15 de dezembro de 2010

Sobre se: há bons pianistas a Sul?

Não. Quer dizer, não necessariamente, ou não sei sequer responder. A pergunta não tem de ser propriamente dirigida, mas a falta de direção tem um impacto semelhante a uma seta, daquelas que se fazem nos cadernos, a trespassar corações estilizados nas páginas centrais, para amaciar o tempo monótono das aulas enquanto se é adolescente à espera do tempo da liberdade do recreio. Eu não sei responder, claro. Nem percebo nada de pianos, nem de pianistas. Nem de música. Quer dizer, gosto de música, mas a pergunta não tem (ou tinha?), ao que eu percebi, nada que ver com a música. Era uma forma como outra de entabular conversa, como se se começasse por perguntar se as obras lá fora, na avenida, que se arrastavam, ainda demorariam muito tempo a terminar. Mas fiquei a pensar. Se hás bons pianistas a Sul. O que é um pianista? O que é um bom pianista? O que é ser bom? O que é o meu bom? E o teu bom? Eu sei que hoje não será o melhor dia para responder a isto, não por uma questão de auto-estima, mas sobretudo porque há imenso tempo que não oiço piano. O filho do vizinho que toca piano não conta. Toca piano horas a fio. Os acordes e escalas que oiço à saciedade sempre que vou despejar o lixo, passear o cão, fazer a minha sessão de jogging matinal, nada disso conta, é como som ambiente, como o sopro do vento no plátano do jardim que atravesso. É música, não questiono se boa ou má, está ali, é um dado adquirido. Percebo contudo que se deixasse de a ouvir seria uma perda. Logo é boa. Não sei se o filho do vizinho é um grande pianista, mas sei que as minhas idas ao lixo, a passear o cão, a fazer jogging não seriam a mesma coisa. Mas depois: há os momentos em que encontro o pai à esquina. Falamos. Por vezes sobre nada, prometemos que havemos de sair a correr juntos, mas ambos sabemos que nunca acontecerá. Sei que há que tempos que penso em praticar mais piano. É como a poesia, gosto de compor, para além de ler, mas sei que nunca nada será bom, ou pelo menos suficientemente bom. Sem qualquer falsa modéstia. É como se o que faço fosse apenas meu e não conseguisse tornar a criação, ainda que ligeiramente, unversal, ou pelo menos aceitável ao nível do meu bairro. Suponho que um bom pianista consegue ser universal. Eis uma resposta que me parece correcta. A universalidade é algo de importante para se aquilatar da bondade de alguém. Não o universalismo, sim a universalidade.
Um piano é universal. É algo que não pode deixar de ser universal. Mesmo quando se tentam trazer novos instrumentos para o firmamento dos instrumentos de música clássica, o piano, sabemo-lo, estará lá para sempre. A cabeça de um pianista tem de ser universal. E os dedos? As mãos? O talento?
Sei hoje que bom é aquilo que nos provoca um espasmo, um choque, que mexe connosco e nos faz procurar sermos melhores. Aquilo que em Kant se chamava "o sublime", que mais não é que a beleza, o belo, aquilo que nos comove culturalmente. Acho que é isso, a emoção é a base da criação. O bom é aquilo que nos comove
E por fim, o Sul. Há tempos conheci um afinador de pianos. Não os arranjava, apenas os afinava, de forma meticulosa. Vinha num dia de chuva, depois num dia de sol, de noite, de manhã, ao pôr-do sol. Experimentava uma sequência criteriosa de notas, sempre as mesmas. Era de uma terra no interior, nunca hava estudado, mas um dia descobrirara que tinha uma enorme sensibilidade auditiva. Não tinha um grande talento musical, mas os acordeonistas das redondezas não sabiam passar sem o seu ouvido. Era talentoso, portanto. Dos acordeãos ao piano foi um passo. Era um verdadeiro talento. Um dia propuseram-lhe um trabalho na capital, mas a Maria não queria abandonar a terra. Os animais. As vizinhas. E foi ficando. Era talentoso. Sabia tocar piano, aprendeu de ouvido peças populares, não fora a falta de mobilidade da mão esquerda e dir-se-ia que teria ido longe. Mas nem como afinador. Conheceu grandes pianistas, mas se lhe perguntassem o nome, não se lembraria de nenhum. Estrangeiros, cabelo grisalho, aprumado, de hotel ou de sala de concertos. O bom pianista, dizia, era aquele que tocava dentro de cada um que o ouvia, com a melodia certa, no momento certo. Com um piano bem afinado, evidentemente.
Em resumo: não há bons pianistas a Sul (nem a Norte, nem em lado nenhum): há pianos bons, bem afinados e há pianistas que os merecem. Sim, a Sul também os há (que los hay).

