3 de novembro de 2008

Talvez pudesse escrever sem um porquê
ou uma razão
apenas pelo meu apelo interior
e sem nenhuma Razão
para além do que
por ora ninguém vê.
.
Javier recusou o cigarro estendido pelo homem e não lhe conseguiu ver o rosto de imediato, semi coberto por um lenço enrolado em torno do pescoço.
- O Inverno vai chegando inspector jefe - atalhou o desconhecido - nem Sevilha é imune aos rigores das estações. Mas reparo que não me respondeu, tomo portanto o seu silêncio como um convite a acompanhá-lo.
- Quem é o senhor?
- Meu caro inspector jefe, esteja por favor seguro que a seu tempo terá todas as respostas que procura. Como sabe, a paciência é uma das virtudes do homem mas infelizmente neste mundo moderno em que desgraçadamente vivemos falta-nos por vezes a paciência. Veja este rio, manso, soturno, como um crocodilo prestes a lançar-se sobre a sua presa... enquanto os poetas lhe cantam louvores à quietude há centenas de anos. Não se fie no Guadalquivir, inspector jefe, há milhares de anos que ceifa vidas, a despeito do aspecto de cordeiro. Quantas almas repousam no lodo do seu fundo? A propósito, soube do óbito do comisario don Diego Cuadril, uma pena, um bom homem, competente. Conheci-o mal, na verdade apenas o vi uma vez, em circunstâncias que preferia não lhe revelar, se me entende, a intimidade de um homem não deve ser devassada por um estranho, sobretudo se esse homem se não pode defender. Que grande perda, de facto. A polícia de Sevilha vai ter dificuldade em substitui-lo. Talvez o meu bom amigo consiga uma promoção.
- Não lhe admito...
- Tem razão, perdoe-me a indelicadeza do desrespeito pela sua modéstia, mas creio-o o homem mais competente para o cargo, inspector jefe, não queria de forma alguma ofender a sua sensibilidade.
- Vai-me dizer o que pretende senhor...?
O homem puxou do maço de cigarros novamente, escolheu um e acendeu-o. Nesse escasso instante Javier conseguiu vislumbrar-lhe fugazmente o rosto, a tez acentuadamente morena, feições mestiças ou talvez árabes, a estatura média, vestindo um casaco comprido de cabedal negro, complementado por uma boina de feltro escuro ao melhor estilo parisiense, precisamente acentuada por um ligeiríssimo sotaque francês.
- Pretendo ajudá-lo, inspector jefe, a deslindar o caso dos seus mortos. Mas preciso que me ajude também.
- Não o entendo!...
- É simples inspector jefe: há uma organização a operar em Sevilha que pretende controlar um determinado sector de actividade cujos contornos não são, digamos, completamente transparentes e para rentabilizar ao máximo os seus negócios não olha a meios. É muito maior que imagina e nunca conseguirá chegar a todos os seus tentáculos, inspector jefe. A mim interessa-me eliminar uma parte da organização, que está apodrecida.
- Máfia?
- Se lhe dissesse que é a Máfia estaria a ser reducionista. A mania que temos de catalogar as coisas deixa-nos pouca liberdade para compreender a complexidade da realidade.
- Não o entendo. Seja essa realidade o que for, pretende denunciar os seus comparsas?
- Por favor, não insulte a sua inteligência inspector jefe. Proponho-lhe algo que o pode guindar ao estrelato.
- E em troca?
- Pense no assunto Don Javier. Voltarei a contactá-lo.
- Não creio que esteja interessado.
- Pense nisso inspector, pense nisso. Por ora não o maço mais. Aliás, esperam-me. As minhas desculpas por ter interrompido o seu passeio lunar. Oferecia-me de bom grado para o levar a casa, mas estou atrasado para um encontro. ALém do mais, tenho a certeza que recusaria, pelo que não insisto. Tome, por favor conserve isto e reflicta bem. Espero que o sono seja bom conselheiro, boa noite inspector jefe.
Javier estacou, segurando na mão direita o embrulho que lhe foi estendido pelo vulto. O homem percorreu agilmente a distância que o separava do passeio junto da avenida, quando a porta traseira de um mercedes preto de vidros escurecidos estacionado junto ao Paseo del Colón, em frente à Torre del Oro se abriu e o homem deslizou por ela, no que foi imediatamente seguido por outro que vigiava discretamente as redondezas junto de um quiosque de abas retorcidas em ferro pintado; assim que ambos entraram no veículo, este arrancou de imediato, apenas acendendo as luzes mais adiante, enquanto se afastava velozmente pelo que Javier apenas conseguiu vislumbrar os três últimos algarismos da matrícula: 395.
Abriu cuidadosamente o embrulho e não conseguiu evitar um calafrio quando concluiu que este conteria cerca de trinta moedas de um euro.

3 comentários:

Anónimo disse...

A Ética permanece um terreno tão sóbrio e incólume, que todo o romancista tem a tentação de mostrar que até os mais insuspeitos podem ser corrompidos.

O caminho que se percorre para mostrar que um homenm é também as suas circunstâncias e que apenas poucos bravos são totalmente impermeáveis a elas, permanece um desafio. Apaixonante. O autor pela mão de Javier tem aqui a oportunidade de nos fazer viajar por um dos temas mais escorregadios do Sec XXI. Somos éticos ? No terreno idelógico é mais fácil, na bolha biológica do território da intervençãp pessoal, bem mais difícil, embora os teóricos digam o contrário. Sobretudo os que já enterraram a ideologia. Aguardemos, E. T

E. disse...

Será, T? Será Javier o insuspeito homem ético? Ou será apenas circunstancialmente ético e virtuoso?

E. disse...

Em todo o caso, lia há dias numa entrevista:
- Que es la verdad emocional?
- Es la sinceridad dentro de la ficción.
- Entonces hay que ser honesto e buena persona para escribir ficción?
- No. Hay que tener oficio. La verdad emocional no es una cualidad moral, es una técnica.