11 de julho de 2008

Prefácio de "Noites do Estreito"

[...] à noite, iluminado pela luz difusa de um candeeiro de leitura, Xavier desfolhou páginas dispersas do primeiro dos romances de Eric Sevlak. Por fim deteve-se no minúsculo prefácio, onde se lia:

Por sobre o Eu que eu sou
nunca houve uma ponte edificada
apenas torres de marfim
demasiado altas.

Passeio-me nesta cidade cinzenta e chuvosa cuja atmosfera já de si irrespirável se agravou com a revolução do início do ano. A minha infância, adormecida nas margens do Danúbio, voou para ocidente, para além do lado austríaco na margem próxima que apenas conheço pelos relatos entusiasmados do avô. O meu corpo está preso deste lado de uma cortina de neblina que paira sobre o rio como uma muralha férrea, que ora se dissipa, ora permanece a pairar, o que sucede mesmo quando a Primavera cai sobre Bratislava. Ao cimo da colina por vezes a simples visão do Castelo esmaga-me, mesmo que muitos o considerem o orgulho da cidade. As sinfonias de Mozart e Haydn que enchem as ruas, que tantas vezes eu próprio dedilhei e tanto me alegravam, soam-me por vezes como marchas fúnebres. Deixei este ano de tocar violino como a minha mãe tanto queria. Apenas o chilrear dos pássaros me alegra, quando a relva cresce nos curtos momentos em que o Verão passa por estas paragens. O meu espírito voa. E só isso me mantém são. Há um ano, um viajante deu-me um livro seu de relatos de uma viagem pelo continente sul-americano. Tinha profusas ilustrações feitas à mão por si, que me libertaram o espírito muito para além do que imaginara possível. Por agora é-me impossível sair de Bratislava, por isso parto apenas em espírito, para uma longa viagem de libertação. Para um país imaginário. E por agora apenas nas páginas deste livro. Bratislava recupera já dos escombros da guerra, mas o destroço que eu sou não me permite ficar. Por isso parto para longe, desde esta primeira página, enquanto posso.

Bratislava, 1948



L. van Beethoven, La Appassionata
(ou sonata para um homem bom)
excerto de Das Leber der Anderen (A Vida dos Outros)

1 comentário:

Anónimo disse...

Sinto a tua opacidade como crisântemos soltos pelo jardim. Ninguém chegará para fazer o que não deve ser feito:levá-los para dentro, emoldurá-los pelas salas sombrias.

Ao sol do sul o teu eu,
não mergulha, paira como um limbo, permanecendo os crisântemos e outras flores pairando.

Há camadas de lava por descobrir, selos e outros sinais que escondes.

Tatuagens que não escreverás, uma história por cumprir.

Sinto o teu parêntesis, é a tua ordem. o teu código de caos.

Tu saberás...Não me parece mal.

Dá-te o encanto dos portadores de segredos. T
T