20 de outubro de 2008

O Caçador de Tesouros

Não conhecia Le Clezio. Ainda não o conheço, verdade seja dita, mas o certo é que nunca tinha ouvido falar de Le Clezio até à semana passada, quando foi anunciado o vencedor do Nobel da literatura. Evidentemente, a curiosidade. E por ela se tomou O Caçador de Tesouros, na edição recente da Assírio & Alvim, traduzido por Ernesto Sampaio, que não passa despercebido nos escaparates. Não tem que enganar, capa encarnada, lisa, lombada azul-vivo mesmo ao lado da expressão carrancuda de Diego e Frida (do mesmo autor). Adiante pois. Pese-se antes de mais a densidade de um livro não muito longo, o peso das palavras nas mãos como deve ser a regra antes de se abrir qualquer livro. E adiante, que a curiosidade. Vire-se a capa, passe-se pela dedicatória singela ao avô Léon e eis a narrativa, que desaba desde o primeiro parágrafo

"Sempre me lembro de ter ouvido o mar. De mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído de fundo que acompanhou a minha infância. Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá. O marulho lento, incansável, das ondas que se quebram ao longe na barra de coral e depois vêm morrer na areia do Rio Negro. Não passa um dia sem que vá ao mar, nem uma noite sem acordar com as costas alagadas em suor, soerguido na minha cama de campanha, afastando o mosquiteiro e procurando avaliar a altura da maré, inquieto, tomado dum desejo que não compreendo.
Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes, vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o, o mar mexe-se, respira. [...]
O mar está dentro da minha cabeça, e é ao fechar os olhos que melhor o vejo e ouço, que consigo distinguir cada ribombo das vagas separadas pelos recifes e logo de novo unidas para virem quebrar-se na costa. [...]
Nada existe mais, nada a não ser o que sinto, o que vejo, o céu tão azul, o estrondo do mar a lutar com os recifes e a água fria que me escorre na pele. [...]
Abro os olhos e vejo o mar. Não o mar cor de esmeralda que via outrora nas lagunas, nem a água escura diante do estuário do Tamarindo. É o mar como ainda não tinha visto, livre, selvagem, dum azul inebriante, o mar que levanta o casco do navio, lentamente, vaga após vaga, ente sulcos de espuma percorridos por centelhas. [...]
Agora sei onde estou. Encontrei o lugar que procurava. Após estes meses de vagabundagem, sinto uma nova paz e um novo ardor."

Fica-se preso, como numa teia, à procura do tesouro, que se vai descobrindo página a página, em cada descrição ou episódio da narrativa. Le Clezio escreve. Sempre com o mar em fundo, omnipresente, como um personagem secundário que afinal é principal. O mar que sai de dentro do narrador (estamos avisados desde o primeiro parágrafo, de resto), porque se percebe o grau de intimidade deste com a água salgada. Não é apenas poesia, ou figura de estilo vulgar, não se trata apenas de um passeio à beira-mar, na praia, no molhe batido pela vaga de Inverno, de dizer que se gosta do mar mesmo quando efectivamente se gosta (e quem não gosta?); nada disso, aqui trata-se de água salgada misturada com sangue, a correr nas veias, linhas, parágrafos. E então tudo muda de figura, muda obviamente de figura. É um livro do mar. Por isso, no fim, guarde-se num sítio especial da estante. O mar preparou-nos este segredo, este tesouro. É disso que se trata.

3 comentários:

CCF disse...

Bem bonito! Já fica na agenda das compras.
~CC~

Anónimo disse...

No meio do furacão, no centro da distância que se instala até ao nosso eu, quando as tarefas parecem maiores do que a própria vida, o roubo dos três minutos para ler os 1ºs parágrafos do Prémio Nobel, são como um xarope de fambroesas.

A literatura, desta literatura sem artíficios literatos que fala de sangue ao sol, permite enfrentar os longos dias cheios de nada.T

vieira calado disse...

Não conhecia o blog.
Traz matérias interessantes.

Bem haja