7 de outubro de 2008


A noite cálida não permitiu que Consuelo pegasse no sono. Talvez porque o colchão macio da espreguiçadeira fosse demasiado confortável ou porque o toque suave da manta acariciando o seu rosto a fizeram recordar a sua infância remota. Feliz. Ou pelo menos recordava-a assim. Aprendera a recordá-la assim. Richard dormia no quarto. De onde estava não o via, mas conseguia sentir a sua presença. O dia fora extraordinário, maravilhoso, arrebatador. Ele surpreendera-a com uma viagem, um jantar maravilhoso, num dos melhores restaurantes de toda a Espanha e agora um hotel perfeito. Nada falhara nessa noite, nem o brilhante que lhe oferecera quando a pediu em casamento imediatamente após a sobremesa e ela não conseguira balbuciar uma resposta, pois fora imediatamente felicitada por Julian, o chefe de sala.
Os últimos dias deslizaram pelo seu pensamento à velocidade estonteante da luz e imediatamente a seguir vieram as recordações dos últimos anos e depois o flashback de toda a sua vida, assim despertada pelo toque aveludado daquela manta. A infância feliz, interrompida pela separação de seus pais, a rebeldia como revolta pela perda da referência paterna, as amizades, as companhias menos recomendáveis, uma adolescência em desnorte vivida num fôlego, na companhia de artistas que gostavam de achar que se davam com a nata da sociedade mundana, de quem sorviam alguns trocos com que se entregavam à boémia nas calles. Achou que era um deles e na primeira gravidez, seduzida numa festa por um respeitável senhor, percebeu o seu engano. Sozinha, prostituiu-se numa festa decadente convidada pelo respeitável senhor, a fim de obter o dinheiro para o desmancho, que fez em Londres. E depois um respeitável jovem, novo desmancho, como então se dizia, mas dessa vez o dinheiro fora-lhe dado pela respeitável mãe do respeitável jovem de ilustres famílias, com um promissor futuro à sua frente na condução dos negócios de família e um casamento aprazado desde longa data, com uma jovem de sangue azul, ou cor parecida. Um amigo socorreu-a e deu-lhe trabalho numa galeria em Londres nos tempos que se seguiram. Perdeu-se no nevoeiro da city e lavou pratos, uma ocupação melhor remunerada e de resto tão boa como outra qualquer para acalmar um estômago vazio e uma alma moribunda. Regressou a Sevilha. Os que conhecera outrora olhavam-na então como uma balconista de loja e nas recepções que frequentava como empregada, ou a que assistia do lado de fora de uma montra, por vezes fingiam que a reconheciam quando lhe pediam uma flute de espumante barato ou um canapé, ou lhe acenavam com pena. Um dia alguém reparou nela, na inauguração de uma exposição do pintor Francisco Falcón, então na moda. Conheceu alguém, um rico senhor, investidor imobiliário, dizia-se, e também comerciante de carnes de passado obscuro e pleno de garbo, que a desposou em segundas núpcias depois de se separar da sua primeira mulher, destruída física e emocionalmente. Raúl Jimenez. Haviam-lhe raptado um filho, Artur, por causa do passado obscuro do pai, um passado sobre o qual Raúl nunca quis falar, mas que se descobriu ter algo de comum com o pai de Javier Falcón. Javier. Com este encontrara o rasto de Artur, no Norte de África. Artur tornara-se já então um homem próspero, fora adoptado pelo raptor e pelo rancor e por este renegara o pai e o seu país depois de se aperceber que nenhum dos dois se preocupara em encontrá-lo durante toda a juventude. Fizeram amizade com Javier Falcón. Javier, o inspector jefe acabara de reentrar nos seus pensamentos, na noite em que devia estar feliz. Richard dera-lhe o que ela, Consuelo, queria ter tido toda a sua vida. Uma noite de sonho e paixão sincera. Limpou com as costas da mão esquerda a lágrima que escorria pela sua face e escondeu os olhos na dobra da manta, ao mesmo tempo que encostava a cabeça para trás. Suspirou. E desatou o turbilhão da sua alma: odeio-te Javier Falcón, por não me teres sabido amar como eu precisava. Por te teres afundado nos teus problemas, nos teus casos de polícia, nos teus mortos, no teu trabalho. Odeio-te pelas teias de aranha que tens na cabeça e pela maior ainda que tens na escada de acesso à açoteia principal da tua casa, que nunca te lembraste de remover. Odeio os teus sapatos, que calças sempre, dia após dia. Odeio as tuas idiossincrasias, a tua forma de ver o mundo, como se fosses um estranho no mundo e não lhe pertencesses. Ou simultaneamente como se estivesses em casa em qualquer lugar recôndito e inóspito. Quem me dera não ter atravessado o rift contigo montada no dorso daquele horrível camelo, ou dromédário, ou o raio que o parta, ou nunca ter deitado a cabeça no teu ombro, ou ter sonhado que o mundo não era suficientemente grande. Odeio-te Javier Falcón. Estás a ouvir-me? Odeio-te. Por não teres percebido que eu só queria ter sido uma criança, que não me tivesses tratado como uma criança, a tua criança, por uns breves instantes. Queria isso. Muito isso. E só depois crescer. Maldito sejas Javier, por te ter amado tanto que julguei que ia explodir. Malditos sejam os teus olhos, que me vararam profundamente, me despiram, me expuseram e me fizeram vacilar nos meus alicerces. Eu sou forte, ouviste? Como te atreveste?
Ouviu Richard virar-se na cama. Silenciou os seus pensamentos, levantou-se e olhou pela o horizonte, onde a claridade da manhã despontava. Sentiu-se confinada no espaço amplo da varanda que deitava sobre o Mediterrâneo. O Mediterrâneo, com o qual e pelo qual tanto sonhara, versejara e consumira horas de poesia. E agora não se conseguia desligar dos mortos dos barcos clandestinos que o atravessavam, dos negreiros, das gentes subsaharianas de Mellila que vivem enclausuradas nos campos aguardando a deportação ou a passagem para a Europa. Javier trouxera-lhe isso também, nas conversas em frente à lareira de pedra, ou deitados sobre o tapete da tijoleira depois de fazerem amor, enquanto ainda tinham a pele transpirada. Mazelas do mundo. Um mundo que ela aprendera a pintar com todas as cores da ave-do-paraíso, mas que afinal também podia ser cinzento e negro. Os seus passos de ansiedade eram ritmados, por sobre o pavimento de madeira, silenciosos como os da fera enjaulada. Acalmou-se por fim e deitou-se novamente na espreguiçadeira, onde o cansaço da noite e a brisa da aurora a embalaram por fim.

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