30 de maio de 2008

Xavier acordou com o som de um sms acabado de aterrar na sua mesa de cabeceira. Instantes depois o visor do telefone iluminou-se quase ao mesmo tempo em que abriu um olho, pouco antes de conseguir abrir o seguinte. Voltou a enterrar a cabeça no travesseiro, antes de ceder por fim à curiosidade de ler a mensagem acabada de chegar. Sete e um quarto. Na penumbra da divisão, a luz cintilante azul do visor informava-o: Hola! parto para Sevilla ahora. No puedo explicar más, hablo por la noche JF. Voltou a encostar a cabeça, mas já não conseguiu dormir, intrigado. Perto das oito levantou-se, esticou os ossos como pôde e desceu à cozinha em busca de uma boa dose de cafeína. Escolheu o lote e em seguida meteu-se no duche no momento em que a máquina de café começava a espalhar por todas as divisões aquele aroma que muda a péssima meteorologia de qualquer dia imediatamente depois da pequena desilusão resultante de se ter acabado de espreitar pela janela a ver o tempo que faz.
[...]
Ao cair da tarde, Xavier recebeu um telefonema. Hola Xavier? Aqui Falcón. Javier Falcón, seu homónimo, era um inspector da brigada de homicídios em Sevilha. Xavier conhecera-o havia uns anos, numa galeria de arte que inaugurava uma exposição de pintura do pai de Javier, Francisco Falcón, um conhecido pintor sevilhano caído em desgraça na conservadora alta sociedade andaluza mercê de um escândalo que veio a público e que envolvia, entre outras coisas, um possível plágio de obra. Javier tinha passado um mau bocado por causa do assunto, e ambos se conheceram quando um grupo de admiradores do pintor procurava reabilitar a imagem deste, procurando distinguir o homem do artista. Na altura, Xavier estava a conduzir um trabalho de pesquisa em Sevilha para a feitura de uma tese que então redigia. Alguém o tinha puxado contrafeito para a exposição, mas a dado momento tropeçou no filho do pintor, aborrecido de morte a um canto da sala. Simpatizaram imediatamente um com o outro e trocaram contactos, que mantiveram desde então, aprofundando a amizade. Independentemente de tudo, Francisco Falcón era um pintor polémico, como Xavier veio a descobrir mais tarde, diversificando as suas pesquisas. Javier punha-o agora ao corrente dos motivos da sua partida repentina para Sevilha, dado que se tinham encontrado de véspera em Vila Real de Santo António e tinham combinado uma pescaria. Obviamente, Javier tivera de se ausentar. Perguntou a Xavier se já sabia das novidades e como este lhe dissesse que não sabia de nada, pediu-lhe que acendesse a televisão e procurasse a TVE 1. Durante os segundos de espera, não trocaram palavra e Xavier ouviu atentamente, inquieto, a respiração apressada de Javier. Quando o ecrã se iluminou, xavier não conseguiu conter um foda-se perante as imagens. Um edifício em ruínas, escombros espalhados por uma rua, poeira no ar, gente ensanguentada, sentada, deitada no chão, chorando convulsivamente, cabeça enterrada entrer os cotovelos, os joelhos, gente deitada, inerte, ajudada por outras pessoas. Xavier já tinha visto algo semelhante, não ao vivo, mas naquela mesma televisão. Imagens de violência atroz, gratuita, um atentado. Merda, outro. Pensou. Não conseguiu perceber imediatamente onde tinha sido desta vez, mas quase de imediato o seu sangue gelou, quando viu a imagem do seu amigo Javier na televisão com um microfone diante da face. Sevilha, desta vez Sevilha fora a cidade mártir. Sentiu as pernas a fraquejar, os joelhos dobraram-se e cederam. Sentiu as forças a abandoná-lo quando viu as imagens do infantário, de mães e pais a chorar convulsivamente e quatro corpos de crianças cobertos por lençóis brancos.

28 de maio de 2008

Zeitgeist




Não se pode acreditar em tudo o que se ouve. Mas o que se ouve pode-nos fazer pensar. Senão agora, talvez futuramente. Zeitgeist é apenas um documentário, mas talvez por isso mesmo, apesar das duas horas de duração, vale a pena ver o documentário vencedor do prémio Artivist 2007, um festival que vai para a sua quinta edição em 2008, com a ambição única de fundir a arte e o activismo político, religioso e ambiental. Zeitgeist já foi visto por mais de oito milhões de pessoas. Aqui o filme, com legendas em português.

