30 de outubro de 2008

Perto da meia-noite, Javier fechou a porta do gabinete, apagou a luz e saiu devagar deixando para trás o corredor a soltar os ecos dos passos e das vozes que o animaram durante o dia. Lá fora, o ar quente da noite de Sevilha misturou-se-lhe com a secura da garganta e ao longe um cão uivou enquanto uma mulher discutia com alguém junto à janela aberta de um edifício vizinho nas traseiras da jefatura. Mais longe, o choro de uma criança de colo com cólicas chegou ao pátio onde o inspector jefe tinha o seu seat estacionado. Sevilha estava normal. E por isso Javier Falcón resolveu percorrer a pé os cerca de três quilómetros que separavam o edifício da jefatura de sua casa, procurando traçar mentalmente o maior percurso possível a percorrer à beira do Guadalquivir. Principiou a caminhar e, perto da ponte de San Telmo, pareceu-lhe ouvir passos atrás de si, parecendo-lhe vislumbrar um vulto. Estacou o passo e em seguida voltou a acelerá-lo, sem contudo se voltar. A meio da ponte parou e acendeu um cigarro, olhando discretamente em redor. Não viu ninguém, com excepção de um ou outro veículo que àquela hora circulavam em direcção a Triana transportando gente para um começo tardio da noite. Prosseguiu devagar. Uma estranha ansiedade fê-lo pressentir que a abóbada de estrelas acima de si ameaçava desabar, fruto sem dúvida do seu instinto treinado, o que era comum quando algo estava para acontecer, ou quando a presença de alguém fora do seu campo de visão era sentida. Continuou a caminhar devagar. No fim da ponte, já do lado oposto do rio, aguardou um pouco e como não visse ninguém, avançou ao longo da margem esquerda, procurando no bolso por outro maço de cigarros. Reviu o dia e recordou-se que não tinha comparecido à entrevista marcada com o apresentador de televisão "como se chama o fulano? Ah sim Mendez Nuñez", e tinha-se esquecido de o avisar. De qualquer forma este deveria ter estado ocupado em noticiar as mortes, "como um abutre farejando carne em decomposição" pensou.
-Esta cidade tem um odor sufocante, não acha inpector jefe? Quer dizer, quando as laranjeiras não estão em flor...
Um vulto negro ao seu lado, junto de um candeeiro apagado, cujo rosto não vislumbrou na contraluz da luminosidade da margem oposta, estendeu-lhe um cigarro:
- São bons inspector e descanse que não são de contrabando. Importa-se que o acompanhe? A noite está demasiado pesada para ser suportada por um homem só.

29 de outubro de 2008

Açores, o mar na manhã de 29 de Outubro

Canal entre a Horta e Sta. Madalena do Pico

Chegada a Sta. Madalena do Pico
O livro de Sevlak aberto em cima da mesinha de cabeceira, na nota de abertura escolhida pelo próprio
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O amor revela as qualidades sublimes e ocultas daquele que ama, o que nele há de raro, de excepcional; nesse aspecto facilmente engana quanto ao que nele há de habitual.
Friedrich Nietzsche
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a lâmpada acesa, a cama no quarto por fazer, a coberta em desalinho no chão alcatifado, uma nota rabiscada a lápis num papel mal arrancado de um bloco de notas caído em abandono no chão
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Adeus Xavier, o nosso caminho termina aqui. Eu sei que sabias que teria de ser assim. Perdoa-me por não conseguir mais, mas não sou capaz. Não sei se me entendes, ou sequer se quererás entender, mas é a única coisa possível para mim, dentro de mim. Perdoa-me a cobardia de não esperar por ti, de não ter a capacidade de te dizer isto frente-a-frente, mas acho simplesmente que é melhor desta forma. Tenho receio da tua reacção, prefiro não enfrentar o teu olhar grave e zangado, nem ter de te atirar com as culpas, porque sabes que isso aconteceria inevitavelmente. Sou um animal ferido, Xavier Dias, e por isso acabou, não me procures mais, seria desastroso. Sê feliz, tanto quanto conseguires. C
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Xavier sentiu os joelhos dobrarem-se e depois o peso do corpo a desabar. Faltou-lhe a voz para gritar, esmagou o papel na palma da mão até a marcar e atirou-o contra a parede, com força suficiente para ter a sensação que a varara. Enterrou a cabeça nas mãos, apoiando os cotovelos nos joelhos vergados. O urro de homem ferido foi inaudível, mas dilacerante, como a garra de um felino que rasga o peito da sua presa para a cravar no coração que bate apressadamente enquanto a vida se esvai. Ao mesmo tempo que a fúria o preencheu, Xavier consegiu perceber exactamente o alcance daquelas palavras, o efeito pretendido, o momento escolhido. No preciso momento em que estava perto de chegar a Sevlak, o seu objectivo, Clara propusera-se e conseguira atingi-lo de forma mortal; na verdade, planeara com sucesso fazê-lo, de forma impiedosa, certeira e premeditada. Nietzsche, que até então ignorara, a despeito de ter uma ligação com o passado de Sevlak, tinha inevitavelmente razão.

