29 de outubro de 2008

O livro de Sevlak aberto em cima da mesinha de cabeceira, na nota de abertura escolhida pelo próprio
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O amor revela as qualidades sublimes e ocultas daquele que ama, o que nele há de raro, de excepcional; nesse aspecto facilmente engana quanto ao que nele há de habitual.
Friedrich Nietzsche
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a lâmpada acesa, a cama no quarto por fazer, a coberta em desalinho no chão alcatifado, uma nota rabiscada a lápis num papel mal arrancado de um bloco de notas caído em abandono no chão
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Adeus Xavier, o nosso caminho termina aqui. Eu sei que sabias que teria de ser assim. Perdoa-me por não conseguir mais, mas não sou capaz. Não sei se me entendes, ou sequer se quererás entender, mas é a única coisa possível para mim, dentro de mim. Perdoa-me a cobardia de não esperar por ti, de não ter a capacidade de te dizer isto frente-a-frente, mas acho simplesmente que é melhor desta forma. Tenho receio da tua reacção, prefiro não enfrentar o teu olhar grave e zangado, nem ter de te atirar com as culpas, porque sabes que isso aconteceria inevitavelmente. Sou um animal ferido, Xavier Dias, e por isso acabou, não me procures mais, seria desastroso. Sê feliz, tanto quanto conseguires. C
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Xavier sentiu os joelhos dobrarem-se e depois o peso do corpo a desabar. Faltou-lhe a voz para gritar, esmagou o papel na palma da mão até a marcar e atirou-o contra a parede, com força suficiente para ter a sensação que a varara. Enterrou a cabeça nas mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos vergados. O urro de homem ferido foi inaudível, mas dilacerante, como a garra de um felino que rasga o peito da sua presa para a cravar no coração que bate apressadamente enquanto a vida se esvai. Ao mesmo tempo que a fúria o preencheu, Xavier consegiu perceber exactamente o alcance daquelas palavras, o efeito pretendido, o momento escolhido. No preciso momento em que estava perto de chegar a Sevlak, o seu objectivo, Clara propusera-se e conseguira atingi-lo de forma mortal; na verdade, planeara com sucesso fazê-lo, de forma impiedosa, certeira e premeditada. Nietzsche, que até então ignorara, a despeito de ter uma ligação com o passado de Sevlak, tinha inevitavelmente razão.

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