11 de dezembro de 2010

Al Vent

Em idos da década de sessenta ansiava-se por liberdade por toda a Península Ibérica. Do lado de lá da fronteira, como cá, multiplicavam-se as canções ditas de intervenção ou, como se designam na Catalunha, "nova cançó". Porventura das mais livres de todas, a voz de Raimón (Ramon Pelegro Sanchis) entoava "Al Vent". Lembro-me de a ouvir no rádio do carro familiar, quando se ia a Espanha, na década de setenta. O ritual da fila para o ferry que atravessava o Guadiana entre Vila Real de Santo António e Ayamonte, sob vento forte, a despeito da distância da Catalunha. Há dias, um sopro de vento mais forte na estrada trouxe-me de regresso aos ecos dessa liberdade que só o vento proporciona, primeiro cantada, depois reivindicada e finalmente celebrada. Quase em simultâneo, lá como cá, o vento soprou liberdade. Nestes dias de vento forte, de tempestade, as palavras de Raimón levam-me à infância, às memórias que não diria esquecidas, mas guardadas em qualquer lugar. O vento tem essa propriedade, de arejar as memórias, de as soltar sem nenhum plano pré-determinado. "Al Vent", ouvido quase trinta anos depois desse tempo, traz-me hoje, para além dessas memórias, a consciência de algo que se nos cola à pele: um grito de liberdade, de espaço interior, algo que se assemelha ao voo de uma ave sem destino por todos os mares do mundo.

Mas ao mesmo tempo, a informação à distância da ponta dos dedos, resolvi navegar noutro oceano. A internet mostra-me que Raimón, o valenciano que canta em catalão, hoje septuagenário, viveu sempre prisioneiro da sua canção. Talvez a palavra seja demasiado forte, porque as músicas não aprisionam, mas a verdade é que "Al Vent" se colou ao artista como uma segunda pele que nunca conseguiu despir. Persegue-o. A canção, uma das suas primeiras, leva já cinquenta anos e continua a ser o seu ícone, ultrapassou o criador. Cinquenta anos de uma carreira ao vento. Em 1993, aquando dos trinta anos da canção, houve um majestoso concerto no Palau Sant Jordi, em Barcelona. Estiveram presentes Paco Ibañez, Joan Manuel Serrat, Mikel Laboa, Pete Seeger, Pi de la Serra, Daniel Viglietti e até Luís Cília. O público acorreu em massa para celebrar a canção. Raramente uma única música teve semelhante protagonismo nem simbolizou tanto: a resistência contra o franquismo, o nacionalismo catalão, a liberdade de um povo. E no entanto, Raimón é considerado um traidor entre os seus de Valência, ele que se diz um "catalán de Xàtiva". Talvez porque cante em catalão e porque se diz catalão. Xàtiva é uma aldeia da "Comunidad Valenciana", situada na margem direita do Albaida e para muitos valencianos, dizer-se catalão constitui uma ofensa. Há coisas que o vento não apaga, mesmo após soprar durante décadas: as palavras, as memórias, as recordações. Tudo persiste. Por vezes, essas recordações são arejadas e regressam. Assim as músicas, os sentimentos, as emoções espalhados. Ao vento.

Al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.

La vida ens dóna penes,
ja el nàixer és un gran plor:
la vida pot ser eixe plor;
però nosaltres

al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.