27 de outubro de 2008

Laxness e a realidade contemporânea islandesa

Ao fim e ao cabo, bem vistas as coisas, tudo parece seguir algum rumo, embora haja momentos em que muitos possam duvidar que assim seja. E os sonhos do homem tornam-se realidade, acima de tudo se ele nada fizer de especial para os realizar, e lá estão os primeiros sacos de cimento na calçada, apanhando o agricultor de surpresa. Diz-se que quando o homem se tornar merecedor de habitar uma casa melhor, terá uma casa melhor, que surgirá espontaneamente da terra para ele, a vida encarrega-se de brindar o indivíduo com tudo aquilo que ele merece, e o mesmo se diz da nação como um todo. A guerra tornou importantes muitas pessoas, e alguns países também, e é de facto deveras duvidoso que ilustres políticos possam fazer mais pela nação islandesa do que o fez uma guerra acompanhada de tremendos assassinatos em países estrangeiros. [...] O pão de outrem é o pior veneno que um homem livre e independente pode ingerir, o pão de outrem é a única coisa que o pode roubar da sua independência e da verdadeira liberdade.
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Halldór Laxness, 1935, Gente Independente

22 de outubro de 2008

Au bord de l'eau

Ecoute-moi
Si tu as le soin de prendre ton poids
Toute l’infinitude de ton poids réel
Et not pas celui masqué par ton amertume de gamin
Ou de petit oiseau sans ailes.
Si tu le fais, tu le verras

par toi-même
peut-être ce chemin fleuri
donc tu le cherches

et par lequel tu désespères.
Ecoute-moi, je me confesse devant toi
Je n’en sais rien, je n´en sais vraiment rien
Et je ne te connais plus
si cas il l’est que je t’ai aucune fois connu.
Regarde-toi ce qu’importe vraiment
Le soleil qui brille
Et la mer bleue qu'est toujours là chaque matin
Tout aussi comme les paumiers

ancrés au sable
indifférents
à ce qui se passe
au delá des bords de l’eau.

20 de outubro de 2008

"Mais diários". E de facto assim era. Duas caixas de papelão cheias de diários, pequenos livros pouco maiores que um bolso com capa de pele fechada por um pequeno elástico, amontoados uns em cima dos outros, com uma breve indicação do período retratado na capa, preenchidos por textos, desenhos, ilustrações, pensamentos dispersos, esboços. De cartas e confissões, liminarmente dispersas, palavras soltas como batidas pelo vento do tempo, mas presas ao papel para não se apagarem. Um delírio para Xavier. "A alma de Sevlak" - pensou - "estou próximo do seu centro. E ali? Os manuscritos dos livros, certamente, e mais adiante uma edição nova, sem título, nunca colocada à venda...". Deu uns passos, absorvido pela observação dos objectos que o rodeavam. Coseu-se com as sombras do espaço e habituou-se progressivamente aos vultos. Subitamente, a visão de uma mão negra, enluvada, sobressaltou-o. Porventura uma sombra, outra sombra? Um instante de receio apenas e a turvação dos sentidos, seguida do negrume, o desmoronamento da consciência e a cedência das pernas. A voz de Jan trouxe-o de regresso ao mundo dos vivos, acompanhada de uma dor latejante na fonte esquerda.
- Ei-lo! Como se sente? - perguntou Jan, estendendo-lhe uma bebida açucarada.
- Que se passou? - perguntou Xavier Dias, procurando recordar-se dos últimos instantes, sem se conseguir verdadeiramente erguer do leito de ferro enquadrado pela pintura dos pecados, sucumbindo as suas resistências ao olhar da Ira, uma mulher ruiva e sardenta retratada de dedo em riste e um queixo anguloso, de lábios cerrados escondendo uma fiada de dentes brancos que apenas se adivinhava encaixada num rosto fogoso enquadrada por uma cidade incendiada, cujo casario se equilibrava numa colina na distante paisagem da colina de um apocalíptico vulcão em chamas, clamando o fim dos tempos enquanto cuspia as trevas pelo topo do cone. A mulher envolvia-se numa túnica branca, parte da qual esvoaçava ao vento, descobrindo parcialmente um seio branco.
- Ouvi um baque e chamei-o. Como não me respondesse fui procurá-lo e encontrei-o tombado no chão.
- Fui atacado. Alguém me golpeou...
- Não creio. A única passagem para cima é por aqui e garanto-lhe que eu teria visto alguém passar,se fosse o caso. A menos que tenha sido o velho Sevlak!
- O fantasma? - questionou Xavier, incrédulo.
- Porquê? Não acredita em fantamas, Xavier?
- Claro que não - disse este descartando a ideia, enquanto limpava a testa com as costas da mão direita - preciso de ir lá a cima novamente.
- Tarde demais meu caro, está escuro, volte amanhã.
- Eu insisto...
- Se prefere, suba.
Xavier subiu, como pôde, as escadas íngremes de acesso ao último piso. A claridade filtrada pelas telhas apagara-se e o bréu invadira já o espaço do piso superior. As caixas contendo os diários haviam desaparecido, excepto os poucos exemplares que se achavam sobre a escrivaninha junto ao topo da escada. E os três caixotes contendo os manuscritos e as edições mais recentes dos livros de Sevlak haviam igualmente sido retiradas sem deixar rasto.
- Jan...
- Não lhe sei explicar Xavier. Não compreendo. Estou desolado. Venha, por favor desçamos, faz-se tarde, amanhã veremos o que se pode fazer.
Despediram-se ao nível da rua. Jan entregou a Xavier um lenço com meia dúzia de cubos de gelo para aplicar no hematoma que entretanto começara a inchar. Arrefecera, e a humidade da noite tornava-se visível e espessa, como um manto iluminado pela luz amarelada dos candeeiros da rua, reflectida nas pedras do pavimento escorregadio. A tarde dera lugar à noite húmida, como se o rio tivesse passado a respirar exalando o seu hálito bafiento sobre a cidade, impregnando-a. Nesse instante Xavier deu pela falta do telefone que carregava no bolso do casaco. Amanhã teria de regressar a procurá-lo. Nesse instante pensou em Clara, certamente estaria já preocupada, porventura teria acordado e por isso apertou o passo para ir ao seu encontro, depois de levantar a gola do agasalho, protegendo-se do que poderia muito bem ser o prenúncio de uma nova era glacial. Algo não batia certo em Arles, pressentiu, mas a despeito disso o carrilhão do campanário assinalou, pontual, as oito horas. Somente o tempo mantinha imperturbável o seu passo.

