Xavier acordou com o som de um sms acabado de aterrar na sua mesa de cabeceira. Instantes depois o visor do telefone iluminou-se quase ao mesmo tempo em que abriu um olho, pouco antes de conseguir abrir o seguinte. Voltou a enterrar a cabeça no travesseiro, antes de ceder por fim à curiosidade de ler a mensagem acabada de chegar. Sete e um quarto. Na penumbra da divisão, a luz cintilante azul do visor informava-o: Hola! parto para Sevilla ahora. No puedo explicar más, hablo por la noche JF. Voltou a encostar a cabeça, mas já não conseguiu dormir, intrigado. Perto das oito levantou-se, esticou os ossos como pôde e desceu à cozinha em busca de uma boa dose de cafeína. Escolheu o lote e em seguida meteu-se no duche no momento em que a máquina de café começava a espalhar por todas as divisões aquele aroma que muda a péssima meteorologia de qualquer dia imediatamente depois da pequena desilusão resultante de se ter acabado de espreitar pela janela a ver o tempo que faz.
[...]
Ao cair da tarde, Xavier recebeu um telefonema. Hola Xavier? Aqui Falcón. Javier Falcón, seu homónimo, era um inspector da brigada de homicídios em Sevilha. Xavier conhecera-o havia uns anos, numa galeria de arte que inaugurava uma exposição de pintura do pai de Javier, Francisco Falcón, um conhecido pintor sevilhano caído em desgraça na conservadora alta sociedade andaluza mercê de um escândalo que veio a público e que envolvia, entre outras coisas, um possível plágio de obra. Javier tinha passado um mau bocado por causa do assunto, e ambos se conheceram quando um grupo de admiradores do pintor procurava reabilitar a imagem deste, procurando distinguir o homem do artista. Na altura, Xavier estava a conduzir um trabalho de pesquisa em Sevilha para a feitura de uma tese que então redigia. Alguém o tinha puxado contrafeito para a exposição, mas a dado momento tropeçou no filho do pintor, aborrecido de morte a um canto da sala. Simpatizaram imediatamente um com o outro e trocaram contactos, que mantiveram desde então, aprofundando a amizade. Independentemente de tudo, Francisco Falcón era um pintor polémico, como Xavier veio a descobrir mais tarde, diversificando as suas pesquisas. Javier punha-o agora ao corrente dos motivos da sua partida repentina para Sevilha, dado que se tinham encontrado de véspera em Vila Real de Santo António e tinham combinado uma pescaria. Obviamente, Javier tivera de se ausentar. Perguntou a Xavier se já sabia das novidades e como este lhe dissesse que não sabia de nada, pediu-lhe que acendesse a televisão e procurasse a TVE 1. Durante os segundos de espera, não trocaram palavra e Xavier ouviu atentamente, inquieto, a respiração apressada de Javier. Quando o ecrã se iluminou, xavier não conseguiu conter um foda-se perante as imagens. Um edifício em ruínas, escombros espalhados por uma rua, poeira no ar, gente ensanguentada, sentada, deitada no chão, chorando convulsivamente, cabeça enterrada entrer os cotovelos, os joelhos, gente deitada, inerte, ajudada por outras pessoas. Xavier já tinha visto algo semelhante, não ao vivo, mas naquela mesma televisão. Imagens de violência atroz, gratuita, um atentado. Merda, outro. Pensou. Não conseguiu perceber imediatamente onde tinha sido desta vez, mas quase de imediato o seu sangue gelou, quando viu a imagem do seu amigo Javier na televisão com um microfone diante da face. Sevilha, desta vez Sevilha fora a cidade mártir. Sentiu as pernas a fraquejar, os joelhos dobraram-se e cederam. Sentiu as forças a abandoná-lo quando viu as imagens do infantário, de mães e pais a chorar convulsivamente e quatro corpos de crianças cobertos por lençóis brancos.