24 de novembro de 2010

Um poema em 128 segundos

A noite derrama-se nas minhas palavras
A madrugada avança
Notas de música fria
húmidas
desenroladas numa pauta
ouvem-se ao longe
uma mulher chora.
A minha mão saltita no papel
acendendo aqui e ali uma vela
de esperança e pureza
Os meus pensamentos enrolam-se
batem num muro de palavras
O meu poema tinge-se de negro
talvez o meu melhor poema
Digo negro?
pelo que contém e não pela forma
como se edifica
Desbasto-o. Nenhum muro é suficientemente sólido
perfeito, eterno
e este muro que aqui deixo esta noite
fria, húmida
fragilizado
no corpo recém edificado onde se alojam já frestas por onde cresce a hera
amanhã a cal que o reveste secará ao sol
como a minha pele plena de sal
gretada pelas lágrimas que já soube derramar
Pela manhã haverá sol
e o meu muro
sólido, abrigará na sombra os lírios de que tanto gosto
enquanto no lado solarengo
se aparam os espinhos às rosas.
A minha carne soçobrará por fim ao cansaço da noite
e o meu sangue talvez abrande vergando-me ao sono
da manhã
Sorrio antes de enlouquecer
as palavras doem
o Sol já alto acode-me
na falta de limpidez do meu pensamento
Raio de luz
uma chama acende-se nos telhados
enquanto se desmorona por fim o muro
e se libertam em catadupa as palavras
que o meu coração aprisionava há pouco.


Hesperion XX Jordi Savall - Polorum regina omnium nostra .mp3
Found at bee mp3 search engine

1 de novembro de 2010

Um profundo adeus

Esta noite sei-te triste
(a)batida
como a areia lavada na maré vasa
gotas salgadas escorregando para o mar
em sulcos profundos como rugas
eferidas abertas
até à próxima maré.
Apetece-me sentar por ora,
em silêncio
na orla
naquela fronteira em que a areia
hesita entre ser seca ou molhada
onde nada é certo
a não ser a nossa amizade
e a certeza que partilho com as estrelas
a tua imensa dor.

18 de setembro de 2010

(Do not) Shoot the bear

Às vezes uma ideia consegue ser genial sem que resulte. Provavelmente não conseguiremos lembrar-nos da marca no final do anúncio, porque o conteúdo nos prendeu demasiado a atenção. Eis algumas sugestões para colocar no conteúdo interactivo: "hugs", "sleeps", "showers", "feeds".


19 de agosto de 2010

Águas de Março

Nada como um momento sublime de boa e leve música, para apagar a tempestade desta noite, em Alvalade.

14 de julho de 2010

A copa do mundo é nossa!

Segundo o Tratado de Tordesilhas de 1494, celebrado entre Portugal e Espanha, quaisquer conquistas ou descobertas efectuadas a Este do Meridiano dos 46º passa a ser pertença de Portugal. Assim sendo, a taça conquistada pertence a Portugal, pelo que deve ser entregue no mais curto espaço de tempo.
Alguém que tome a sua cargo a iniciativa, sugerindo-se o uso de DHL ou outra via de correio expresso, para o cumprimento do exposto.

Midsummer Concert, Steinvikholmen, Trondheim Fjord, Norway

1 de junho de 2010

Uma outra forma de dizer adeus

Despedida eterna
Zé Luis: começámos esta tua última viagem (tu gostavas de viagens) na cama 56 dos serviços de cirurgia 1 do Hospital de Santa Maria. Lia-te poesia e um dia parámos neste poema da Sophia de Mello Breyner:

”Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A Força dos teus sonhos é tão forte,
Que tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”.
.
Assim foi.
No teu visionário e intenso mundo, a voracidade de um cancro traiçoeiro não te consumiu a alegria, a coragem, a liberdade. Entraste pela morte dentro de olhos abertos. O mundo que habitavas era rico de ideias, de sonhos, de projectos, de honradez e carinho. Percebemos o que ia acontecer quando no fundo do teu olhar sorridente brilhava uma estrela de tristeza. Quando te deixava ao fim do dia na cama 56 e te trazia no coração enquanto descia a Alameda da Cidade Universitária a respirar o teu ar da Universidade, das aulas e dos alunos que adoravas, do futuro em que acreditavas sempre.

Foste intolerável com a corrupção, com os cobardes e oportunistas. Não suportavas facilidades. Resististe à sordidez, à subserviência, à canalhice disfarçada de respeitabilidade e morreste como sempre viveste - livre.

Uma palavra para aqueles que te acompanharam nesta última viagem: para os melhores médicos do mundo, para as melhores equipas de enfermagem e de apoio, num exemplo de inexcedível dedicação ao serviço médico público. Vivi com emoção diária o carinho com que te cuidaram. Uma palavra de gratidão sentida para o Professor Luis Costa e para o Paulo Costa. E para um velho amigo de sempre o Miguel. Também para Laura e para o Jorge e para a minha mãe e toda a família que nunca te deixou.