O Caçador de Tesouros

Não conhecia Le Clezio. Ainda não o conheço, verdade seja dita, mas o certo é que nunca tinha ouvido falar de Le Clezio até à semana passada, quando foi anunciado o vencedor do Nobel da literatura. Evidentemente, a curiosidade. E por ela se tomou O Caçador de Tesouros, na edição recente da Assírio & Alvim, traduzido por Ernesto Sampaio, que não passa despercebido nos escaparates. Não tem que enganar, capa encarnada, lisa, lombada azul-vivo mesmo ao lado da expressão carrancuda de Diego e Frida (do mesmo autor). Adiante pois. Pese-se antes de mais a densidade de um livro não muito longo, o peso das palavras nas mãos como deve ser a regra antes de se abrir qualquer livro. E adiante, que a curiosidade. Vire-se a capa, passe-se pela dedicatória singela ao avô Léon e eis a narrativa, que desaba desde o primeiro parágrafo

"Sempre me lembro de ter ouvido o mar. De mistura com o vento nas folhas das palmeiras bravas, um vento que nunca deixa de soprar, mesmo quando nos afastamos da costa e avançamos canaviais adentro: é o ruído de fundo que acompanhou a minha infância. Ouço-o agora, no mais íntimo de mim, e levo-o comigo para onde quer que vá. O marulho lento, incansável, das ondas que se quebram ao longe na barra de coral e depois vêm morrer na areia do Rio Negro. Não passa um dia sem que vá ao mar, nem uma noite sem acordar com as costas alagadas em suor, soerguido na minha cama de campanha, afastando o mosquiteiro e procurando avaliar a altura da maré, inquieto, tomado dum desejo que não compreendo.
Na escuridão, penso no mar como se fosse uma pessoa humana, com todos os sentidos despertos para melhor o ouvir chegar, para melhor o receber. As vagas gigantescas cavalgam os recifes, vêm desabar na laguna e o estouro faz vibrar a terra e o ar como um caldeirão. Ouço-o, o mar mexe-se, respira. [...]
O mar está dentro da minha cabeça, e é ao fechar os olhos que melhor o vejo e ouço, que consigo distinguir cada ribombo das vagas separadas pelos recifes e logo de novo unidas para virem quebrar-se na costa. [...]
Nada existe mais, nada a não ser o que sinto, o que vejo, o céu tão azul, o estrondo do mar a lutar com os recifes e a água fria que me escorre na pele. [...]
Abro os olhos e vejo o mar. Não o mar cor de esmeralda que via outrora nas lagunas, nem a água escura diante do estuário do Tamarindo. É o mar como ainda não tinha visto, livre, selvagem, dum azul inebriante, o mar que levanta o casco do navio, lentamente, vaga após vaga, ente sulcos de espuma percorridos por centelhas. [...]
Agora sei onde estou. Encontrei o lugar que procurava. Após estes meses de vagabundagem, sinto uma nova paz e um novo ardor."

Fica-se preso, como numa teia, à procura do tesouro, que se vai descobrindo página a página, em cada descrição ou episódio da narrativa. Le Clezio escreve. Sempre com o mar em fundo, omnipresente, como um personagem secundário que afinal é principal. O mar que sai de dentro do narrador (estamos avisados desde o primeiro parágrafo, de resto), porque se percebe o grau de intimidade deste com a água salgada. Não é apenas poesia, ou figura de estilo vulgar, não se trata apenas de um passeio à beira-mar, na praia, no molhe batido pela vaga de Inverno, de dizer que se gosta do mar mesmo quando efectivamente se gosta (e quem não gosta?); nada disso, aqui trata-se de água salgada misturada com sangue, a correr nas veias, linhas, parágrafos. E então tudo muda de figura, muda obviamente de figura. É um livro do mar. Por isso, no fim, guarde-se num sítio especial da estante. O mar preparou-nos este segredo, este tesouro. É disso que se trata.

18 de outubro de 2008

Montemor: oficina imperdível




Et de quatre!

Parabéns ao Rogério Santos pela organização e à Universidade Católica, pelo reconhecimento da importância do papel dos blogues na difusão cultural, donde o tema genérico - Blogues e cultura. Em 14 e 15 de Novembro há, por isso, bloggers à solta na UCP, no IV Encontro Nacional de Blogues.

