26 de maio de 2008

Notas musicais

O que há de original ou de pessoal numa escrita acidental? Um estado de sonambulismo chuvoso que nos encharca os ossos




e alegra como uma sonata concertada de notas de chuva reverberando numa vidraça? Xavier encostou-se para trás na cadeira, fechando por instantes os olhos, meditando sobre o que acabara de ler. O livro ainda aberto na palma da mão levou-o a palavras antigas, de Ramón Sampedro
.
Después de tres meses de deambular [...], buscando el equilibrio perdido, pasa el tiempo y tomas conciencia de que no puedes encontrarlo. Nunca jamás. Ni puedes morirte, ni volver atrás"
.
e daí saltitou para um troço literário de Cardoso Pires. Nunca devia ter lido Cardoso Pires, sabia-o desde sempre pela forma angustiada da sua escrita e mesmo assim fizera-o com a mesma inconsistência de alguém que sentindo-se atraído pelo abismo não resiste a dar o passo final que lhe retirará o chão de debaixo dos pés e, mesmo assim, já em plena queda, não pressente a morte, porque é como se já estivesse morto na angústia que antecede o passo fatal. Distraiu-se com um pardal que deambulava entre as mesas de metal polido da esplanada procurando migalhas. Migalhas. Era nisso que se transformara a sua lucidez. Os pardais eram agora dois disputando os despojos do pequeno-almoço de um casal de turistas espanhóis que se sentavam duas mesas adiante de Xavier. Instantes depois, este regressava mentalmente a Praga, à ala do Museu Franz Kafka, onde se encontram expostas as anotações do escritor que descrevem as visões medonhas que lhe inspiraram A Metamorfose. Enquanto deambulava entre as peças expostas, colocara-se inconscientemente atrás de uma parede de tecido branco que dividia em compartimentos a ampla mas escura sala, observando pelo canto do olho as expressões corporais de Clara enquanto lia os fragmentos retalhados dos rabiscos expostos. Gostava de a observar e sobretudo de o fazer sem que ela notasse o seu fascínio nesses breves instantes em que se lhe entregava por completo. Por vezes ela surpreendia-o, sorria e Xavier disfarçava retribuindo o sorriso, sem que ela contudo percebesse esse seu fascínio. Nunca o perceberia. Havia então já uma diferença apreciável entre a Clara que tinha naquele instante a escassos metros de si e aquela que vira pela primeira vez no Musée d' Orsay poucos anos antes...

4 comentários:

Anónimo disse...

Bem escolhido o nome.

Lucy disse...

Oh tio E... porque é que ninguém gosta de mim assim? ("cada um tem o que merece minha querida" - já sei). Não. Vou reformular: porque é que ninguém decente gosta de mim assim? Por vezes quase que me farto de esperar o príncipe encantado (como agora). Isto não significa aceitar um sapo (nunca na vida). Apetece-me tornar-me uma revolucionária... ou então refugiar-me no Alentejo (olha que a África dali de cima também não era uma má ideia). Extremos. Sempre os extremos.

Anónimo disse...

Pressinto que todos temos por algum tempo o coração cravado de navalhas, e outros em que as migalhas da nossa lucidez nos conseguem fazer erguer e construir belezas fugidias.

Pelo menos em ecritas acidentais, em bolsas de felicidade dispersas como gotas, na vertigem que a arte nos provoca.

Até ao próximo momento, em que esse fascínio regressa, e nisso concordo contigo E., na maioria das vezes tão levemente percepcionado pelo outro, ou quase nada. Um sopro, uma inquietude de sombras e o outro só nos vê pela lente desse sorriso de volta à realidade, como uma espécie de vergonha por esse sentimento tão perturbador. Mas continuamos à procura dele.

Sempre e sempre. Tornando tudo o que fica distante desse mergulho, tudo o que é apenas epidérmico, quase insuportável. T

Anónimo disse...

Até que enfim T. Já estranhava a tua ausência. Estava prestes a lançar um alerta de "Procura-se T".

O E voltou com a força toda. É um querido malvado.