30 de outubro de 2008

Perto da meia-noite, Javier fechou a porta do gabinete, apagou a luz e saiu devagar deixando para trás o corredor a soltar os ecos dos passos e das vozes que o animaram durante o dia. Lá fora, o ar quente da noite de Sevilha misturou-se-lhe com a secura da garganta e ao longe um cão uivou enquanto uma mulher discutia com alguém junto à janela aberta de um edifício vizinho nas traseiras da jefatura. Mais longe, o choro de uma criança de colo com cólicas chegou ao pátio onde o inspector jefe tinha o seu seat estacionado. Sevilha estava normal. E por isso Javier Falcón resolveu percorrer a pé os cerca de três quilómetros que separavam o edifício da jefatura de sua casa, procurando traçar mentalmente o maior percurso possível a percorrer à beira do Guadalquivir. Principiou a caminhar e, perto da ponte de San Telmo, pareceu-lhe ouvir passos atrás de si, parecendo-lhe vislumbrar um vulto. Estacou o passo e em seguida voltou a acelerá-lo, sem contudo se voltar. A meio da ponte parou e acendeu um cigarro, olhando discretamente em redor. Não viu ninguém, com excepção de um ou outro veículo que àquela hora circulavam em direcção a Triana transportando gente para um começo tardio da noite. Prosseguiu devagar. Uma estranha ansiedade fê-lo pressentir que a abóbada de estrelas acima de si ameaçava desabar, fruto sem dúvida do seu instinto treinado, o que era comum quando algo estava para acontecer, ou quando a presença de alguém fora do seu campo de visão era sentida. Continuou a caminhar devagar. No fim da ponte, já do lado oposto do rio, aguardou um pouco e como não visse ninguém, avançou ao longo da margem esquerda, procurando no bolso por outro maço de cigarros. Reviu o dia e recordou-se que não tinha comparecido à entrevista marcada com o apresentador de televisão "como se chama o fulano? Ah sim Mendez Nuñez", e tinha-se esquecido de o avisar. De qualquer forma este deveria ter estado ocupado em noticiar as mortes, "como um abutre farejando carne em decomposição" pensou.
-Esta cidade tem um odor sufocante, não acha inpector jefe? Quer dizer, quando as laranjeiras não estão em flor...
Um vulto negro ao seu lado, junto de um candeeiro apagado, cujo rosto não vislumbrou na contraluz da luminosidade da margem oposta, estendeu-lhe um cigarro:
- São bons inspector e descanse que não são de contrabando. Importa-se que o acompanhe? A noite está demasiado pesada para ser suportada por um homem só.

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