O programa é o seguinte:
Dia 14
9:00 - Recepção
9:30 - Sessão de abertura
9:35 - Comunicação de José Luis Orihuela (Universidade de Navarra) - Cultura bloguer
10:30 - coffee-break
11:00 - 1º painel - Blogues e a actual segmentação da blogosfera Moderador: Prof. Fernando Ilharco
13:00 - Pausa para almoço
14:30 - 2º painel - Blogues culturais e educação Moderadora: Mestre Carla Ganito
16:30 - coffee-break
17:00 - 3º painel - Blogues, cultura e negócio Moderador: Prof. Rogério Santos
18:30 - Encerramento dos trabalhos do primeiro dia
Dia 15
9:30 - Ateliê de Photoshop - monitor: Dr. Mário Barros Ateliê de Ferramentas de Web 2:0 - monitor: Dr. Gonçalo Silva

16 de outubro de 2008

Pegou à sorte num dos vários cadernos de anotações em cima de uma escrivaninha coberta de pó onde se lia numa das páginas, a caligrafia irregular, pequena, mas levemente estilizada:

Os sonhos não perduram,
por vezes desabam como catedrais
de enredos bizarros
projectados em vitrais
superficialmente coloridos
mas vazios de ideiais.



"Fique à vontade" - dissera-lhe Jan - "e se vir o fantasma do velho Sevlak grite, estarei no andar de baixo a arrumar uns papéis. Ele normalmente não é agressivo, mas com um estranho nunca se sabe". Inicialmente parecera-lhe uma brincadeira, mas agora, apenas iluminado pela escassa luz de uma lâmpada coberta de pó pendurada numa trave do tecto, que a custo permitia a passagem de algum luminosidade, o vulto de Sevlak parecia poder surgir de cada canto. A um dos lados, um amontoado de caixotes constituía um chamariz. Mas no lado oposto à escada, várias telas dispostas ao alto monopolizaram as atenções de Xavier. Aproximou-se, olhando cautelosamente para trás de cada caixa e para o tecto, por onde penetravam fios de luz por entre as frestas das telhas. Pressentiu uma corrente de ar nas suas costas e voltou-se de imediato. "É só a tua imaginação meu velho, estás sugestionado pela história do fantasma do velho Sevlak. Ou é apenas um arrepio por saberes que estás quase a descobrir o teu graal? É ridículo. Que barulho foi este? Bolas, que lugar. Aqui estão as pinturas...merda, se tivesse um pouco mais de luz, espera, tenho aqui um isqueiro que me esqueci de devolver ontem, onde foi? Ah sim, no Restaurant Des Armes, tenho de lá regressar e entregá-lo". Outra corrente de ar. "A porta fechou-se, paciência, espero que não esteja trancada. Eis o primeiro quadro de Sevlak, parece que te vou conhecer um pouco mais meu velho e não se pode dizer que pintes mal de todo. Mas não serás a pessoa mais alegre. Um muro. E outro. Ainda outro. Espera, é sempre o mesmo, mas visto de ângulos diferentes e em momentos diferentes. E este? Um balcão de café, bancos altos, uma mulher sentada... é bonita, quem será?". A voz de Jan: "está tudo bem, Xavier?". Respondeu que sim, absorvido. Como é que alguém pôde desperdiçar o seu talento desta forma, pensou. Nunca se ouviu falar do escritor, nem do pintor Sevlak. "Ali, outro quadro". Um homem. Óculos e boina, gabardina comprida, sorriso tímido, boca larga, olhos inteligentes. Uma dedicatória a carvão, com caracteres levemente aparentados com a caligrafia dos cadernos de apontamentos: para Bertolt, uma pintura que não vale um vintém, como paga e agradecimento pela sua obra de três. Obrigado meu velho. Passos no lado oposto ao da escada. "Provavelmente alguém que passa na rua" - pensou - "mas parecem cá dentro. E ali, que mais há naquele canto?".

12 de outubro de 2008

Entre el amor y yo
se levantan mil paredes
y el mar
resulta muerto y sin recuerdos
como la ausencia de una mirada
o una palavra borrada.

Marrocos em Silves

Adalberto Alves, Presidente do Conselho Geral do CELAS (Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves), foi há dias agraciado com o prémio Sharjah 2008 para a cultura árabe, distinção conferida pela UNESCO, que pretende desta feita premiar os que revelam significativo contributo para o desenvolvimento e promoção da cultura árabe no mundo, bem como pelos esforços desenvolvidos em função da sua preservação e revitalização. Adalberto Alves já publicou algumas compilações de poemas de poetas árabes, algumas das quais são de tradução da sua lavra.
A mostra Marrakech em Silves tem vários pólos de interesse, mas todavia destaca-se no programa a exposição de fotografia «Olhares Vizinhos», que retrata Silves através do olhar de Hassan Nadim. A mostra fotográfica incluirá um conjunto de 41 imagens feitas por este artista marroquino e terá a sua apresentação pública na Igreja da Misericórdia de Silves, dia 11 de Outubro, às 16h00. Os comentários a estas imagens, que farão parte do catálogo da exposição, são feitos por Rocha de Sousa, investigador e artista nascido em Silves, que traduz por palavras, a sua forma de olhar para os “olhares” de Hassan Nadim.
A exposição «Arte Islâmica: técnicas decorativas do Reino de Marrocos», da autoria do arquitecto José Alegria, que tem estado presente na Casa da Cultura Islâmica e Mediterrânica de Silves, também foi ampliada e valorizada com novas peças expositivas provenientes de Marraquexe, nos vários domínios das artes decorativas (azulejaria, madeira, metais, “gebbs”, “tadlakt”, “dess” e tecelagem da lã).

10 de outubro de 2008

9 de outubro de 2008

8 de outubro de 2008

Vislumbres [de poemas passados]
meandros, esteios e ravinas calcinados
que recuso percorrer...

