15 de dezembro de 2010

Sobre se: há bons pianistas a Sul?

Não. Quer dizer, não necessariamente, ou não sei sequer responder. A pergunta não tem de ser propriamente dirigida, mas a falta de direção tem um impacto semelhante a uma seta, daquelas que se fazem nos cadernos, a trespassar corações estilizados nas páginas centrais, para amaciar o tempo monótono das aulas enquanto se é adolescente à espera do tempo da liberdade do recreio. Eu não sei responder, claro. Nem percebo nada de pianos, nem de pianistas. Nem de música. Quer dizer, gosto de música, mas a pergunta não tem (ou tinha?), ao que eu percebi, nada que ver com a música. Era uma forma como outra de entabular conversa, como se se começasse por perguntar se as obras lá fora, na avenida, que se arrastavam, ainda demorariam muito tempo a terminar. Mas fiquei a pensar. Se hás bons pianistas a Sul. O que é um pianista? O que é um bom pianista? O que é ser bom? O que é o meu bom? E o teu bom? Eu sei que hoje não será o melhor dia para responder a isto, não por uma questão de auto-estima, mas sobretudo porque há imenso tempo que não oiço piano. O filho do vizinho que toca piano não conta. Toca piano horas a fio. Os acordes e escalas que oiço à saciedade sempre que vou despejar o lixo, passear o cão, fazer a minha sessão de jogging matinal, nada disso conta, é como som ambiente, como o sopro do vento no plátano do jardim que atravesso. É música, não questiono se boa ou má, está ali, é um dado adquirido. Percebo contudo que se deixasse de a ouvir seria uma perda. Logo é boa. Não sei se o filho do vizinho é um grande pianista, mas sei que as minhas idas ao lixo, a passear o cão, a fazer jogging não seriam a mesma coisa. Mas depois: há os momentos em que encontro o pai à esquina. Falamos. Por vezes sobre nada, prometemos que havemos de sair a correr juntos, mas ambos sabemos que nunca acontecerá. Sei que há que tempos que penso em praticar mais piano. É como a poesia, gosto de compor, para além de ler, mas sei que nunca nada será bom, ou pelo menos suficientemente bom. Sem qualquer falsa modéstia. É como se o que faço fosse apenas meu e não conseguisse tornar a criação, ainda que ligeiramente, unversal, ou pelo menos aceitável ao nível do meu bairro. Suponho que um bom pianista consegue ser universal. Eis uma resposta que me parece correcta. A universalidade é algo de importante para se aquilatar da bondade de alguém. Não o universalismo, sim a universalidade.
Um piano é universal. É algo que não pode deixar de ser universal. Mesmo quando se tentam trazer novos instrumentos para o firmamento dos instrumentos de música clássica, o piano, sabemo-lo, estará lá para sempre. A cabeça de um pianista tem de ser universal. E os dedos? As mãos? O talento?
Sei hoje que bom é aquilo que nos provoca um espasmo, um choque, que mexe connosco e nos faz procurar sermos melhores. Aquilo que em Kant se chamava "o sublime", que mais não é que a beleza, o belo, aquilo que nos comove culturalmente. Acho que é isso, a emoção é a base da criação. O bom é aquilo que nos comove
E por fim, o Sul. Há tempos conheci um afinador de pianos. Não os arranjava, apenas os afinava, de forma meticulosa. Vinha num dia de chuva, depois num dia de sol, de noite, de manhã, ao pôr-do sol. Experimentava uma sequência criteriosa de notas, sempre as mesmas. Era de uma terra no interior, nunca hava estudado, mas um dia descobrirara que tinha uma enorme sensibilidade auditiva. Não tinha um grande talento musical, mas os acordeonistas das redondezas não sabiam passar sem o seu ouvido. Era talentoso, portanto. Dos acordeãos ao piano foi um passo. Era um verdadeiro talento. Um dia propuseram-lhe um trabalho na capital, mas a Maria não queria abandonar a terra. Os animais. As vizinhas. E foi ficando. Era talentoso. Sabia tocar piano, aprendeu de ouvido peças populares, não fora a falta de mobilidade da mão esquerda e dir-se-ia que teria ido longe. Mas nem como afinador. Conheceu grandes pianistas, mas se lhe perguntassem o nome, não se lembraria de nenhum. Estrangeiros, cabelo grisalho, aprumado, de hotel ou de sala de concertos. O bom pianista, dizia, era aquele que tocava dentro de cada um que o ouvia, com a melodia certa, no momento certo. Com um piano bem afinado, evidentemente.
Em resumo: não há bons pianistas a Sul (nem a Norte, nem em lado nenhum): há pianos bons, bem afinados e há pianistas que os merecem. Sim, a Sul também os há (que los hay).

2 comentários:

Anónimo disse...

Boas Festas.

Anónimo disse...

Boas festas e bom carnaval e boa neve e bom vento.
A sul.
A universiladidade pode ser um gesto. Belo. Um sorriso. um beijo curto. Uma filha que se aninha. Infelizmente não partilho a mesma opinião sobre a universalidade da tua poesia. Imerecidamente escondida. Bela a sul e em qualquer lugar. Um dia irá saltar. Consta de um dos sonhos, poder ser editora do que é universalidade escondida. T