11 de dezembro de 2010

Al Vent

Em idos da década de sessenta ansiava-se por liberdade por toda a Península Ibérica. Do lado de lá da fronteira, como cá, multiplicavam-se as canções ditas de intervenção ou, como se designam na Catalunha, "nova cançó". Porventura das mais livres de todas, a voz de Raimón (Ramon Pelegro Sanchis) entoava "Al Vent". Lembro-me de a ouvir no rádio do carro familiar, quando se ia a Espanha, na década de setenta. O ritual da fila para o ferry que atravessava o Guadiana entre Vila Real de Santo António e Ayamonte, sob vento forte, a despeito da distância da Catalunha. Há dias, um sopro de vento mais forte na estrada trouxe-me de regresso aos ecos dessa liberdade que só o vento proporciona, primeiro cantada, depois reivindicada e finalmente celebrada. Quase em simultâneo, lá como cá, o vento soprou liberdade. Nestes dias de vento forte, de tempestade, as palavras de Raimón levam-me à infância, às memórias que não diria esquecidas, mas guardadas em qualquer lugar. O vento tem essa propriedade, de arejar as memórias, de as soltar sem nenhum plano pré-determinado. "Al Vent", ouvido quase trinta anos depois desse tempo, traz-me hoje, para além dessas memórias, a consciência de algo que se nos cola à pele: um grito de liberdade, de espaço interior, algo que se assemelha ao voo de uma ave sem destino por todos os mares do mundo.

Mas ao mesmo tempo, a informação à distância da ponta dos dedos, resolvi navegar noutro oceano. A internet mostra-me que Raimón, o valenciano que canta em catalão, hoje septuagenário, viveu sempre prisioneiro da sua canção. Talvez a palavra seja demasiado forte, porque as músicas não aprisionam, mas a verdade é que "Al Vent" se colou ao artista como uma segunda pele que nunca conseguiu despir. Persegue-o. A canção, uma das suas primeiras, leva já cinquenta anos e continua a ser o seu ícone, ultrapassou o criador. Cinquenta anos de uma carreira ao vento. Em 1993, aquando dos trinta anos da canção, houve um majestoso concerto no Palau Sant Jordi, em Barcelona. Estiveram presentes Paco Ibañez, Joan Manuel Serrat, Mikel Laboa, Pete Seeger, Pi de la Serra, Daniel Viglietti e até Luís Cília. O público acorreu em massa para celebrar a canção. Raramente uma única música teve semelhante protagonismo nem simbolizou tanto: a resistência contra o franquismo, o nacionalismo catalão, a liberdade de um povo. E no entanto, Raimón é considerado um traidor entre os seus de Valência, ele que se diz um "catalán de Xàtiva". Talvez porque cante em catalão e porque se diz catalão. Xàtiva é uma aldeia da "Comunidad Valenciana", situada na margem direita do Albaida e para muitos valencianos, dizer-se catalão constitui uma ofensa. Há coisas que o vento não apaga, mesmo após soprar durante décadas: as palavras, as memórias, as recordações. Tudo persiste. Por vezes, essas recordações são arejadas e regressam. Assim as músicas, os sentimentos, as emoções espalhados. Ao vento.

Al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.

La vida ens dóna penes,
ja el nàixer és un gran plor:
la vida pot ser eixe plor;
però nosaltres

al vent,
la cara al vent,
el cor al vent,
les mans al vent,
els ulls al vent,
al vent del món.

I tots,
tots plens de nit,
buscant la llum,
buscant la pau,
buscant a déu,
al vent del món.


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