O dia nasceu cinzento em Arles. Xavier acordou e na penumbra do quarto sentiu a forte presença da ausência de Clara. Pela forma esvoaçante dos cortinados pressentiu-a lá fora, na varanda empedrada e levantou-se, caminhando em direcção à saída para o exterior. Clara dormitava encolhida sobre uma espreguiçadeira, coberta por uma manta finamente bordada por gotas de orvalho, que a defendia igualmente da escassa claridade possível cuja passagem as pesadas nuvens baixas apenas permitiam com cerimónia. Pegou na mão de Clara e sentiu-a abandonada e fria. Sentou-se na espreguiçadeira ao lado, contemplando o rosto da mulher que amava. Sentiu uma imensa ternura por ela, mas percebeu igualmente o abandono naquela mão adormecida... olhou para a carteira vazia de comprimidos pousada na mesa de apoio. O copo de água igualmente vazio. Pegou em Clara ao colo e penetrou na penumbra do quarto, amparando-lhe a cabeça no ombro e deitando-a em seguida na cama. Transpirava. Com uma toalha húmida enxugou-lhe a face e a testa. Mandou servir o pequeno-almoço no quarto e passou a manhã a trabalhar em silêncio, consultando anotações e revendo apontamentos, desviando por instantes o olhar na direcção de Clara, ou levantando-se ocasionalmente para lhe ajeitar o travesseiro quando esta mudava de posição na cama. Perto das três da tarde aproximou o rosto da boca da mulher e sentiu-lhe o odor inebriante da respiração profunda. Tocou-lhe a testa com os lábios, escrevinhou uma mensagem num rasgo de papel que colou no espelho e saiu silenciosamente depois de pendurar o essencial do not disturb na maçaneta exterior.
Prolongou os passos em pontas de pés pelo corredor e apenas normalizou a respiração quando entrou no patamar do piso abaixo do que ocupavam. Já na rua, olhou ainda para o parapeito da varanda e afastou-se rapidamente, diluindo-se no movimento da tarde que se adiantava, ameaçando chuva grossa.
Não teve dificuldade em encontrar a morada que lhe fora dada na noite anterior pelo músico. Era um edifício antigo, estreito, de três pisos encimado por uma água-furtada, situado numa rua secundária, sem trânsito, que visto do exterior apresentava um aspecto pouco cuidado contrastando com os edifícios vizinhos. A fachada amarela desbotada era contudo uma nota de destaque por comparação com as cores discretas empregues nas demais casas na rua. Xavier confirmou a morada e aproximou-se, espreitando discretamente pela penumbra da janela ao nível da rua, sem que avistasse vivalma, ou distinguisse alguma coisa no interior. Fechou a mão e aprestava-se para bater na porta maciça de carvalho, quando esta se abriu exibindo o semblante sorridente de Jan Hoecht:
- Entre Xavier, aguardava-o. Vejo que está sozinho.
Pareceu desiludido.
- Clara está cansada, esteve a pé a trabalhar a noite inteira, optou por ficar a descansar. Pede desculpa, mas não estava em condições. E este clima... - desculpou-se Xavier.
- É verdade! Encharca-nos os ossos. Não obstante, nem sempre é mau, por vezes inunda-nos de alegria, sobretudo quando a lavanda floresce... já viu os campos de lavanda Xavier?
Xavier Dias oscilou a cabeça de um lado para o outro.
- É o paraíso Xavier. Do lado de lá do Reno falta-me isso. Coisas que me ficaram da infância. Suponho que me entende? Sabe? Van Gogh não resistiu ao encantamento da lavanda. Diz-se inclusivamente que pintou centenas de quadros dos campos de lavanda em redor de Arles, enlouqueceu, gastou todo o dinheiro que tinha em tintas, pincéis e telas. E para não lhe chamarem louco diz-se que escondeu tudo numa gruta dos arredores. Consta igualmente que um coleccionador de arte sabe dessa gruta e não revela os trabalhos para manter a cotação dos quadros. Já imaginou a catástrofe para o mercao de arte se isso acontecesse, Xavier?
Desta vez a resposta foi afirmativa. O olhar de Xavier no entanto atraíra-se na direcção de um enorme painel pintado que cobria uma das paredes do primeiro piso, no qual haviam sido derrubadas todas as divisórias entre as salas.
Jan afastou-se e acendeu uma luz ao centro que inundou de cor a obra, que pareceu ganhar vida.
- É espantosa, Jan. É sua?
O músico riu-se:
- Se tivesse esse tipo de talento nunca seria músico Xavier. Cada um nasce para o que está talhado. Eu limito-me a fazer os possíveis por conservar esta pintura, mas não fui agraciado com o dom. Foi-me pedido pela minha mãe que a conservasse para sempre, fez-me prometer-lhe que o faria, mesmo antes de morrer. Ali, naquela cama que vê ao canto da sala.
