrever música e dedicou-se a teorizar sobre a acústica dos instrumentos de corda, depois de escrever uma das mais belas composições para violino, as sonatas I, II e III de Il trillo del Diavolo.

Giuseppe Tartini, Sonata I de Il Trillo del Diavolo

(interpretação de Oscar Shumsky)

NOTA: Nada do que se refere acima tem qualquer rigor científico, tratando-se tão somente de uma leitura romanceada de diversos artigos que se fez ao longo do tempo, depois de termos tido a sorte de tropeçar num concerto inesquecível de Anne-Sophie Mutter.

23 de junho de 2008

A intelectualidade tornou-se sufocante. Porventura demasiado palpável até. Podemos amar o amor. Poderemos verdadeiramente amar o amor? Que importa. Talvez, mas não assim, porventura, às palavras que o ilustram. Falta-lhes o gosto, o cheiro, a textura, uma dureza própria, a despeito de poderem ser dolorosamente duras - perdeste-te nas palavras! - dirá o amante ferido e é nisso que se torna difícil o encontro de uma paz.
.
Deixamos palavras brilhando
para as reconhecermos em cada esquina
e depois escorregarmos nelas
como se untadas em gordura

20 de junho de 2008

Le papillon

Inês, Maio 2005

En regardant les petites ailes de ce papillon accidentel
Survolant la table ou nous prennons un café
assis sur cette petite esplanade fleurie de Gruyère
Je vois avec clairvoyance
que se sont toujours tes mains sereines
que supportent mon visage.

.
J’ouvre mon regard
et je suis [ ou je te suis simplement]

ébloui
par la lumière incandescente de tes yeux
Inlassablement attiré para la clarté simple
d' un esprit libre et dématérialisé
où aucune griffe ou artifice, vrai ou sophistiqué
aura raison ou besoin d’être.
.
Tu comprendras, peut-être un jour,
la dimension de ces môts
si tu as de la chance.

L' Estate

Giuseppe Arcimboldo, L' Estate

Sotto dura staggion dal sole accesa
Langue l’huom, langue ‘l gregge, ed arde il Pino;
Scioglie il cucco la Voce, e tosto intesa
Canta la Tortorella e’l Gardelino.

Zeffiro dolce spira, ma contesa
Muove Borea improviso al suo vicino;
E piange il Pastorel, perchè sospesa
Teme fiere borasca, e’l suo destino;

Toglie alle membre lasse il suo riposo
Il timore de’ Lampi, e tuoni fieri
E de mosche, e mosconi il stuol furioso!

Ah che pur troppo i suo timor son veri
Tuona il fulmina il Ciel e grandinoso
Tronca il capo alle spiche e a’ grani alteri.

Antonio Vivaldi, O Verão

17 de junho de 2008

O (im)possível

Um dia a escuridão subiu
no outro desceu
[viu descê-la quem teve paciência de esperá-lo]
e por fim ao raiar da aurora
abriram-se-me estes braços.
O pássaro branco voou
em círculos por sobre o campanário
e as pombas imitaram-no
em silêncio
enquanto se ouvia no parque
o riso claro das crianças.
Acredito.
Porque ao teu lado tudo é possivel.

Sudoeste

Cada olhar que te li
ensinou-me muito
sobre os recônditos segredos do teu corpo
e as contradições da tua alma.
O amor não é contudo o prazer
nem a perfeição de sentimentos
e a cegueira de uma separação
apenas existe depois do fim
e das sensações espúrias e imaturas
da solidão ou do tédio.

Esta manhã sopra um sudoeste fresco
que se esgueira por entre as frestas das janelas
do madeirame envelhecido
com assobios de liberdade

é por isso inútil o teu refúgio debaixo dos lençóis:
o que procuras,
la liberté,

comme tu bien le sais,
c' est moi.