Por fim uma palavra para aqueles amigos que inventaram uma barricada contra a morte no serviço de cirurgia 1, cama 56, e te ajudaram a escrever, a pensar, a continuar a trabalhar: o João Gama, o João Pereira e senhor Albuquerque, cada um à sua maneira.
Suspiraste nos meus braços pela última vez cerca da 1,15 da madrugada do dia 14 de Maio.
Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos.
Provavelmente uma saudade ridícula, perante a força do exemplo e da obra que nos deixaste e me foi trazido por todos aqueles que te homenagearam – a quem deixo a tua eterna gratidão. Tenham a coragem de continuar.
[16.05.2010 - Maria José Morgado]

1 de abril de 2010

Este blog

termina [evidentemente] aqui - muito embora não sejam evidentes os motivos pelos quais efectivamente termina. Donde, creio que este clip pop assenta bem neste adeus. Obrigado e até sempre.


29 de março de 2010

Caminhos cruzados

Quando a Primavera de 2008 assentou arraiais na Europa, o jornal Público evidenciou a notícia com a foto de um tagarela-europeu a comer mirtilos num jardim em Minsk. Um facto tão importante como a chegada da Primavera, ou uma ave a degustar mirtilos não nos podia passar despercebido e por isso foi aqui devidamente assinalado. O que nos surpreende é que, precisamente dois anos volvidos desde aquele instante, a pequena ave voltou a ser motivo de destaque e teve direito a um poema apócrifo que nos sensibilizou e que por esse motivo transcrevemos:


Jizz - aves

Caio em mim
o comum da crise
a solidão o vento leve
o poço e o céu.

De relance reconheço-te
a tua mensagem cheia de sol
longe da terra ave da peste.

levo ainda cópias do teu voo
foge do olhar frio
o céu é teu.

primavera primavera
insurge-te.
.
Uma vez que regressámos a Minsk, uma ex-cidade do antigo império russo, occore-me, por associação de ideias, embora isso tenha pouco, ou mesmo nenhum interesse, que creio que muito poucas composições transcrevem tão bem o triunfo da chegada da Primavera como a abertura da quarta sinfonia de Tchaikovsky (mas fica ressalvado que não discordarei de quem defenda que o quarto andamento da nona sinfonia de Dvorak - dita do Novo Mundo - seja a obra certa para assinalar o evento).


Piotr Tchaikovsky, IV Sinfonia, I andamento

22 de março de 2010

A campanha Sussex Safer Roads vem conhecendo um sucesso enorme, em grande parte devido à mediatização do vídeo acima, que já foi visualizado por James Cameron, Bill Gates ou a própria rainha de Inlglaterra. Visite o site da campanha para saber mais.

4 de março de 2010

The Comedians, de Peter Glenville, 1967

(todo o filme disponível no You Tube)

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent


Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Les comédiens
Ont installé leur tréteau
Ils ont dressé leur estrade
Et tendu des calicots
Les comédiens
Ont parcouru les faubourgs
Ils ont donné la parade
A grands renforts de tambours

Devant l'église,
Une roulotte peinte en vert
Avec les chaises
D'un theâtre à ciel ouvert
Et derrière eux
Comme un cortège en folie
Ils drainent tout le pays
Les comédiens

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Si vous voulez
Voir confondu le coquin
Dans une histoire un peu triste
Où tout s'arrange à la fin
Si vous aimez
Voir comblés les amoureux
Vous lamenter sur Baptiste
Ou rire avec les heureux

Poussez la toile
Et entrez donc vous installer
Sous les étoiles
Le rideau va se lever
Quand les trois coups
Retentiront dans la nuit
Ils vont renaître à la vie
Les comédiens

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Les comédiens
Ont démonté leur tréteau
Ils ont ??? leur estrade
Et plié leurs calicots
Ils laisseront
Au fond du coeur de chacun
Un peu de la sérénade
Et du bonheur d'Harlequin

Demain matin
Quand le soleil va se lever
Ils seront loin
Et nous croirons avoir rêvé
Mais pour l'instant
Ils traversent dans la nuit
D'autres villages endormis
Les comédiens

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens,
Voir les magiciens,
Qui arrivent

Viens, voir les comédiens,
Voir les musiciens

Prefácio de um: conto climático ou em todo o caso nada parecido com isso, ou apenas o primeiro poema com uma nota de rodapé do autor