Apontou na direcção de um leito estreito de ferro enferrujado na parede oposta ao quadro, ao lado do qual havia uma humilde mesa de cabeceira com pés enegrecidos pela humidade que subia do solo, sobre o tampo da qual jaziam dois livros amarelecidos e uma lâmpada de latão fazendo as vezes de candeeiro. Continuou:
- Perguntou-me por Sevlak. É dele a pintura. Um génio amaldiçoado pelo seu talento. Pintava. Escrevia. E compunha. Genial em qualquer domínio. Efervescente, digo-lhe mesmo. Mas por isso mesmo, intranquilo. O dia não lhe chegava para se esgotar. Não tinha horas. Esquecia-se de comer, de tomar banho, de mudar de roupa. Pintava horas a fio e depois sentava-se a escrever. Música, poesia, narrativas, em ciclo ininterrupto. Que por vezes destruía por achar que não eram suficientemente geniais. Escreveu centenas de peças, fez milhares de esboços, mas destruiu tudo, sobrou muito pouco. Não me esqueço do dia em que apareceu aí. Eu era adolescente, teria uns quinze ou dezasseis anos. A minha mãe apresentou-mo. Dizia que tinha tido uma visão, uma ideia fabulosa, a obra-prima. Pediu para ficar e ela deixou-o.
Xavier aproximou-se do centro da sala, contemplando detalhadamente os elementos da pintura, quase lhe roçando os dedos, como se as partículas do ar reflectissem a textura das cores.
- Dir-se-ia Vermeer...
- Sim, percebo o que quer dizer, Xavier. Conheço cada detalhe desse maldito quadro. É genial, mas para mim a promessa que fiz é uma maldição e vejo-o mais sob esse prisma. Conservá-lo é um imperativo, pela promessa que fiz, mas sobretudo porque sei que não existe igual. Nem a Vista de Delft se lhe equipara... Se quiser, é uma questão de consciência, um imperativo ético, que não deixa de me aprisionar, nem me perimite adormecer, como se fosse um pesadelo onde não me pudesse permitir acordar, sobretudo porque odiei Sevlak. Passava horas a pintar, a misturar cores, a apurar, a fazer, a desfazer e a refazer cada detalhe, ignorando o mundo, ou melhor, antes procurando aprisioná-lo neste pedaço de mural. Está a ver a Vaidade, naquele canto?
Jan apontou para uma mulher magra de olhar cadavérico que evocava ligeiramente a Judith de Klimt. E prosseguiu:
- Andou seis meses pela província à procura daquele olhar. Atrasou a obra. Nenhum lhe pareceu suficientemente bom, ou deverei antes dizer suficientemente mau? - disse em tom irónico.
- A vaidade?
- Sim, trata-se de um retrato dos sete pecados capitais, Xavier, embora, provavelmente não tenha reparado, dado que existem oito personagens no quadro, sete mulheres e um homem.
- A personagem de costas?
Jan anuiu.
- Sevlak? - perguntou Xavier.
Nova afirmação:
- O diabo em pessoa, a tentar expiar os seus pecados numa obra magistral. Dois anos de trabalhos forçados a ouvir Die Sieben Todsünden. Não sei se conhece a obra...
- De Kurt Weil?
- O próprio, com textos de Bertolt Brecht. Suponho que se conheceram em Berlim, conhece a obra Xavier?
- Vagamente, sim.
- De modo que durante dois anos Erik Sevlak se fechou neste pardieiro a fazer a obra-prima com que expiaria os seus pecados capitais. Alicerçado na composição de Weil e nos poemas de Brecht, estes seriam ilustrados pelo seu quadro. A experimentação máxima do tom da cor, ou do timbre da cor, uma teoria explorada por Kandinsky que fez escola junto de alguns autores alemães e russos. Sevlak foi contagiado pela teoria. Andou obcecado com a ideia e afinava o som da grafonola como se este fosse mais um item na mistura das cores.
- E os livros, Jan?
- Tem razão, que esquecimento o meu. Como creio que saberá, Sevlak escreveu alguma coisa e publicou alguns trabalhos, temo que sem grande sucesso. Creio que vivia da caridade do editor, que o explorava, dado que Sevlak apenas se preocupava a partir de determinada altura em poder comprar novos materiais para criar cores e pinturas, ou partituras de cores, como gostava de dizer. mas desculpe-me, divagava... Ah sim, guardo alguns exemplares publicados nas águas-furtadas. Venha, cuidado com o terceiro degrau, a ver se na próxima vez que vier a Arles me ocupo dele. Nunca tenho tempo, ou não me lembro de tratar disso, sabe, raramente venho aqui acima, acho que o fantasma do velho Sevlak assombra esta casa e prefiro não tropeçar nele, pelo que lhe deixo o sótão. É um bom acordo, evito ir ao sótão, dividimos o espaço e assim tudo corre bem. Passe adiante, por favor. Espere um instante, eu acendo-lhe a lâmpada. Espero que o fantasma do velho esteja a dormir a sesta. Foi um hábito que lhe ficou de quando viveu em Espanha, por uns tempos. É o que me vale quando preciso de aqui vir livrar-me de umas teias de aranhas e do excesso de pó.

