19 de setembro de 2008


Duas pancadas secas na porta obrigaram Javier Falcón a levantar instintivamente o olhar na direcção daquela, desviando-o dos relatórios do dia. Não teve tempo para balbuciar uma resposta, pela fresta que se abriu na umbral da porta do seu gabinete assomou o frontispício amarelado e gorduroso do comisario Diego Cuadril.
- Boas Javier. Ainda aqui a esta hora?
- Os vilões não dormem comisario.
Iluminado pela única luz proveniente da lâmpada de mesa acesa sobre a secretária de Javier Falcón, Diego Cuadril esboçou um sorriso cínico que lhe expôs os dentes lisos, pequenos e espaçados que acentuaram o seu aspecto de ratazana de esgoto.
- Pois não Javier, pois não. Tome por isso cuidado.
Javier não soube se devia encaixar a frase como uma ameaça velada, ou como um conselho. Nunca achara que o comisario fosse um homem pródigo em bons conselhos, pelo que optou pela primeira alternativa.
- Que nos dizem os mortos de Sevilha esta noite, Javier?
- Já sabe das notícias, comisario?
- Os pretos? Sim sei, menos dois, verdad?.
- Sim, dois africanos mortos no porto. - respondeu Javier, ignorando a afirmação do comisario.
Por vezes Javier esquecia-se de quão vis e despropositadas as afirmações do comisario lhe soavam. A tolerância não era uma das qualidades daquele e a paciência para a falta dela não era uma virtude que abudava em Javier. Decidiu por isso fechar o dossier que examinava, fingindo olhar para o relógio, sem conseguir disfarçar o seu desagrado.
- Já estava de saída. - disse, levantando-se num movimento explosivo que fez as costas da cadeira de couro puído projectar-se contra a parede atrás da secretária de carvalho.
- Eu não me demoro também. Deixo-o entregue à companhia dos seus mortos.
Fechou a porta devagar e retirou-se. Os passos pesados do comisario ouviram-se no chão liso do outro lado e dir-se-iam que acompanhados de um riso trocista que o perseguia e se lhe colava como uma sombra.
Olhou para as fotografias presas com uma mola à capa do processo e recordou brevemente o dia.
Dois corpos haviam sido encontrados numa zona afastada do porto. Um deles, amarrado a uma cadeira, o outro prostrado, com as mãos amarradas, em posição fetal, dentro de um contentor vazio aberto. O corpo amarrado à cadeira apresentava um golpe ao nível do pescoço, de onde pendia a língua do homem. O outro apresentava a boca escancarada, sem qualquer dente, com as gengivas plenas de sangue seco, por onde se passeavam insectos. Os dentes foram encontrados a um canto do contentor, inteiros, a um canto. Em ambos os cadáveres os dedos das mãos estavam amputados pelas falanges e a pele da face tinha sido removida com uma precisão cirúrgica, não permitindo identificar o rosto daqueles homens. As roupas estavam empapadas em sangue e havia múltiplas escoriações nos braços e pernas. A causa das mortes não estava ainda apurada, mas tudo indicava que fosse resultante do choque, devendo ter sido lenta e dolorosa. O médico legista tinha prometido um relatório para o dia seguinte.
Desligou a luz de secretária, saiu e fechou a porta à chave. Olhou na direcção do gabiente de Diego Cuadril e não viu luz por baixo da porta. Virou-se na direcção oposta e mergulhou na penumbra do corredor largo, que atravessou com passos rápidos em direcção à escadaria central do edifício da jefatura, que àquela hora se encontrava em silêncio, descendo os três pisos que distavam até ao nível da rua. No piso térreo cruzou o parque de estacionamento nas traseiras do edifício, em direcção ao Seat colocado ao seu serviço, estacionado no lugar ao lado do Audi do comisario, que ali se encontrava ainda. Javier olhou instintivamente para a janela do gabiente de Diego Cuadril ao nível do terceiro andar, cuja luz permanecia apagada. Entrou no Seat e arrancou, despedindo-se do polícia de serviço na portaria.
Um minuto depois o Seat deslizou pela Avenida de la Republica Argentina rumo à ponte de São Telmo, embrenhando-se em seguida ao longo do Guadalquivir, em direcção à Avenida Torneo. A cidade desfilou pela cabeça de Javier durante quase uma meia-hora, até ter sido despertado do seu torpor por uma chamada telefónica.
- Inspector Jefe? Desculpe incomodar a esta hora
- Sim, detective Cristina, diga, por favor.
Cristina Ruiz era mãe solteira, uma jovem na casa dos vinte e oito anos, que aos dezassete se tinha apaixonado por um home dez anos mais velho que ela, que na primeira oportunidade a tinha engravidado. Contra todos os conselhos dos pais, fora viver com ele. De modo que se separaram dois anos mais tarde e ela ficou com a criança, um varão, nos braços, quando desistiu de lhe suportar o vício da bebida a troco de pancadaria. Tinha-o recebido uma segunda vez, mas igualmente não resultara e as bocas a alimentar passaram a ser duas, mercê do nascimento de uma menina. O pai das crianças desaparecera entretanto, ou antes se evaporara de dentro de uma garrafa de whysky e Cristina nunca mais soubera dele. Melhor assim, pensou na altura, quando conseguiu passar a viver descansada e livre de vapores etílicos. Criou as crianças com o ordenado de polícia e ingressara na brigada de homicídios porque o ordenado era um pouco mais alto. Para isso recebera formação especial e graduara-se na academia com a nota mais elevada do seu curso. Era um poço de força e, apesar da sua aparência franzina, era dos melhores elementos da equipa. Javier admirava o seu carácter forjado a duras penas na serrania da Alpujarra, onde havia nascido.
- O comisario Diego Cuadril acaba de morrer. Parece suicídio. Tiro de revólver na garganta - anunciou sem qualquer vestígio de comoção na voz.
- Merda! - suspirou Javier, enquanto invertia o sentido de marcha - demoro uns vinte minutos a chegar, Cristina.
- Até já inspector jefe, não se apresse, já selei o local, ninguém entra ou sai. Pablo está a caminho de casa do comisario para dar a notícia à mulher.
- Obrigado Cristina. E que mais há?
- Por enquanto mais nada inspector jefe.
Javier pressionou o botão encarnado e o visor apagou-se. Acendeu o rádio. Rumblas. De todos os ritmos possíveis, nenhum seria mais apropriado para o momento, pensou ironicamente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ainda bem que reabriste os comentários. Tenho de te confessar que estou preso pelo desenrolar da narrativa.

Anónimo disse...

A morte, mesmo a criminal, cheia de camadas de ódio por descobrir é sempre apelativa. Estamos visceralmente ligados à morte numa atracção que mistura desespero e alívio.

Nascemos muitas vezes reinventando-nos, para acreditarmos que a nossa, ao chegar será macia.

Jávier, há muitas moedas nas vísceras. E onde há moedas, nada á macio, só há a frieza do aço.

Ou a melancolia de quem não pode acreditar em ninguém. Deve ser horrível ter moedas, no estômago também...T