4 de setembro de 2008

Quando o cinema é mesmo uma arte




Takeshi Kitano, Aquiles e a Tartaruga

Machisu é um pintor sem êxito que toda a vida corre atrás da "arte" como outros correm atrás da felicidade ou do amor, sem nunca a alcançarem. Fá-lo desde tenra idade e mergulha tanto nesse objectivo que, já velho, repara que foi mais um corredor que um pintor. O pintor na fase madura é interpretado pelo próprio Kitano e o cinismo patente remata-se na auto-destruição da obra daquele, directamente relacionada com um auto-retrato do próprio Kitano. A arte tem de ser original? A originalidade e a arte, ou a procura de um e de outro (ser original para ser artista?) são potencialmente mortíferos. O filme faz apenas sentido quando olhamos para dentro de Kitano, não para o drama que se desenrola no ecrã. Neste aspecto, ou estamos interessados na viagem ao interior de Kitano, ou nem vale a pena sentarmo-nos e dispender as quase duas horas que duram o filme, se estivermos apenas interessados no aspecto estético da película. Aliás, visto somente por este prisma, estamos conversados, Aquiles e a Tartaruga mata-se a si próprio e não se recomenda enquanto filme...

... mas neste caso, repita-se, há um golpe de sorte. Assim como na vida real procuramos o nosso complement circular, Kitano encontrou-o aparentemente no Festival de Cinema Veneza deste ano, num filme estreado por Abbas Kiarostami. Duas horas de primeiros planos de faces de espectadores de um filme em projecção totalmente "fora de cena" caracterizam a película. A câmara está colocada na tela de cinema e não se vê nenhuma cena do filme que está a ser projectado nesta. Os actores são os espectadores, neste caso apenas espectadoras numa sala de cinema em Teerão, e nós, espectadores de Shirin, ficamos de costas voltadas para a arte projectada na tela. Kiarostami não encontra a arte, vira-lhe a costas. O conceito é tanto mais arrojado quanto sabemos que Kiarostami já a encontrou (em o Sabor da Cerejas, por exemplo) e mesmo assim arrisca. Shirin é uma heroína persa que um dia fugiu de um harém e o filme é sobre esse tema. Mas nunca o vemos directamente, apreendemo-lo unicamente pelas expressões faciais nas caras das dezenas de mulheres - actrizes iranianas - que assistem à película (e entre elas está Juliette Binoche, que sai da sala três ou quatro vezes) e se identificam com a mulher evadida.

Vimos apenas as versões unplugged, com qualidade sofrível mas ainda assim aceitável... Mas voltando ao que se disse atrás, o que há de comum afinal nos filmes de Kiarostami e Kitano? Simplesmente a procura última da arte, ou a demonstração do amor à arte, mesmo quando esse caminho é trilhado sozinho. Mas neste caso, ou melhor, em ambos os casos, esse caminhofoi trilhado a dois por ambos os realizadores. E por isso , nesta óptica, os dois filmes completam-se e tornam-se imprescindíveis.

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