De Manhã Em Berlim

Acordei. Era Berlim. Pela janela
vi o coração desdentado,
a louca sepultura,
a cinza,
as ruínas mais pesadas,
com florões e frisos
gravemente feridos,
balcões arrancados a uma negra mandíbula,
muros que já perderam, que não encontram
as suas jaelas, as suas portas,
os seus homens, as suas mulheres,
e uma montanha dentro de escombros empilhados,
sofrimento e soberba confundidos
na farinha final, no moinho
da morte.

Oh cidadela, oh sangue
inutilmente desparecido,
esta é talvez, esta é
a tua primeira vitória,
ainda entre escombros negros
a paz que conheceste,
limpando as cinzas e elevando
a tua cidadela para todos os homens,
tirando as tuas ruínas
não os mortos
mas o homem comum,
o novo homem,
o que edificará as estruturas,
do amor, da paz e da vida.

Pablo Neruda, excerto de O Sangue Dividido

7 de outubro de 2008


A noite cálida não permitiu que Consuelo pegasse no sono. Talvez porque o colchão macio da espreguiçadeira fosse demasiado confortável ou porque o toque suave da manta acariciando o seu rosto a fizeram recordar a sua infância remota. Feliz. Ou pelo menos recordava-a assim. Aprendera a recordá-la assim. Richard dormia no quarto. De onde estava não o via, mas conseguia sentir a sua presença. O dia fora extraordinário, maravilhoso, arrebatador. Ele surpreendera-a com uma viagem, um jantar maravilhoso, num dos melhores restaurantes de toda a Espanha e agora um hotel perfeito. Nada falhara nessa noite, nem o brilhante que lhe oferecera quando a pediu em casamento imediatamente após a sobremesa e ela não conseguira balbuciar uma resposta, pois fora imediatamente felicitada por Julian, o chefe de sala.
Os últimos dias deslizaram pelo seu pensamento à velocidade estonteante da luz e imediatamente a seguir vieram as recordações dos últimos anos e depois o flashback de toda a sua vida, assim despertada pelo toque aveludado daquela manta. A infância feliz, interrompida pela separação de seus pais, a rebeldia como revolta pela perda da referência paterna, as amizades, as companhias menos recomendáveis, uma adolescência em desnorte vivida num fôlego, na companhia de artistas que gostavam de achar que se davam com a nata da sociedade mundana, de quem sorviam alguns trocos com que se entregavam à boémia nas calles. Achou que era um deles e na primeira gravidez, seduzida numa festa por um respeitável senhor, percebeu o seu engano. Sozinha, prostituiu-se numa festa decadente convidada pelo respeitável senhor, a fim de obter o dinheiro para o desmancho, que fez em Londres. E depois um respeitável jovem, novo desmancho, como então se dizia, mas dessa vez o dinheiro fora-lhe dado pela respeitável mãe do respeitável jovem de ilustres famílias, com um promissor futuro à sua frente na condução dos negócios de família e um casamento aprazado desde longa data, com uma jovem de sangue azul, ou cor parecida. Um amigo socorreu-a e deu-lhe trabalho numa galeria em Londres nos tempos que se seguiram. Perdeu-se no nevoeiro da city e lavou pratos, uma ocupação melhor remunerada e de resto tão boa como outra qualquer para acalmar um estômago vazio e uma alma moribunda. Regressou a Sevilha. Os que conhecera outrora olhavam-na então como uma balconista de loja e nas recepções que frequentava como empregada, ou a que assistia do lado de fora de uma montra, por vezes fingiam que a reconheciam quando lhe pediam uma flute de espumante barato ou um canapé, ou lhe acenavam com pena. Um dia alguém reparou nela, na inauguração de uma exposição do pintor Francisco Falcón, então na moda. Conheceu alguém, um rico senhor, investidor imobiliário, dizia-se, e também comerciante de carnes de passado obscuro e pleno de garbo, que a desposou em segundas núpcias depois de se separar da sua primeira mulher, destruída física e emocionalmente. Raúl Jimenez. Haviam-lhe raptado um filho, Artur, por causa do passado obscuro do pai, um passado sobre o qual Raúl nunca quis falar, mas que se descobriu ter algo de comum com o pai de Javier Falcón. Javier. Com este encontrara o rasto de Artur, no Norte de África. Artur tornara-se já então um homem próspero, fora adoptado pelo raptor e pelo rancor e por este renegara o pai e o seu país depois de se aperceber que nenhum dos dois se preocupara em encontrá-lo durante toda a juventude. Fizeram amizade com Javier Falcón. Javier, o inspector jefe acabara de reentrar nos seus pensamentos, na noite em que devia estar feliz. Richard dera-lhe o que ela, Consuelo, queria ter tido toda a sua vida. Uma noite de sonho e paixão sincera. Limpou com as costas da mão esquerda a lágrima que escorria pela sua face e escondeu os olhos na dobra da manta, ao mesmo tempo que encostava a cabeça para trás. Suspirou. E desatou o turbilhão da sua alma: odeio-te Javier Falcón, por não me teres sabido amar como eu precisava. Por te teres afundado nos teus problemas, nos teus casos de polícia, nos teus mortos, no teu trabalho. Odeio-te pelas teias de aranha que tens na cabeça e pela maior ainda que tens na escada de acesso à açoteia principal da tua casa, que nunca te lembraste de remover. Odeio os teus sapatos, que calças sempre, dia após dia. Odeio as tuas idiossincrasias, a tua forma de ver o mundo, como se fosses um estranho no mundo e não lhe pertencesses. Ou simultaneamente como se estivesses em casa em qualquer lugar recôndito e inóspito. Quem me dera não ter atravessado o rift contigo montada no dorso daquele horrível camelo, ou dromédário, ou o raio que o parta, ou nunca ter deitado a cabeça no teu ombro, ou ter sonhado que o mundo não era suficientemente grande. Odeio-te Javier Falcón. Estás a ouvir-me? Odeio-te. Por não teres percebido que eu só queria ter sido uma criança, que não me tivesses tratado como uma criança, a tua criança, por uns breves instantes. Queria isso. Muito isso. E só depois crescer. Maldito sejas Javier, por te ter amado tanto que julguei que ia explodir. Malditos sejam os teus olhos, que me vararam profundamente, me despiram, me expuseram e me fizeram vacilar nos meus alicerces. Eu sou forte, ouviste? Como te atreveste?
Ouviu Richard virar-se na cama. Silenciou os seus pensamentos, levantou-se e olhou pela o horizonte, onde a claridade da manhã despontava. Sentiu-se confinada no espaço amplo da varanda que deitava sobre o Mediterrâneo. O Mediterrâneo, com o qual e pelo qual tanto sonhara, versejara e consumira horas de poesia. E agora não se conseguia desligar dos mortos dos barcos clandestinos que o atravessavam, dos negreiros, das gentes subsaharianas de Mellila que vivem enclausuradas nos campos aguardando a deportação ou a passagem para a Europa. Javier trouxera-lhe isso também, nas conversas em frente à lareira de pedra, ou deitados sobre o tapete da tijoleira depois de fazerem amor, enquanto ainda tinham a pele transpirada. Mazelas do mundo. Um mundo que ela aprendera a pintar com todas as cores da ave-do-paraíso, mas que afinal também podia ser cinzento e negro. Os seus passos de ansiedade eram ritmados, por sobre o pavimento de madeira, silenciosos como os da fera enjaulada. Acalmou-se por fim e deitou-se novamente na espreguiçadeira, onde o cansaço da noite e a brisa da aurora a embalaram por fim.