Esbjorn Svensson - 1964-2008
compositor de jazz, mergulhador
Dodge Trio, The Dodo
... - como já disse, não é absolutamente certo que me tenha ouvido - atalhou Javier Falcón, sem levantar os olhos do espesso copo de vidro enquanto terminava de beber o último dedo travesso do seu tinto de veraño, recordando a visita que Agnes lhe fizera na noite anterior. O mais recente cadáver de Sevilha era o da sua ex-mulher - sabes, Xavier? Passam-se coisas estranhas na mente de um homem que pensa que resolveu o seu sentimento por uma mulher até ao dia em que ela aparece morta no chão da sua cozinha, com sangue espalhado pelo chão e azulejos da parede. Percebes isto?
Xavier assentiu num gesto de cabeça e depois limitou-se a emitir uma frase feita e não pensada - Acho que as mulheres são muito mais pragmáticas que nós nisso - disse, mas rapidamente se deteve. Lembrou-se que nada pode ser generalizado e que qualquer ideia pré-concebida ou radicalismo sentimental se acaba por pagar ou voltar contra o seu autor, a médio ou longo prazo com algum sofrimento, como ondas que se propagam e regressam numa pedrada dada num charco de água da chuva. Fosse como fosse, sem a ter conhecido pessoalmente, Xavier sabia que Agnes tinha sido a mulher do seu amigo e, apesar da dor que lhe tinha inflingido, tornava-se claro que uma pequena ponta de sentimento permanecia viva, ainda que apenas referente a uma esguia viela de um passado mal resolvido. Agnes não tinha tido dignidade na forma como partira, e isso permitira a Javier seguir a sua vida. Mas uma coisa era a partida súbita de uma pessoa amada em vida, outra, muito diferente, a sua morte provocada, ensanguentada e violenta, sob a canícula inclemente de um verão que se anunciava chocante. Agnes era a décima sétima vítima de homicídio naquele princípio de verão andaluz e, não por coincidência certamente, era a ex-mulher do inspector-chefe da brigada de homicídios de Sevilha, casada com o mais promissor, bem-parecido e adúltero juiz de instrução criminal de toda a província.

16 de junho de 2008

Os personagens Javier Falcón e Francisco Falcón - já conhecidos - e Consuelo Jímenez e Alícia Aguado, que ainda não conhecemos, foram tomados de empréstimo nos romances do inglês da Serra d' Ossa. Assim como os nossos passos se cruzam por vezes com os de Wilson no Chana, também a história das nossos personagens se cruzará com as dele, mas em Sevilha. Não foi obtida qualquer autorização do escritor para utilizar as suas personagens, devendo esta ser vista apenas como uma homenagem à trilogia de livros de que é autor e que, dentro do género, considero muito bem escritos.

3 de junho de 2008

(sans titre)

La mer, le vent, les presqu’iles, les encablures
Tes cheveux, ton corps
Tous participent a la formation imaginaire de mes courants océaniques
Et l’amour?
L'amour, aussi
je peux le jurer
en me rappelant de ton visage surplombant chaque tempête.
Tu me manques péniblement quand je tombe par terre en dessous des arbres
Prés de l’eau
En regardant le ciel.

.
Maintenant je pars.

1 de junho de 2008

Pesado, demasiado pesado. Demasiado amor, demasiado complicado, demasiado elevado, como um arranha-céus, demasiado fecundo, demasiado doloroso por isso. Muito mais do que estava preparada para dar, muito menos do que lhe convinha e a sua afectividade exigia como contrapartida. Se se quiser, uma esperança demasiado alta, como uma aposta. Tu no tienes corazón, Javier Falcón. As palavras ecoavam na cabeça de Javier enquanto os seus olhos contemplavam o fundo vazio do seu copo de tinto de verano con La Casera blanca, conformado com o facto de ter de pedir mais um para de um trago se apaziguar, a si ou à sua sede. Xavier assentiu com a cabeça à confissão do amigo, porque a pressentia iminente. Pediu discretamente mais dois tintos de verano para enfrentar a canícula de Junho em Sevilha. Em breve começariam as férias dos sevilhanos e a cidade ficaria quase deserta, mas antes ainda havia a romería d' El Rocío a vencer antes da silly season ser declarada aberta. Quando regressou, o empregado encharcado em suor largou apressadamente as bebidas na mesa que ocupavam e afastou-se sem abrandar o passo, consciente que da sua eficiência e rapidez dependia a sobrevivência dos demais comensais que enchiam a sala, à beira de um golpe de calor. A temperatura das duas da tarde era insuportável, o asfalto derretia nas bermas, as pastilhas elásticas que pejavam as artérias da cidade formavam um manto espesso sobre os passeios que desesperava quem as pisava. Era em final de Maio e o termómetro do painel publicitário da Telefonica na Plaza de Espanã ultrapassara os quarenta graus pouco depois das onze das manhã. Aproximava-se o verão mais quente dos últimos anos e nem Javier nem Xavier sonhavam com isso.