20 de outubro de 2008

"Mais diários". E de facto assim era. Duas caixas de papelão cheias de diários, pequenos livros pouco maiores que um bolso com capa de pele fechada por um pequeno elástico, amontoados uns em cima dos outros, com uma breve indicação do período retratado na capa, preenchidos por textos, desenhos, ilustrações, pensamentos dispersos, esboços. De cartas e confissões, liminarmente dispersas, palavras soltas como batidas pelo vento do tempo, mas presas ao papel para não se apagarem. Um delírio para Xavier. "A alma de Sevlak" - pensou - "estou próximo do seu centro. E ali? Os manuscritos dos livros, certamente, e mais adiante uma edição nova, sem título, nunca colocada à venda...". Deu uns passos, absorvido pela observação dos objectos que o rodeavam. Coseu-se com as sombras do espaço e habituou-se progressivamente aos vultos. Subitamente, a visão de uma mão negra, enluvada, sobressaltou-o. Porventura uma sombra, outra sombra? Um instante de receio apenas e a turvação dos sentidos, seguida do negrume, o desmoronamento da consciência e a cedência das pernas. A voz de Jan trouxe-o de regresso ao mundo dos vivos, acompanhada de uma dor latejante na fonte esquerda.
- Ei-lo! Como se sente? - perguntou Jan, estendendo-lhe uma bebida açucarada.
- Que se passou? - perguntou Xavier Dias, procurando recordar-se dos últimos instantes, sem se conseguir verdadeiramente erguer do leito de ferro enquadrado pela pintura dos pecados, sucumbindo as suas resistências ao olhar da Ira, uma mulher ruiva e sardenta retratada de dedo em riste e um queixo anguloso, de lábios cerrados escondendo uma fiada de dentes brancos que apenas se adivinhava encaixada num rosto fogoso enquadrada por uma cidade incendiada, cujo casario se equilibrava numa colina na distante paisagem da colina de um apocalíptico vulcão em chamas, clamando o fim dos tempos enquanto cuspia as trevas pelo topo do cone. A mulher envolvia-se numa túnica branca, parte da qual esvoaçava ao vento, descobrindo parcialmente um seio branco.
- Ouvi um baque e chamei-o. Como não me respondesse fui procurá-lo e encontrei-o tombado no chão.
- Fui atacado. Alguém me golpeou...
- Não creio. A única passagem para cima é por aqui e garanto-lhe que eu teria visto alguém passar,se fosse o caso. A menos que tenha sido o velho Sevlak!
- O fantasma? - questionou Xavier, incrédulo.
- Porquê? Não acredita em fantamas, Xavier?
- Claro que não - disse este descartando a ideia, enquanto limpava a testa com as costas da mão direita - preciso de ir lá a cima novamente.
- Tarde demais meu caro, está escuro, volte amanhã.
- Eu insisto...
- Se prefere, suba.
Xavier subiu, como pôde, as escadas íngremes de acesso ao último piso. A claridade filtrada pelas telhas apagara-se e o bréu invadira já o espaço do piso superior. As caixas contendo os diários haviam desaparecido, excepto os poucos exemplares que se achavam sobre a escrivaninha junto ao topo da escada. E os três caixotes contendo os manuscritos e as edições mais recentes dos livros de Sevlak haviam igualmente sido retiradas sem deixar rasto.
- Jan...
- Não lhe sei explicar Xavier. Não compreendo. Estou desolado. Venha, por favor desçamos, faz-se tarde, amanhã veremos o que se pode fazer.
Despediram-se ao nível da rua. Jan entregou a Xavier um lenço com meia dúzia de cubos de gelo para aplicar no hematoma que entretanto começara a inchar. Arrefecera, e a humidade da noite tornava-se visível e espessa, como um manto iluminado pela luz amarelada dos candeeiros da rua, reflectida nas pedras do pavimento escorregadio. A tarde dera lugar à noite húmida, como se o rio tivesse passado a respirar exalando o seu hálito bafiento sobre a cidade, impregnando-a. Nesse instante Xavier deu pela falta do telefone que carregava no bolso do casaco. Amanhã teria de regressar a procurá-lo. Nesse instante pensou em Clara, certamente estaria já preocupada, porventura teria acordado e por isso apertou o passo para ir ao seu encontro, depois de levantar a gola do agasalho, protegendo-se do que poderia muito bem ser o prenúncio de uma nova era glacial. Algo não batia certo em Arles, pressentiu, mas a despeito disso o carrilhão do campanário assinalou, pontual, as oito horas. Somente o tempo mantinha imperturbável o seu passo.

Sem comentários: