16 de outubro de 2008

Pegou à sorte num dos vários cadernos de anotações em cima de uma escrivaninha coberta de pó onde se lia numa das páginas, a caligrafia irregular, pequena, mas levemente estilizada:

Os sonhos não perduram,
por vezes desabam como catedrais
de enredos bizarros
projectados em vitrais
superficialmente coloridos
mas vazios de ideiais.



"Fique à vontade" - dissera-lhe Jan - "e se vir o fantasma do velho Sevlak grite, estarei no andar de baixo a arrumar uns papéis. Ele normalmente não é agressivo, mas com um estranho nunca se sabe". Inicialmente parecera-lhe uma brincadeira, mas agora, apenas iluminado pela escassa luz de uma lâmpada coberta de pó pendurada numa trave do tecto, que a custo permitia a passagem de algum luminosidade, o vulto de Sevlak parecia poder surgir de cada canto. A um dos lados, um amontoado de caixotes constituía um chamariz. Mas no lado oposto à escada, várias telas dispostas ao alto monopolizaram as atenções de Xavier. Aproximou-se, olhando cautelosamente para trás de cada caixa e para o tecto, por onde penetravam fios de luz por entre as frestas das telhas. Pressentiu uma corrente de ar nas suas costas e voltou-se de imediato. "É só a tua imaginação meu velho, estás sugestionado pela história do fantasma do velho Sevlak. Ou é apenas um arrepio por saberes que estás quase a descobrir o teu graal? É ridículo. Que barulho foi este? Bolas, que lugar. Aqui estão as pinturas...merda, se tivesse um pouco mais de luz, espera, tenho aqui um isqueiro que me esqueci de devolver ontem, onde foi? Ah sim, no Restaurant Des Armes, tenho de lá regressar e entregá-lo". Outra corrente de ar. "A porta fechou-se, paciência, espero que não esteja trancada. Eis o primeiro quadro de Sevlak, parece que te vou conhecer um pouco mais meu velho e não se pode dizer que pintes mal de todo. Mas não serás a pessoa mais alegre. Um muro. E outro. Ainda outro. Espera, é sempre o mesmo, mas visto de ângulos diferentes e em momentos diferentes. E este? Um balcão de café, bancos altos, uma mulher sentada... é bonita, quem será?". A voz de Jan: "está tudo bem, Xavier?". Respondeu que sim, absorvido. Como é que alguém pôde desperdiçar o seu talento desta forma, pensou. Nunca se ouviu falar do escritor, nem do pintor Sevlak. "Ali, outro quadro". Um homem. Óculos e boina, gabardina comprida, sorriso tímido, boca larga, olhos inteligentes. Uma dedicatória a carvão, com caracteres levemente aparentados com a caligrafia dos cadernos de apontamentos: para Bertolt, uma pintura que não vale um vintém, como paga e agradecimento pela sua obra de três. Obrigado meu velho. Passos no lado oposto ao da escada. "Provavelmente alguém que passa na rua" - pensou - "mas parecem cá dentro. E ali, que mais há naquele canto?".

2 comentários:

Anónimo disse...

Não perduram porque se concretizam?

Anónimo disse...

ou ficam sem lenha para queimar.