Era, evidentemente, de um reflexo aproximativo que se tratava, o que avistei quando baixei os olhos e me revi na superfície da água que à minha frente deslizava velozmente pelo leito do pequeno riacho. Não porque o tivesse visto assim, porque vi, mas sobretudo porque não sei se, tendo visto o tal reflexo aproximativo, este se tratava de um produto da minha imaginação, ou, pelo contrário, da água turva que o riacho levava, fruto da chuva intensa que caiu nos dias anteriores. A verdade é que, sendo embora a época das chuvas, o Instituto Meteorológico, pleno de lógica meteorológica, referiu-se àquele ano como um ano anormalmente pluvioso, e mais tarde, como um ano de chuvas anormalmente intensas, que os mais antigo sentiram como um mau presságio e que os mais novos sentiram como um corolário das alterações climáticas para que os cientistas e um ex-candidato à presidência de um dado país vinham alertando há muito, sem que os demais políticos de outros países estivessem na disposição de se empenhar em inverter o curso dos acontecimentos e em todo o caso não corressem o risco de ser penalizados nos sufrágios a que se submetiam, junto do comum cidadão, o qual estava, por um lado, mais preocupado em ser comum que em ser propriamente cidadão e por outro, nessa medida, nada preocupado em prescindir de ser inconscientemente comum para passar a ser um consciencioso cidadão. E assim, o reflexo aproximativo que vislumbrei era um reflexo do cidadão que eu próprio era, sem que esta análise tivesse em conta, nem por sombras, muito pelo contrário, a pessoa que eu era ou em que entretanto me tinha tornado.
.
hoje apetecia-me esgueirar(*)
para dentro de ti
antes do despertar da insónia
de 5 de março
.
de madrugada, acto 1 ou antes um simples acto contínuo
.
sussurro sossegadamente o teu nome
assim: xis
quase em silêncio
silêncio salgado na maré vasa
hesito
se escrevo
ou me travo de razões
?
ou antes adormeço
.
em todo o caso o mar ao longe
desperta-me
enquanto o sal se cristaliza na orla
das primeiras águas
depositadas na praia
evaporadas de emoções
como os teus lábios ressequidos
.
porque morremos assim?
.
(*) sem que tenha evidentemente a certeza que esgueirar seja a palavra certa

22 de fevereiro de 2010

pego-lhe mão
e nos segredos que revela
morreria de aflição
se
adivinhando o que lhe vai no coração
descobrisse que para além da razão...
.
[DELETE POEM]
.
Os primeiros minutos deste post foram, por assim dizer, desastrosos. A palavra amor ocorreu-me vinte vezes. As palavras saudade, rugas e futuro, dezasseis. Por oito vezes, pelo menos, pensei em utilizar a palavra quarenta e em pelo menos dez ocasiões a palavra poema surgiu-me esvaziada de qualquer conteúdo significativo. O certo é que verso e estrofe nunca me ocorreram, nem a palavra rima. Já a palavra Timbuctu, África e Elyne Road surgiram-me um número incontável de vezes. Assim como salinas e açoteia. Para sempre surgiu uma vez apenas, quando me lembrei do final de O Amor no Tempo da Cólera, sem que me tivesse passado pela cabeça qualquer concepção ou estimativa de tempo que lhe pudesse estar associado. Estranhamente, Madeira apenas me ocorreu uma vez, sms noutra e depois, também numa única vez, Alberto Caeiro, mas seguramente a propósito de nada. E assim o poema - sendo em todo o caso discutível que se lhe possa chamar poema - finalmente surgiu, fluído e isento de qualquer racionalidade, em estado puro:
.
Ouve
a minha voz
um solilóquio monótono
venerando as virtudes da escrita
e a beleza da tua alma
na manhã (im)perfeita
o meu rosto reflectido
no orvalho matinal da estrada
a caminho de lado algum
Toca-me
Cheira-me
Os teus sentidos confundidos nos meus
as minhas mãos entrelaçadas
nas tuas
o tempo
sincronizado com o toque
das tuas impressões digitais
na minha pele húmida.
.
(continua aqui)
.
Imagem: Red Riders, Carlo Borlenghi, para Alinghi

10 de fevereiro de 2010

Júbilo?
Sim
E se um de nós estiver errado?
Que destino haverá
num poema a latejar
que lembrança
luzirá
no teu olhar?