6 de outubro de 2008

Maria João ist ein Berliner

Maria João Pires vai interpretar Mozart, em Berlim, com a Berliner Philharmoniker, nos dias 8 a 10 de Outubro. Seria imperdível, claro, se Berlim fosse já ao virar da esquina.

W.A. Mozart Kv.466 concerto n. 20 em Ré menor, II e III mov.

M. João Pires, Berliner Philharmoniker e Pierre Boulez

Mozart compôs este trabalho em 1785 e a primeira execução pública do mesmo foi em Viena nesse mesmo ano, tendo a orquestra sido dirigida pelo próprio compositor. Leopold Mozart, o pai, escreveu à filha, Maria Anna, o seguinte, após ouvir a peça: "Ouvi um excelente concerto de Wolfgang, no qual o copista ainda trabalhava quando chegámos e o teu irmão nem sequer teve tempo de ensaiar o rondó porque teve de supervisionar a cópia das partituras."

O concerto divide-se em três movimentos, sendo o primeiro Allegro, a que se sucedem Romance e Allegro Assai, habituais em Mozart e nas composições à época. O tema principal é abordado no primeiro movimento, sendo repetido no segundo e também no terceiro, variando embora o tom, que no segundo movimento passa a Si maior e a Sol menor, antes de evocar novamente o tema principal com que termina a peça. No terceiro movimento assume-se definitivamente o rondó a que se refere o pai Mozart, no tom dominante do concerto, que termina com um vibrante solo de piano, repetido pela orquestra num poderoso e surpreendente Ré maior.

A versão reproduzida acima, interpretada por Maria João Pires tem como pano de fundo os Jerónimos e corresponde a uma versão do concerto com arranjo do maestro, escritor e ensaísta(1) Pierre Boulez, sendo a orquestra conduzida pelo próprio (note-se a ausência de batuta, que é uma [sua] imagem de marca).

(1) v. "Schoenberg est mort"

Quarteira, entardecer em 4 de Outubro 2008
(obrigado Carlos)

4 de outubro de 2008

Mónica Pais

Em Maio deste ano tropecei por acaso no Festival Cistermúsica, em Alcobaça. No Mosteiro decorriam ensaios para algumas das peças a apresentar nessa noite. Uma voz no entanto se destacava. Desconhecida para os meus ouvidos, mas felizmente o acaso tem destas coisas e aquela voz levou-me a persegui-la até onde estava; um acaso feliz trouxe-me assim a um encontro fortuito com Mónica Pais quando entrei numa das salas visitáveis. Um arrepio. E acabou o ensaio. Apenas tive oportunidade de ouvi-la fugazmente numa outra ocasião, na rádio (creio que na Antena 2), mas este fim de semana encontrei uma página com algo mais sobre este talento nacional, senhora de uma voz ide soprano invulgar. Estou convertido.

3 de outubro de 2008

The sounds of colours

(Fundação Joe Berardo)

and the colours of sounds

Disco 1. Play. Som. Imperfeições. António Pinho Vargas. Rewind. Memórias. Brinquedos, Tom Waits, Dança dos Pássaros, Alentejo, La Corazón (lento e acelerado), "não sou nenhum compositor, sou apenas um músico" dizia Pinho Vargas há não muito tempo numa entrevista breve remontando a 2002. Pausa. Antes Stop. E eject. Insert. Agora o Disco 2. Close. Play. Imperfeições parte dois. E? "bem, afinal, talvez, quem sabe?..." diz o músico já na recente condição de auto-assumido compositor, em 2008. Finalmente. E de facto. Percebe-se agora o alcance da afirmação feita em 2002. António Pinho Vargas tinha ideias claras sobre onde queria chegar e amadureceu-as. Esperou. Soube esperar. Soube fazer-nos esperar. Bem, diga-se, como convém, e fez questão de comprová-lo neste novo trabalho, onde as primeiras composições ombreiam com as mais recentes tornando evidente o percurso e a evolução do "simples" músico para o maduro compositor. E se não havia, dizemos nós, necessidade, é evidente que estavamos redondamente enganados. A erudição na música de Pinho Vargas intensificou-se (a complexidade do Movimento Parado das Árvores é um exemplo), elevou-se e atingiu um patamar apenas ao alcance de alguns - poucos - eleitos. Nada Obscuro nem Nebuloso, reforce-se, em Pósludio, nesta simples e primária apreciação. E agora? Será o céu o limite? Qu' importe? Por ora, música, Maestro! com todas as Imperfeições que desejar. E perdoe-se-nos o minimalismo da apreciação.