8 de outubro de 2008

Vislumbres [de poemas passados]
meandros, esteios e ravinas calcinados
que recuso percorrer...

O dia nasceu cinzento em Arles. Xavier acordou e na penumbra do quarto sentiu a forte presença da ausência de Clara. Pela forma esvoaçante dos cortinados pressentiu-a lá fora, na varanda empedrada e levantou-se, caminhando em direcção à saída para o exterior. Clara dormitava encolhida sobre uma espreguiçadeira, coberta por uma manta finamente bordada por gotas de orvalho, que a defendia igualmente da escassa claridade possível cuja passagem as pesadas nuvens baixas apenas permitiam com cerimónia. Pegou na mão de Clara e sentiu-a abandonada e fria. Sentou-se na espreguiçadeira ao lado, contemplando o rosto da mulher que amava. Sentiu uma imensa ternura por ela, mas percebeu igualmente o abandono naquela mão adormecida... olhou para a carteira vazia de comprimidos pousada na mesa de apoio. O copo de água igualmente vazio. Pegou em Clara ao colo e penetrou na penumbra do quarto, amparando-lhe a cabeça no ombro e deitando-a em seguida na cama. Transpirava. Com uma toalha húmida enxugou-lhe a face e a testa. Mandou servir o pequeno-almoço no quarto e passou a manhã a trabalhar em silêncio, consultando anotações e revendo apontamentos, desviando por instantes o olhar na direcção de Clara, ou levantando-se ocasionalmente para lhe ajeitar o travesseiro quando esta mudava de posição na cama. Perto das três da tarde aproximou o rosto da boca da mulher e sentiu-lhe o odor inebriante da respiração profunda. Tocou-lhe a testa com os lábios, escrevinhou uma mensagem num rasgo de papel que colou no espelho e saiu silenciosamente depois de pendurar o essencial do not disturb na maçaneta exterior.
Prolongou os passos em pontas de pés pelo corredor e apenas normalizou a respiração quando entrou no patamar do piso abaixo do que ocupavam. Já na rua, olhou ainda para o parapeito da varanda e afastou-se rapidamente, diluindo-se no movimento da tarde que se adiantava, ameaçando chuva grossa.
Não teve dificuldade em encontrar a morada que lhe fora dada na noite anterior pelo músico. Era um edifício antigo, estreito, de três pisos encimado por uma água-furtada, situado numa rua secundária, sem trânsito, que visto do exterior apresentava um aspecto pouco cuidado contrastando com os edifícios vizinhos. A fachada amarela desbotada era contudo uma nota de destaque por comparação com as cores discretas empregues nas demais casas na rua. Xavier confirmou a morada e aproximou-se, espreitando discretamente pela penumbra da janela ao nível da rua, sem que avistasse vivalma, ou distinguisse alguma coisa no interior. Fechou a mão e aprestava-se para bater na porta maciça de carvalho, quando esta se abriu exibindo o semblante sorridente de Jan Hoecht:
- Entre Xavier, aguardava-o. Vejo que está sozinho.
Pareceu desiludido.
- Clara está cansada, esteve a pé a trabalhar a noite inteira, optou por ficar a descansar. Pede desculpa, mas não estava em condições. E este clima... - desculpou-se Xavier.
- É verdade! Encharca-nos os ossos. Não obstante, nem sempre é mau, por vezes inunda-nos de alegria, sobretudo quando a lavanda floresce... já viu os campos de lavanda Xavier?
Xavier Dias oscilou a cabeça de um lado para o outro.
- É o paraíso Xavier. Do lado de lá do Reno falta-me isso. Coisas que me ficaram da infância. Suponho que me entende? Sabe? Van Gogh não resistiu ao encantamento da lavanda. Diz-se inclusivamente que pintou centenas de quadros dos campos de lavanda em redor de Arles, enlouqueceu, gastou todo o dinheiro que tinha em tintas, pincéis e telas. E para não lhe chamarem louco diz-se que escondeu tudo numa gruta dos arredores. Consta igualmente que um coleccionador de arte sabe dessa gruta e não revela os trabalhos para manter a cotação dos quadros. Já imaginou a catástrofe para o mercao de arte se isso acontecesse, Xavier?
Desta vez a resposta foi afirmativa. O olhar de Xavier no entanto atraíra-se na direcção de um enorme painel pintado que cobria uma das paredes do primeiro piso, no qual haviam sido derrubadas todas as divisórias entre as salas.
Jan afastou-se e acendeu uma luz ao centro que inundou de cor a obra, que pareceu ganhar vida.
- É espantosa, Jan. É sua?
O músico riu-se:
- Se tivesse esse tipo de talento nunca seria músico Xavier. Cada um nasce para o que está talhado. Eu limito-me a fazer os possíveis por conservar esta pintura, mas não fui agraciado com o dom. Foi-me pedido pela minha mãe que a conservasse para sempre, fez-me prometer-lhe que o faria, mesmo antes de morrer. Ali, naquela cama que vê ao canto da sala.