7 de fevereiro de 2010

Edificação (II)

Fica atenta
aos vestígios de tinta
indelével
no correio
que te leva o sabor
das minhas palavras
transcritas da boca para o papel

Ignora o tom agreste
Recompõe-te
imagina-me apenas sentado
não agressivo
a escrever enquanto penso
num recanto inacessível do teu corpo
num sussurro
apagado
do teu coração

Imagina
uma janela
debruçada sobre o mar
liso, brilhante
de um azul monótono
igual a tantas histórias
e pinturas tão simples

Imagina o meu coração
a descoberto
aberto
no ponto em que secou
em que as palavras secaram
o gesto murchou
e os lábios cerraram

Recorda o rumor do vento
e nele a minha alma
a minha alma
até ao infinito
à nocturna nudez
das malditas palavras
não-ditas
.
.
Imagem: Vertical Limit, por Carlo Borlenghi, para Alinghi

5 de fevereiro de 2010

Edificação

Talvez pudesse escrever
em verso e não em prosa
sem recorrer à Razão
a história daquele Homem
e daquela Mulher

Da sua indecifrável ferida
do ocaso do amor
das sombras de Rimbaud
do coração

da doçura perdidas
do desespero

sem solução

Do abismo
dos corpos
sem cor
Sem nenhuma cor
Em agitação.

Mas hoje

hoje não há segredos a desvendar.


[A Maria, a Sebastião]

A teoria do gato flutuante


Chegou esta madrugada, por email, uma das teorias que mais podem pôr em causa os estudos de Isaac Newton. Atenta a importância do que está em causa, não resisto a partilhar (clique na imagem para aumentar).

2 de fevereiro de 2010

Overdose nómada

hoje pintar-te-ia os lábios
da cor da luz
ou do mel
ou antes do lume
que arde na tua ausência

hoje pintar-te-ia o rosto
com a luminosidade do amanhecer
com o gesto leve da asa
de uma ave que se eleva
do ramo da oliveira

hoje repintaria as violetas
que me prendem à terra
e o meu canto nómada calar-se-ia
como o silêncio de um pássaro
no fim da migração

hoje o albatroz
dobraria
definitivamente as suas asas
e interromperia a sua navegação
contemplando o teu rosto delicado
de menina

A perfect day

Pavel Haas

Pavel Haas, estudo para Quarteto de cordas, Theresienstadt, 1943

1 de fevereiro de 2010

Vlastimil Kula


o teu corpo
uma precária liberdade

Poema Al Berto

Tricotar reticências
como quem acende uma fogueira
longe... do mundo
antes da chegada dos sonhos
quando se olha o mar sem se pensar
tricotar reticências...
dormindo

num movimento desordenado
exausto
de corpos desorientados
e mãos estendidas
Um rebanho de gente fascinada
por um místico
monólogo

estou
Al

alucinado
[Al]
pendurado
Acordo em
A[l]-
berto
sobres-
salto

na madrugada

lírios extemporâneos

26 de janeiro de 2010

A padeirinha de Estrasburgo


Edite Estrela foi muito criticada por discursar em castelhano (vá lá, haja boa vontade para aceitar que é castelhano). Mas pessoalmente sou da opinião que não há melhor forma de defender a língua portuguesa que a assassinar a espanhola a golpes de catanada. Consta que Zapatero não prescindiu da tradução simultânea.
Su rostro se alzaba en mi pensamiento:
- Sabes dónde está? - me pregunté.
- Creo que sí - murmuró una voz que apenas reconoci como mi propia voz.

Y entonces segui el camiño hasta el puente viejo
Lo atravesé
Sin mirar atrás
Bajo las estrellas

Y en la noche inmensa
sigo y le digo adíos


[Road to 40]

21 de janeiro de 2010

... e Mark Rothko

(mas hoje não há paciência para escrever sobre o assunto)
porque é noite
e os pássaros recolheram já a casa
esqueçamos o tempo
a eternidade
(nenhuma eternidade aliás)
silêncio
é Janeiro
escondamos os corações
(ponto parágrafo)
desvie-se o olhar
dos lírios murchos em cima da mesa
e o vapor de água
depositado numa superfície vítrea
em fúmeas deambulações
(ponto parágrafo)
silêncio
ouçamos, simplesmente
o trabalho das estações
(ponto final)

Zdzislaw Beksinski...



Zdzislaw Beksinski, Limited Editions, Belvedere Gallery