10 de outubro de 2017

Dia 1+9/10 ou o dia "0" para a Catalunha



Hoje Puidgemont pode declarar a independência unilateral da Catalunha. Hoje, isso pode não significar nada ou pode significar tudo. A ideia é perigosa e contundente pois, isolada e de costas voltadas para a Europa, a aventura tem tudo para falhar (a França e a Espanha não reconhecerão a Catalunha como estado independente e outros se lhe seguirão). Economicamente, pode ser um desastre, como atestam as recentes decisões de alteração de sede de grandes empresas com sede na província. E no entanto, não deixamos de dever à Catalunha alguma da nossa soberania conquistada em 1640, quanto mais não seja porque nos divide uma histórica questão fronteiriça com Espanha.

Na Europa do Séc. XXI os separatismos são vistos de soslaio porque colocam em causa a ideia da construção e da unificação europeia e nessa medida a separação de um estado-membro é uma rotura com a própria UE. Vão longe os tempos em que as aventuras independentistas e a redefinição das fronteiras europeias era uma aventura aceitável. Hoje, a união parece um valor intangível e portanto o romantismo da ideia separatista da Catalunha estará condenada ao fracasso, ainda que com um custo que pode ser elevado para as partes.

Ecoam longínquas as palavras de Oscar Wilde: "an idea that is not dangerous is unworthy of being called an idea at all". Parece um contrasenso pensar que a ideia de Europa está em risco hoje, independentemente do que suceder na Catalunha, mas não deixa de ser significativo pensarmos que o critério europeu tem variado ao longo dos tempos, como atesta a distância de posições entre o tempo em que se discutiam os separatismos nos balcãs e a forma como estes são entendidos hoje. 

A história ensina-nos que os movimentos independentistas acabam por triunfar. Por mais argumentos legalistas que se esgrimam, não raras vezes as independências impõem-se com violação de leis e normalmente da lei suprema, ou seja a lei constitucional. Dessa forma, valem mais os argumentos substantivos que os formais e legalistas, porque é infinitamente mais facil escrever uma nova constituição que estar a discutir alterações à do Estado que preexistente. 

E a UE? Tendo passado por quatro testes de fogo ao longo deste ano, com as eleições holandesas, francesas, alemãs e britânicas (com as italianas no ano que vem), a reinvenção europeia assume prioridade. O discurso otimista de Juncker há dias não disfarçou essa necessidade, quando traçou o caminho dos próximos tempos, até porque o caminho parece-se cada vez mais com uma encruzilhada onde temos de optar e cada opção nos fará perder sempre qualquer fragmento identitário, maxime a própria identidade. Noutro contexto, há tempos escrevia Eric Hanson, ilustrador da New Yorker 

Every time I go somewhere
I leave part of me behind

Mais do que a Catalunha e Espanha, vale mais perguntar Quo Vadis Europa?

2 de outubro de 2017

Poema català

No demano gran cosa:
poder parlar sense estrafer la veu,
caminar sense crosses,
fer l’amor sense haver de demanar permisos,
escriure en un paper sense pautes.
O bé, si sembla massa:
escriure sense haver d’estrafer la veu,
caminar sense pautes,
parlar sense haver de demanar permisos,
fer l’amor sense crosses.
O bé, si sembla massa:
fer l’amor sense haver d’estrafer la veu,
escriure sense crosses,
caminar sense haver de demanar permisos,
poder parlar sense pautes.
O bé, si sembla massa...

Miguel Martí i Pol, (de Vint-i-set poemes en tres temps, 1972)


Não peço grande coisa:
poder falar sem disfarçar a voz,
caminhar sem muletas,
fazer amor sem ter de pedir licença,
escrever num papel sem pautas.
Ou então, se parecer demais:
escrever sem ter de disfarçar a voz,
caminhar sem pautas,
falar sem ter de pedir licença,
fazer amor sem muletas.
Ou então, se parecer demais:
fazer amor sem ter de disfarçar a voz,
escrever sem muletas,
caminhar sem ter de pedir licença,
poder falar sem pautas.
Ou então, se parecer demais...

Sobreviurem? (*)

Ontem a palavra de ordem na Catalunha era "votaran" (votaremos). E assim foi, para muitos, com maior ou menor solenidade, com o formalismo censitário próprio (mas nem sempre assim foi). Rajoy fez o que lhe foi possível para evitar do sufrágio, recorreu à força e à força desproporcionada. Foi ultrapassado pelos acontecimentos e não controlou a guarda. E foi aí que cometeu o seu pecado, porque um Estado que não controla a sua guarda - sobretudo quanto esta não tem o sentido da proporcionalidade - ao tratar pessoas que querem exercer o seu direito de voto pacificamente, ainda que este não esteja autorizado, torna-se um estado perigoso. Talvez Rajoy e o poder em Madrid tivesse tido receio, mas o certo é que ontem, possivelmente, Rajoy perdeu a Catalunha. Os catalães têm ainda muito presente o tempo de Franco e não perdoam a Madrid nenhum excesso como o que se viu ontem.

Independentemente do oportunismo e da irresponsabilidade que possa existir na demanda pela secessão do lado dos independentistas, se Carles Puidgemont avançar com a proclamação da independência unilateral que prometeu ontem, no calor da "sua" vitória referendária, Rajoy não terá outra alternativa ao envio das tropas. Numa Espanha que ainda não se esqueceu da guerra civil e que ainda carrega as suas cicatrizes e rancores, a situação tem todos os ingredientes para se tornar explosiva se o diálogo não se estabelecer. A União Europeia, ainda mal refeita do embaraço do Brexit, tem agora uma frente muito mais urgente para mediar, antes que se perca o controlo.

Ontem ao ouvir "Els Segadores" (os Ceifadores), o hino catalão, ecoaram-me as palavras da letra de "Diguem No", de Raimón, o cantautor valenciano que optou por cantar em catalão:

"agora que estamos juntos
direi o que tu e eu sabemos
e muitas vezes esquecemos

Vimos o medo
ser a lei
Vimos o sangue
-o que apenas faz sangue-
ser a lei do mundo
[...]
vimos ser trancados
na prisão
Homens cheios de razão"


Talvez Rajoy e o Partido Popular não conheçam a letra de "Diguem No" e não se tenham dado ao trabalho de perceber o que está em causa. Talvez a União Europeia já chegue tarde do incêndio catalão, mas pode ser que ainda se evite o pior. A história ensina-nos que os povos sobrevivem a tudo, só não sobrevivem às guerras.
(*) sobreviveremos?