4 de março de 2010

Prefácio de um: conto climático ou em todo o caso nada parecido com isso, ou apenas o primeiro poema com uma nota de rodapé do autor

Era, evidentemente, de um reflexo aproximativo que se tratava, o que avistei quando baixei os olhos e me revi na superfície da água que à minha frente deslizava velozmente pelo leito do pequeno riacho. Não porque o tivesse visto assim, porque vi, mas sobretudo porque não sei se, tendo visto o tal reflexo aproximativo, este se tratava de um produto da minha imaginação, ou, pelo contrário, da água turva que o riacho levava, fruto da chuva intensa que caiu nos dias anteriores. A verdade é que, sendo embora a época das chuvas, o Instituto Meteorológico, pleno de lógica meteorológica, referiu-se àquele ano como um ano anormalmente pluvioso, e mais tarde, como um ano de chuvas anormalmente intensas, que os mais antigo sentiram como um mau presságio e que os mais novos sentiram como um corolário das alterações climáticas para que os cientistas e um ex-candidato à presidência de um dado país vinham alertando há muito, sem que os demais políticos de outros países estivessem na disposição de se empenhar em inverter o curso dos acontecimentos e em todo o caso não corressem o risco de ser penalizados nos sufrágios a que se submetiam, junto do comum cidadão, o qual estava, por um lado, mais preocupado em ser comum que em ser propriamente cidadão e por outro, nessa medida, nada preocupado em prescindir de ser inconscientemente comum para passar a ser um consciencioso cidadão. E assim, o reflexo aproximativo que vislumbrei era um reflexo do cidadão que eu próprio era, sem que esta análise tivesse em conta, nem por sombras, muito pelo contrário, a pessoa que eu era ou em que entretanto me tinha tornado.
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hoje apetecia-me esgueirar(*)
para dentro de ti
antes do despertar da insónia
de 5 de março
.
de madrugada, acto 1 ou antes um simples acto contínuo
.
sussurro sossegadamente o teu nome
assim: xis
quase em silêncio
silêncio salgado na maré vasa
hesito
se escrevo
ou me travo de razões
?
ou antes adormeço
.
em todo o caso o mar ao longe
desperta-me
enquanto o sal se cristaliza na orla
das primeiras águas
depositadas na praia
evaporadas de emoções
como os teus lábios ressequidos
.
porque morremos assim?
.
(*) sem que tenha evidentemente a certeza que esgueirar seja a palavra certa

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