25 de novembro de 2008

I have never seen anything like it: two little discs of glass suspended in front of his eyes in loops of wire. Is he blind? I could understand it if he wanted to hide blind eyes. But he is not blind. The discs are dark, they look opaque from the outside, but he can see through them. He tells me they are a new invention. "They protect one’s eyes against the glare of the sun," he says. "You would find them useful out here in the desert. They save one from squinting all the time. One has fewer headaches. Look." He touches the corners of his eyes lightly. "No wrinkles." He replaces the glasses. It is true. He has the skin of a younger man. "At home everyone wears them."
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J.M. Coetzee, Waiting for the Barbarians
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Eram pouco mais de duas da manhã, segundo o inconfundível carrilhão da igreja da Magdalena, quando o inspector jefe Javier Falcón chegou à porta da casa na juderia e se recordou que era o terceiro dia consecutivo em que não abria a caixa de correio. Assim, era apreciável a montanha de lixo que ali encontrou, desde as últimas promoções dos Preciados à liquidação total da E.Leclerc, passando pelas novidades de quartos de casal no Ikea, sem contar com os saldos no El Corte Inglés. Havia ainda um novo hamburger de callamares no McDonalds, uma carta da Endesa e outra do ayuntamento dando conta de uma nova alteração dos sentidos de trânsito em diversas ruas, a par de vários panfletos com a cara dos candidatos às eleições regionais cuja data se avizinhava. E um envelope branco, gasto e sujo, sem remetente, não enviado por via postal. Tentou vislumbrar o conteúdo, um maço de documentos, sem dúvida, mas o papel espesso não permitiu identificar do que se tratava na contraluz. Arriscou e enfiou o gume da faca da cozinha no rebordo do papel, abrindo-o de um gesto. Continha várias fotografias, a preto e branco, muitas contendo rostos de gente de olhos bem abertos, quase suplicantes, mirando a objectiva da máquina fotográfica. Gente jovem, mulheres, crianças e homens, a maior parte negros sub saharianos, mas muitas delas tinham em comum o facto de os fotografados estarem colocados atrás de grades finas ou rede metálica. Alguns prostrados no solo, vestidos com farrapos reflectindo a sua condição sub-humana, confundindo-se com o pó da terra. E por vezes homens brancos armados, envergando um uniforme e botas, invariavalmente óculos escuros, numa ou noutra fotografia, como sentinelas da desgraça alheia, de rosto fechado e vistas prolongadas apenas até à extremidade do cano da arma sujeita a tiracolo.
Um muro de tijolos. Um graffiti garatujado na pressa de uma ronda das sentinelas
i no más!
e a figura estilizada de Caronte transportando as carcaças dos ainda-vivos na sua barcaça. Esta noite não acaba? pensou Javier, enquanto abriu o frigorífico à procura de algo que a empregada temporária - como se chama ela? Não decoro o nome dela, irra, a Maria nunca mais regressa das Canarias? - pudesse ter deixado para picar. Nada, paciência, seja então pão e anchovas, pensou, lembrando-se vagamente que há cerca de seis meses tinha comprador uma lata de anchovas que nunca chegou a comer. Abriu uma garrafa de vinho e instalou-se na mesa da cozinha, revendo as fotografias, quando o telefone vibou em cima do tampo de mármore do lava-loiças. Atendeu, mas do lado de lá não ouviu nenhuma voz. A sineta do pátio soou, distraindo-o do telefone. Empunhou a arma e deslizou devagar pela porta da divisão, esgueirando-se para o pátio, encostado à parede, a tempo de ouvir alguém depositar algo na caixa de correio. Abriu o portão da rua de sopete, mas não avistou vivalma. Devagar, tornou a fechar o portão, olhando em redor por precaução. Procurou acalmar o batimento do coração nas têmporas enquanto tacteou a caixa de correio até sentir o invólucro. Um envelope idêntico ao anterior havia sido depositado. Correu de regresso à cozinha, fechando bem a porta atrás de si. Repetiu o gesto com a faca que não chegara a arrumar e não conseguiu reprimir um grito quando olhou para as fotografias que extraiu de dentro do envelope. Um homem deitado de costas num chão de terra batida mirando a câmara com ar de terror na primeira, o mesmo homem de olhar vítreo e um orifício na testa na segunda.
Maquinalmente, Javier procurou entre o primeiro lote de fotografias e reconheceu o negro entre as pessoas cujos rostos fotografados estavam espalhados por sobre a sua mesa da cozinha. deixou-se cair na cadeira e certificou-se que ainda tinha gravado no telefone o número de Alícia Aguado, a psicóloga cega.

1 comentário:

CCF disse...

Novas escravaturas que metem medo...é bom ver os seus retratos na tua escrita.
~CC~