Sydney Pollack, 1934-2008

26 de maio de 2008

Notas musicais

O que há de original ou de pessoal numa escrita acidental? Um estado de sonambulismo chuvoso que nos encharca os ossos




e alegra como uma sonata concertada de notas de chuva reverberando numa vidraça? Xavier encostou-se para trás na cadeira, fechando por instantes os olhos, meditando sobre o que acabara de ler. O livro ainda aberto na palma da mão levou-o a palavras antigas, de Ramón Sampedro
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Después de tres meses de deambular [...], buscando el equilibrio perdido, pasa el tiempo y tomas conciencia de que no puedes encontrarlo. Nunca jamás. Ni puedes morirte, ni volver atrás"
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e daí saltitou para um troço literário de Cardoso Pires. Nunca devia ter lido Cardoso Pires, sabia-o desde sempre pela forma angustiada da sua escrita e mesmo assim fizera-o com a mesma inconsistência de alguém que sentindo-se atraído pelo abismo não resiste a dar o passo final que lhe retirará o chão de debaixo dos pés e, mesmo assim, já em plena queda, não pressente a morte, porque é como se já estivesse morto na angústia que antecede o passo fatal. Distraiu-se com um pardal que deambulava entre as mesas de metal polido da esplanada procurando migalhas. Migalhas. Era nisso que se transformara a sua lucidez. Os pardais eram agora dois disputando os despojos do pequeno-almoço de um casal de turistas espanhóis que se sentavam duas mesas adiante de Xavier. Instantes depois, este regressava mentalmente a Praga, à ala do Museu Franz Kafka, onde se encontram expostas as anotações do escritor que descrevem as visões medonhas que lhe inspiraram A Metamorfose. Enquanto deambulava entre as peças expostas, colocara-se inconscientemente atrás de uma parede de tecido branco que dividia em compartimentos a ampla mas escura sala, observando pelo canto do olho as expressões corporais de Clara enquanto lia os fragmentos retalhados dos rabiscos expostos. Gostava de a observar e sobretudo de o fazer sem que ela notasse o seu fascínio nesses breves instantes em que se lhe entregava por completo. Por vezes ela surpreendia-o, sorria e Xavier disfarçava retribuindo o sorriso, sem que ela contudo percebesse esse seu fascínio. Nunca o perceberia. Havia então já uma diferença apreciável entre a Clara que tinha naquele instante a escassos metros de si e aquela que vira pela primeira vez no Musée d' Orsay poucos anos antes...

21 de maio de 2008

Uma boa invenção

Público: A edição de 2008 do concurso de programas infantis da União Europeia de Radiodifusão (UER) premiou "A Invenção", uma curta-metragem portuguesa com a qual a RTP participou no certame. O filme foi considerado o "melhor exemplo de produção" do ano e o "mais forte" dos concorrentes.As restantes onze televisões presentes em Lucerna classificaram o filme da RTP com a nota máxima para a realização e para a produção. O filme estreia na RTP2 no dia 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, e será exibido em nove países europeus e, ainda, na África do Sul.A partir de uma ideia de Teresa Paixão, a responsável pelo departamento de programas infanto-juvenis da RTP2, “A Invenção” tem realização de Jorge Paixão da Costa, produção de Maria João Saint Maurice e música original de Luís Cília. Com a duração de quinze minutos e um elenco de cinco actores - três dos quais crianças - a acção do filme decorre numa casa burguesa do Portugal rural dos anos 50 e conta a história da invenção de Maria, a filha da criada, que constrói uma máquina de lavar pratos. A curta-metragem foi filmada em três locais diferentes, durante quatro dias e meio e custou 64 mil euros.Neste intercâmbio, a RTP escolheu dez curtas -metragens que exibirá sem qualquer custo.