Apontou na direcção de um leito estreito de ferro enferrujado na parede oposta ao quadro, ao lado do qual havia uma humilde mesa de cabeceira com pés enegrecidos pela humidade que subia do solo, sobre o tampo da qual jaziam dois livros amarelecidos e uma lâmpada de latão fazendo as vezes de candeeiro. Continuou:
- Perguntou-me por Sevlak. É dele a pintura. Um génio amaldiçoado pelo seu talento. Pintava. Escrevia. E compunha. Genial em qualquer domínio. Efervescente, digo-lhe mesmo. Mas por isso mesmo, intranquilo. O dia não lhe chegava para se esgotar. Não tinha horas. Esquecia-se de comer, de tomar banho, de mudar de roupa. Pintava horas a fio e depois sentava-se a escrever. Música, poesia, narrativas, em ciclo ininterrupto. Que por vezes destruía por achar que não eram suficientemente geniais. Escreveu centenas de peças, fez milhares de esboços, mas destruiu tudo, sobrou muito pouco. Não me esqueço do dia em que apareceu aí. Eu era adolescente, teria uns quinze ou dezasseis anos. A minha mãe apresentou-mo. Dizia que tinha tido uma visão, uma ideia fabulosa, a obra-prima. Pediu para ficar e ela deixou-o.
Xavier aproximou-se do centro da sala, contemplando detalhadamente os elementos da pintura, quase lhe roçando os dedos, como se as partículas do ar reflectissem a textura das cores.
- Dir-se-ia Vermeer...
- Sim, percebo o que quer dizer, Xavier. Conheço cada detalhe desse maldito quadro. É genial, mas para mim a promessa que fiz é uma maldição e vejo-o mais sob esse prisma. Conservá-lo é um imperativo, pela promessa que fiz, mas sobretudo porque sei que não existe igual. Nem a Vista de Delft se lhe equipara... Se quiser, é uma questão de consciência, um imperativo ético, que não deixa de me aprisionar, nem me perimite adormecer, como se fosse um pesadelo onde não me pudesse permitir acordar, sobretudo porque odiei Sevlak. Passava horas a pintar, a misturar cores, a apurar, a fazer, a desfazer e a refazer cada detalhe, ignorando o mundo, ou melhor, antes procurando aprisioná-lo neste pedaço de mural. Está a ver a Vaidade, naquele canto?
Jan apontou para uma mulher magra de olhar cadavérico que evocava ligeiramente a Judith de Klimt. E prosseguiu:
- Andou seis meses pela província à procura daquele olhar. Atrasou a obra. Nenhum lhe pareceu suficientemente bom, ou deverei antes dizer suficientemente mau? - disse em tom irónico.
- A vaidade?
- Sim, trata-se de um retrato dos sete pecados capitais, Xavier, embora, provavelmente não tenha reparado, dado que existem oito personagens no quadro, sete mulheres e um homem.
- A personagem de costas?
Jan anuiu.
- Sevlak? - perguntou Xavier.
Nova afirmação:
- O diabo em pessoa, a tentar expiar os seus pecados numa obra magistral. Dois anos de trabalhos forçados a ouvir Die Sieben Todsünden. Não sei se conhece a obra...
- De Kurt Weil?
- O próprio, com textos de Bertolt Brecht. Suponho que se conheceram em Berlim, conhece a obra Xavier?
- Vagamente, sim.
- De modo que durante dois anos Erik Sevlak se fechou neste pardieiro a fazer a obra-prima com que expiaria os seus pecados capitais. Alicerçado na composição de Weil e nos poemas de Brecht, estes seriam ilustrados pelo seu quadro. A experimentação máxima do tom da cor, ou do timbre da cor, uma teoria explorada por Kandinsky que fez escola junto de alguns autores alemães e russos. Sevlak foi contagiado pela teoria. Andou obcecado com a ideia e afinava o som da grafonola como se este fosse mais um item na mistura das cores.
- E os livros, Jan?
- Tem razão, que esquecimento o meu. Como creio que saberá, Sevlak escreveu alguma coisa e publicou alguns trabalhos, temo que sem grande sucesso. Creio que vivia da caridade do editor, que o explorava, dado que Sevlak apenas se preocupava a partir de determinada altura em poder comprar novos materiais para criar cores e pinturas, ou partituras de cores, como gostava de dizer. mas desculpe-me, divagava... Ah sim, guardo alguns exemplares publicados nas águas-furtadas. Venha, cuidado com o terceiro degrau, a ver se na próxima vez que vier a Arles me ocupo dele. Nunca tenho tempo, ou não me lembro de tratar disso, sabe, raramente venho aqui acima, acho que o fantasma do velho Sevlak assombra esta casa e prefiro não tropeçar nele, pelo que lhe deixo o sótão. É um bom acordo, evito ir ao sótão, dividimos o espaço e assim tudo corre bem. Passe adiante, por favor. Espere um instante, eu acendo-lhe a lâmpada. Espero que o fantasma do velho esteja a dormir a sesta. Foi um hábito que lhe ficou de quando viveu em Espanha, por uns tempos. É o que me vale quando preciso de aqui vir livrar-me de umas teias de aranhas e do excesso de pó.

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