9 de janeiro de 2008

Ainda sobre a Insustentável Leveza...

Marc Chagall

... há algum tempo que penso em Tomás, mas creio que apenas com base nessas horas de reflexão é que o pude ver distintamente, junto à janela do seu apartamento, olhando pelo pátio para as paredes do outro lado, sem saber o que fazer. Tomás conhecera Teresa cerca de três semanas antes, numa cidade no interior profundo da antiga Checoslováquia. Não tinham passado nem sequer uma hora juntos. Ela acompanhara-o à estação, aguardando a seu lado até que ele embarcou no comboio. Dez dias mais tarde, foi visitá-lo. Fizeram amor no dia em que ela chegou. À noite, ela caiu de cama com febre e, engripada, passou uma semana inteira no apartamento dele. Tomás acabou por nutrir um amor inexplicável por aquela completa desconhecida; ela parecia-lhe uma criança, uma criança que alguém colocara num cesto de vime revestido de alcatrão e que assim enviara rio abaixo, para que Tomás o apanhasse às margens de sua cama.
Teresa ficou com ele quase uma semana, até se recuperar, regressando em seguida para a sua cidade, a uns duzentos quilómetros de Praga.
E chegou então o momento que mencionei há pouco, que vejo como a chave da sua vida: postado junto à janela, ele olhava por sobre o pátio para as paredes em frente, ponderando. Devia chamá-la de volta a Praga para sempre? Temia a responsabilidade. Se a convidasse, ela viria, oferecendo-lhe a própria vida. Ou devia evitar uma aproximação? Nesse caso, ela permaneceria sendo uma empregada de copa num restaurante de hotel de uma cidade do interior, e ele jamais a veria novamente.
Queria ou não que ela viesse? Olhando por sobre o pátio para as paredes em frente, Tomás procurava por uma resposta.
(...)

Olhando por sobre o pátio para as paredes sujas, Tomás percebeu que não tinha a menor ideia se aquilo era histeria ou amor. E afligiu-se por, numa situação na qual um homem verdadeiramente saberia de imediato como agir, estar a vacilar, privando de sentido os momentos mais belos que já vivera (ajoelhado à beira da cama, pensando que não sobreviveria se ela morresse).
Irritou-se consigo próprio, até perceber que, na verdade, era bastante natural que não soubesse o que queria. Jamais nos é possível saber o que queremos, pois, vivendo uma única vida, não podemos compará-la às nossas vidas anteriores, ou aperfeiçoá-la em vidas futuras. Era melhor ficar com Teresa ou sozinho? Não há como testar qual decisão é a melhor, porque não há base para comparação. Vivemos as coisas conforme elas se apresentam, desavisados, como um actor que entra num palco sem ensaiar.
De que vale a vida, se o primeiro ensaio para ela é a própria vida? É por isso que a vida é sempre como um esboço. Não, "esboço" não é bem a palavra, porque um esboço constitui-se das linhas gerais de alguma coisa, a base de uma pintura, ao passo que esse esboço que é nossa vida é um esboço de coisa alguma, linhas gerais de pintura nenhuma.
Einmal ist keinmal, diz Tomás a si mesmo. O que só acontece uma vez - afirma o provérbio alemão - melhor seria que não tivesse acontecido. Se temos uma única vida para viver, melhor seria não termos vivido?


Milan Kundera, tradução livre a partir de uma versão inglesa de "A Insustentável Leveza do Ser"

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