4 de março de 2008

Anne-Sophie Mutter

Ainda arte. "O golpe de asa que distingue o sábio do proficiente". Um dos comentários ao post sobre Gotthard Graubner (v. abaixo) termina assim. E é mesmo isso que distingue Anne-Sophie Mutter de tantos outros exímios violinistas. Não é o Stradivarius, nem o facto de ser uma magnífica executante (seria apenas mais uma), nem de ser extremamente apelativo o seu estilo enquanto toca. Se não, seria apenas forma. E não é, é sobretudo conteúdo, como se em cada nota das suas execuções se abrisse uma garrafa de champanhe e assim se ouvisse uma sinfonia de rolhas saltitantes. O prazer de ouvi-la é intenso, vibrante, inebriante. A execução técnica, formal, perfeita passa, pois, para segundo plano. A emoção perspassa pela música, a intensidade de sentimento colocada em cada nota faz-nos vibrar irresistivelmente. Em efervescência, somos transportados ao longo de cada composição que interpreta, transformada num misto de espontaneidade e cor, como se de um fogo de artifício se tratasse, porque é essa a ilusão que temos. Já não é apenas paixão, ao longo das composições a nota seguinte passa a ser desejada com intensidade. É isto que Anne-Sophie Mutter consegue transmitir. A menina-princesa que despertou o interesse de Herbert von Karajan cresceu e é agora uma rainha com extrema densidade e conteúdo emocional. Qui plus est, especialista em Mozart. Ouvi-la na Sinfonia Paris, de Mozart, será talvez o expoente máximo da ilusão "fogo de artifício".

Veja-se (post anterior com vídeo) O Inverno, sobretudo o primeiro andamento da quarta sinfonia de As Quatro Estações de Vivaldi. O Inverno da peça, famosa sobretudo pelo primeiro andamento da sinfonia de abertura (de A Primavera), adquire com Anne-Sophie uma dimensão fantástica, destacado-se dos demais andamentos pela pujança vibratória. Um cenário branco (com que é fácil sonhar, de resto) transporta-nos para paisagens imaginariamente geladas, onde flutuam pinturas de Gotthard Graubner, pintadas ao som de Vivaldi. Na peça, o minimalismo de uma interpretação com solistas (no caso, Os Solistas de Trondheim) de fino recorte permite a máxima expressão da liberdade interpretativa de cada instrumento, libertado da opressão de uma orquestra. A ausência de maestro, substituído pela solista de violino e com o ritmo imposto pelo cravo, permite que os sentimentos planem por sobre a música. Pode o Inverno ter fogo? Sem dúvida, quando a forma que assume tem conteúdo.

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida è doce por ela mesma. Deliciar-se é um dos fenómenos da alma humana. Cada um tem o gosto no conteúdo específico da sua predilecçao. por exemplo, os cavalos para quem gosta de cavalos, as paisagens para quem as gosta de ver. E assim também, as acções justas para que tem uma obsessão com a justiça, e em geral as acções realizadas de acordo com a excelência para quem está tomado pela sua possibilidade.Quem faz gosto nas coisas belas ,encontra-se com a própria natureza bela que é a delas. "Aristóteles na ètica a Nicómano" tradução de António Caeiro. Cai que nem uma luva à beleza da música e à beleza de quem sabe retirar felicidade dela.T