16 de maio de 2008

Generación Yoani

Já está de novo no ar o blog Generatión Y da cubana Yoani Sanchez, impedida que esteve de viajar para Espanha a fim de receber o prémio Ortega y Gasset para o jornalismo digital. O site esteve inacessível durante cerca de uma semana, alegadamente por problemas técnicos. Acerca do assunto escreveu Yoani, no dia 7 de Maio: No creía merecer tantas atenciones, pero si los funcionarios insisten, acepto esta nueva distinción. Olvidan ellos que en el ciberespacio mi voz puede viajar sin límites, salir y entrar sin pedir permiso… No importa si mantienen retenido mi pasaporte. Desde hace un año tengo otro que en el acápite de nacionalidad exhibe una breve palabra: “blogger”.
Vincent Van Gogh, 1888,
Starry Night over the Rhone

Falemos pois
agora baixinho
Porque a noite se apagou
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Ainda neste verso pensava Xavier quando no dia seguinte se sentou no banco almofadado colocado no centro da imensa sala branca em cuja parede nascente estava pendurado o original do mestre holandês. Ali permaneceu cerca de vinte minutos, distraindo-se ocasionalmente a observar quem entrava na sala, detendo o olhar num ou noutro pormenor, apurando o ouvido para um ou outro comentário mais conhecedor, mas procurando, sobretudo, apesar do muito que tinha lido acerca da pintura, absorver as explicações dos guias que na altura conduziam, empunhando uma pequena bandeira em riste, pequenas hordas de turistas estrangeiros. Conferiu distraidamente as anotações que tirara e preparou-se para se levantar. Não viu por isso de imediato, uma mulher de vestido branco que entrou no perímetro da sala número trinta e cinco do Musée d' Orsay com passo elegante, seguro mas discreto. Uma mulher que não passou despercebida a quem se encontrava na sala e, como Xavier viria a confirmar mais tarde, não passava despercebida em lugar algum.
[...]
Clara era, na verdade, uma pessoa fascinante, embora um pouco altiva e cruel na forma como se manifestava. Era dona de um sorriso muito particular, cativante, mas simultaneamente irónico e afectuoso, embora suficientemente plastificado para manter à distância quem não lhe agradasse. Todos os homens se apressavam a abrir-lhe as portas por onde passava, e poucos hesitariam em segui-la. Tinha consciência disso e até determinada altura isso dava-lhe especial prazer. Era, em suma, uma sedutora nata que sabia agradar com o seu gesto estudado, os silêncios ou um comentário inteligente. Gostava de não passar despercebida, na verdade esforçava-se em cada pormenor por isso. Conhecia toda a gente, tratava os chefs dos restaurantes por tu ou pelo primeiro nome.
[...]
Almoçaram nessa mesma tarde, com uma toalha estendida sobre a erva fresca, à sombra de um plátano cuja folhagem começava a cair. A tarde voou enquanto se ouviam os rebanhos de cabras a passar ao longe e a água fresca de um riacho a escorrer entre as pedras um pouco abaixo de si. Ao anoitecer levantaram-se, despediram-se a custo e trocaram números de telefone. Ela partia para uma conferência em Valência, ele regressava a Alcoutim, onde havia restaurado uma casa velha para onde se mudara de armas e bagagens a fim de terminar um romance que começara a escrever há demasiado tempo.

15 de maio de 2008

It ain't over till deaf lady sings



THE HUNT OF KING CHARLES: Uma companhia finlandesa afirma que acaba de levar à cena a primeira ópera encenada por deficientes auditivos, em linguagem unicamente gestual. A técnica empregue é a do exagero do gesto utilizado em palco.

13 de maio de 2008

20 canções de amor e um poema desesperado

IMPERDÍVEL: O palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, recebe hoje, terça-feira e amanhã, quarta-feira, Maria João, a primeira das três vozes convidades para consubstanciar o projecto "20 Canções de Amor e Um Poema Desesperado". Na quinta e sexta-feira será a vez de Rui Reininho. Sábado e domingo, Pedro Abrunhosa encerra esta série de concertos (sempre às 21:00) de um projecto que foi contado a Mário Dias por Inês Mota, a mentora da ideia.
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(Já agora, não perder também Bebel Gilberto, na Aula Magna, hoje, às 22.00H).

