8 de setembro de 2008

Pediram-lhe que continuasse. Ainda durante um bom bocado de tempo, que se prolongou para além do encerramento do estabelecimento. Viram os empregados partir, uns descendo, outros subindo a pequena pendente da rua. E por fim Xavier pediu ao músico que se sentasse. Este apresentou-se:
- Muito obrigado, chamo-me Jan Hoecht. Agradeço-lhes terem tido a paciência de me ouvirem.
- Prazer Jan, eu sou Xavier Dias e...
- Clara – atalhou esta, estendendo a mão ao músico, que lha estreitou com delicadeza.
- Nós é que agradecemos Jan. Há demasiado tempo que não ouvia Il Trillo, sobretudo com a intensidade com que o fez há instantes – disse Xavier.
- Obrigado, mas metade do mérito é sempre do instrumento – exclamou o músico enquanto aproximava a cadeira de ferro da mesa, olhando para o resto de vinho que permanecia intacto na garrafa em cima daquela. Xavier entendeu e serviu-o num dos copos de água não utilizado que se encontrava em cima do tampo de pedra. Jan ergueu o copo olhando para Xavier e depois mais detidamente para Clara e levou-o aos lábios entreabertos.- É uma herança.

Clara fingiu não reparar no olhar de Jan e entreteve-se a observar o que este trazia vestido. Na verdade não parecia um músico de rua. Vestia de forma elegante, embora casual, as unhas impecavelmente arranjadas, a culminar uns dedos longos e graciosos de umas mãos nas quais ela poisara o olhar desde o primeiro instante, sem ouvir a ladainha musical de Tartini, que em bom rigor a faziam lembrar lamentos. As roupas de Jan estavam limpas e o calçado era cuidado. Envergava óculos com uma fina armação de metal equilibrados num nariz fino e anguloso, que assentava perfeitamente no seu rosto estreito, encimado por um cabelo liso mas rebelde. Tinha uma estatura média. Xavier pressentiu os pensamentos de Clara, mas prosseguiu:

- Uma herança? Fala da música ou do violino?
- Falava da música, mas em rigor ambos o são.

Xavier interrogou o músico com o olhar e este prosseguiu:

- Foi um homem que conheci em tempos que me deixou ambos. Um antigo amigo da minha mãe, passou uns tempos connosco e quando partiu deixou-me o violino. De certo modo, a música também. Quando não estava a pintar arranhava as cordas. Eu achava que tocava bem, mas ele estava sempre insatisfeito. Acho que era muito exigente. Como quando pintava, procurava a perfeição. Via-o vezes sem conta a desfazer de dia o que pintava de noite. Ficava esgotado e nesses momentos partia com o violino debaixo do braço pela cidade. Às vezes via-o ao pé da ponte, outras vezes aqui nesta mesma esplanada, mas em muitas ocasiões ia para os campos em redor da cidade, sobretudo quando estes estavam floridos.
- Esse homem, Jan, como se chamava? - arriscou Xavier, cruzando mentalmente os dedos da mão.
- Sevlak. Erik Sevlak.- o nome dele está ali no estojo do violino, disse o músico apontando na direcção da caixa depositada em cima de uma mesa vizinha.

Clara permaneceu imóvel, indiferente à novidade e ao brilho nos olhos de Xavier.

- Sei o que estão a pensar - continuou – não sou mendigo, sou músico, numa orquestra e às vezes divirto-me a fazer de mendigo nas esplanadas. Não em Arles, mas gosto de cá voltar algumas vezes por ano para conviver com a minha infância e adolescência. Ou para vir ao Festival de Música do Mundo em Julho. Não nasci, mas cresci aqui. É a minha terra, porque todos os homens têm de ter uma, suponho. Depois sinto-lhes o peso, à minha infância e à adolescência, fecho a porta de casa da minha mãe e parto até que sinta novamente o desejo de regressar.
- A sua mãe ainda é viva, Jan? - a pergunta fora de Clara.
- Não, morreu pouco depois da partida da Sevlak É algo que nunca percebi. Como esta música. Toco-a sem saber porque o faço, apenas me ficou no ouvido porqe um estranho ma legou.
- Esse Sevlak – era agora a voz de Xavier que se ouvia – apenas pintava? Ainda é vivo?
- Nada sei dele, nem se ainda vive. Creio que em tempos tentou escrever, mas sem grande sucesso. Lembro-me de ver um ou outro livro dele lá em casa, sei que li um deles pouco depois da sua partida, mas não me despertou grande curiosidade e não peguei nos outros. Ele mantinha-os fechados e quando partiu tive de prestar assistência à minha mãe, arrumei tudo no sótão de casa e acabei por me esquecer do assunto quando parti de Arles.
- Há mais livros? - tornou a perguntar Xavier.
- Creio que sim, mas porque esse interesse?
- Porque o Xavier meteu na cabeça que Erik Sevlak foi um grande escritor e leu algures um extracto de uma suposta obra-prima que identificou adivinhou como sendo dele. Em resultado disso, há três anos que percorre cada alfarrabista e cada biblioteca de cada terra por onde passa a tentar desentrincheirar essa obra.

Xavier pressentiu o tom de desinteresse na voz de Clara, mas permaneceu imóvel. Jan olhou na sua direcção:
- Hoje é tarde, mas amanhã convidava-os de bom grado a virem a minha casa ver se há algo que vos possa ser de valia. Para vós e para mim, que também procuro algumas respostas e qualquer ajuda nesse sentido é bem-vinda. Procurem-me nesta direcção amanhã às quatro da tarde. - Jan estendeu-lhes uma folha de bloco de notas onde registara um endereço. - E isto pertence-vos. Por favor dêem-na a um verdadeiro mendigo.

Estendeu a moeda a Xavier. Os dois homens despediram-se apertando as mãos. Clara acenou apenas com a cabeça, mantendo as mãos nos bolsos do agasalho. O músico desceu a rua e ambos ficaram, de pé, a vê-lo afastar-se num passo rápido. Caminharam depois em silêncio, na direcção oposta, como opostos eram os seus pensamentos. Quando chegaram ao quarto de hotel deitaram-se:

-Boa noite, Xavier.
- Boa noite, Clara.

Esta virou-se para o lado, apagando a luz com que nessa noite ensombraram um pouco mais os seus pensamentos.


La realeza esta en el manejo de los libros.
Al Mutamid rey de Sevilla, séc. XI

Rokia Traoré, Aimer

Sem comentários: