20 de novembro de 2018

Último poema

Hoje dormirei
no sono se perde uma memória
transfigurada, em rodopio
em corropio vazio de intimidade
batida por golpes de silêncio
olhares desviados transviados
 vozes emudecidas
cantando baixinho
palavras secretas, passadas

Hoje dormirei
profundamente
sem palavras, sem promessas
ou pétalas espalhadas pelo vento
sem pingo de sangue nem seiva
flores frias a secarem devagar
vozes emudecidas
cantando baixinho
palavras límpidas, amargas

Hoje dormirei
sem melancolia
ou a sofreguidão da primavera
porque se apagaram as luzes
porque se calaram as vozes
porque se devorou a alegria
das pequenas coisas
dos pequenos beijos
palavras vãs, imortais

Hoje estou sereno
ao leme das palavras
completamente vivo
voz emudecida
cantando baixinho
palavras secretas
palavas límpidas
palavras vãs.

15 de novembro de 2018

Quietly

Sigur Rós, Svo Hljòtt (Takk, 2005)


Avisto a causa do meu tormento
o céu a fechar-se sobre o contentamento
Aos poucos porei os olhos
na minha alma subjugada
donde pende o meu desejo

De dia em dia, de ano a ano
nada, engano
amor vão, onde ponho o pensamento
ao sabor do vento
do descontentamento.

Quanto mais me chego menos vejo
a cada momento
amor tirano, frágil
abandonado
e sem fundamento

                                 sem horas, sem limites



13 de novembro de 2018

O pós-pessimismo

A manhã nunca pede mais que uns versos
Depois da noite morrer longe
medindo o pulso à eternidade
na sombra da chama de uma vela

o dia é um pseudónimo
para o brilho do Sol que nos inebria
de luz para enganar as sombras
o rasto do escuro

Finjo crer, na madrugada,
que havemos de ir a Veneza
ou a Viena empolgados por projetos
que persistem perenes

Atiro a chave do pessimismo pela janela
Quem me dera um bulldozer
para arrasar esta visão
e asfixiar satisfatoriamente
o presente que não existe.

- Parvo!
[chama-me o teu sorriso que apaga todas as sombras]

2 de novembro de 2018

Uma nesga de rio

O dia acaba
com uma nesga de sol
filtrada por um vidro de janela
A pouca luz
enrola-se na noite
que abraça a terra
e o dia expira no eco longínquo
de um lento pulsar

Para a minha alma
apenas queria uma noite assim
encoberta pela névoa
flutuando sobre o rio
uma barcaça de cordas e madeiras
sem barqueiro
singrando rio abaixo
pela eternidade

Olho os vultos na margem
estátuas em cada lugar
Testemunhas imóveis
da história destas águas
Aguas
correndo, percorrendo
Vidas sem fim
vielas
onde se cumpriu
o que se cumpriu

Na alvorada,
o Sol brilha
beija a fonte, a erva fresca
o orvalho transparente adormece
um sorriso em murmúrio
sobe-me à cabeça
eu próprio
Adormeço