12 de maio de 2008



Girando e girando no vórtice em expansão
O falcão não consegue ouvir o falcoeiro;
Tudo se destroça; o centro não se mantém;
Solta-se uma grande anarquia pelo mundo,
A maré de sangue é libertada, e por toda a parte
A cerimónia da inocência é afogada;
Aos melhores falta convicção, mas os piores
Estão cheios de apaixonada intensidade.
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A Segunda Vinda
W.B. YEATS

7 de maio de 2008

Philippe Quint e Janet Paulus, Jules Massenet, Meditação de "Thais"

Há cerca de uma semana Philippe Quint esqueceu o Stradivarius "Ex-Keisewetter", fabricado em 1723, no banco de trás do taxi de Mohammed Khalil, que apanhou o violinista no aeroporto de Newark, quando este regressava de um concerto em Houston. Como gesto de gratidão, Philippe propôs-se dar esta noite um concerto gratuito de meia-hora para os taxistas do aeroporto de Newark. O Stradivarius, na altura emprestado a Quint pela família Arrison, de Buffalo, está avaliado em quatro milhões de dólares. Quint demorara dezoito meses a convencer os Arrison a emprestar-lhe o violino.

6 de maio de 2008

Gustav Klimt em Liverpool

G. Klimt, Judith I
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De 30 de Maio a 01 de Agosto de 2008, inserida no evento Capital Europeia da Cultura, estará patente ao público, na Tate Liverpool uma exposição de trabalhos de Gustav Klimt e de Josef Hoffmann retratando a influência daquele no movimento de secessão vienense de inícios do Séc. XX. Imperdível? Não tanto, mas aqui há bilhetes e o euro valorizou-se vinte por cento em relação à libra desde o início do ano.
Paralelamente, também Stavanger, na Noruega, é Capital Europeia da Cultura em 2008. Os eventos de Verão são de elevada qualidade e a cidade tem uma arquitectura impecavelmente preservada, mercê do facto de estar instalada na mais rica província norueguesa. Durante o Verão existirão algumas ligações aéreas entre Liverpool e Stavanger via SAS, mas de Londres partem vôos diários que permitem cobrir a distância em pouco menos de duas horas.

5 de maio de 2008

One Day Poem Pavillion

Sijo: estrutura

Sijo: sequência
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Por vezes os algoritmos matemáticos da astronomia combinam-se na perfeição com a poesia das palavras. E esse casamente acontece em silêncio. A matemática, o Sol, as palavras, o silêncio, uma combinação perfeita. Aqui tudo se passa de forma lenta, muito lenta, para permitir a correcta expressão dos sentidos da palavras. Porque podem as palavras ter mais do que um sentido? Terão o sentido com que as entendemos? Podem alterar o seu sentido com a passagem do tempo? Há palavras absolutas? Quão absolutas são as palavras sob o efeito da passagem do tempo? A passagem do tempo. Foi essa a ideia que presidiu à criação de Jiyeon Song, que construiu o seu One Day Poem Pavillion, a que chamou experiential tipography em torno dessa ideia, arquitectando um tecto de superfície complexa e perfurada através do qual o Sol atinge o solo dentro do pavilhão imprimindo caracteres móveis que constituem palavras, ideias, poemas a degustar serena e silenciosamente, ao sabor do suave passar do tempo.

Nas palavras do autor: Our life is finite. There are many things we can only do in a certain moment of the life, such as loving, forgiving, giving, helping, etc. Through the poem in the pavilion, I am offering a moment for people to rethink their values about life. In the One Day Poem Pavilion, I delivered a Sijo. The Sijo is classical Korean poetry that usually explores rustic, metaphysical, and cosmological themes about nature and human life.

The reason why I choose a Sijo is because it has a lot of metaphor. Furthermore, most Sijos don’t have titles on them, since Sijo poets believe that a title prevents readers from creative interpretations and experiences.
This character of Sijo is best fit for the One Day Poem Pavilion which conveys each stanza through the Sun’s movement so that each visitor’s time-based experience allows multiple interpretations of meaning. The Sijo that I have chosen is written by Kim Ch'on-taek (1725-1766) and speaks about the finite nature of human life.This poem talks about our finite lives and includes profound questions that allow one to be engaged in the message: each individual can create an experience by thinking and meditating upon the meaning of the poem.

1 de maio de 2008

Catorze anos já


O dia que chegar chegou. Pode ser hoje ou daqui a 50 anos. A única coisa é que ela vai chegar.

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Evocação do primeiro título no Japão, em 1988 e da primeira vitória, onde tudo começou, em Portugal, em 1985.