7 de agosto de 2008

Javier Falcón chegou a casa muito depois das três da manhã. Jantara com Toumani Diabaté depois do recital que este dera nos Reales Alcazáres. Javier chegara cedo ao local do espectáculo, tivera oportunidade de cumprimentar o seu amigo de infância à chegada deste, numa caleche aberta, e depois entrara pelos pátios frescos, percorrendo as salas embalado pelo som da água que brotava das fontes espalhadas pelo interior, ressoando nos azulejos do período al-andaluz que revestiam as paredes do edifício. Havia vinte anos qe Toumani não tocava a solo e de certa forma este era um regresso às origens, que cumpria coincidindo com o lançamento de um novo álbum musical. Javier ouvira-o várias vezes a tocar a kora, mas desta vez ficou arrepiado quando o instrumento começara a soar nas paredes do velho palácio, prolongando-se e estendendo-se para o exterior na preguiçosa noite de Sevilha, empurrando as ocasionais notas de um desprevenido flamenco de bairro. À saída Javier cruzou-se com Consuelo Jímenez, trocaram olhares, ela sorriu exuberantemente na sua direcção e apertou o braço ao seu acompanhante. Javier admirou o vestido encarnado e justo que lhe cingia a cintura e o longo cabelo preso no alto da cabeça com uma rosa, perdendo-a logo de vista enquanto era apertado na pequena multidão que saía do palácio, desaguando na praça exterior.

Toumani resgatou-o quando ia começar a pensar no breve encontro, acenando-lhe da caleche que aguardava na praça sobranceira aos Reales Alcazares, separando-os da imponente Catedral. Javier subiu o degrau, transpôs a porta aberta e encolheu-se no assento, incomodado com a visibilidade que o carro aberto lhe dava ao lado do artista. A sua camisa azul clara pareceu-lhe demasiado berrante, mesmo ao lado da comprida túnica colorida de Toumani. O calechero estimulou a parelha de animais a iniciar a marcha e seguiu rapidamente na direcção indicada, enquanto pela primeira vez os dois amigos trocaram mais do que algumas palavras de circunstância:
- Então meu velho? - arrancou Toumani.
- Foste óptimo, rapaz, como sempre. Confesso que fiquei surpreendido...
-Deixa-te disso. Fala-me antes de ti.
- Não há muito para contar – disse Javier – pelo menos desde a morte do meu pai que tudo tem andado na mesma, tu sabes, as coisas triviais, as partilhas, as coisas familiares, o trabalho, nada de especial...
-Não me digas uma coisa dessas – atalhou o maliano, evitando entrar nas questões pessoais de Javier. Estava ao corrente do escândalo que envolvera o seu pai, Francisco Falcón e conhecia bem as irmãs de Javier para adivinhar em que tipo de problemas estaria o amigo metido no que tocaria às partlhas. Sabia igualmente do atentado de há dias e da morte de Agnes. Acompanhara o amigo à distância quando se separaram e fora seu confidente a espaços.
- Há desenvolvimentos no caso do homicídio de Agnes, Javier? Ouvi dizer que o marido está preso e é suspeito...
- Sim, mas estamos a estudar outras possibilidades. Pessoalmente não creio que tivesse sido ele.
- Que hipóteses há?

Javier fez sinal de não poder falar no assunto dado o estado da investigação e ambos se calaram por instantes. A temperatura refrescara e a noite estava agradável. A caleche deslizava agora pela Avenida de la Constitución sob o ondular suave das folhas das palmeiras. Acelerou pela Puerta de Jerez e depois de cruzar o Paseo de las Delicias, atravessou o Guadalquivir pela Puente de San Telmo, detendo-se num dos típicos engarrafamentos nocturnos em Triana. Instantes mais tarde, ambos jantavam frente a frente:

- Sabes Javier? Não auguro nada de bom para os tempos mais próximos.
- Como assim? - perguntou Javier.
- Estamos a morrer Javier. África está a morrer lentamente. A definhar...
- Mas não está há séculos?
- Sim, mas nunca esteve neste ponto. As pessoas estão desesperadas Javier. Não têm comi da para dar aos filhos, às mulheres, aos velhos. Aldeias inteiras devastadas pela fome, pela seca, pelas pragas e pelas epidemias. E agora, o custo dos alimentos. As pessoas matam por comida. Em alguns lugares, se tens uma saca de farinha és rico e poderoso. No mês passado, no Níger, um homem abriu um poço para dar de beber aos seus animais. Uma aldeia foi-lhe bater à porta e mudou-se para as suas terras. Mais duas se lhe juntaram e o homem de repente ficou com um pequeno exército disposto a dar a vida por ele.

Javier concordou. A Europa não fazia ideia do que se passava, atordoada com os seus próprios problemas. Ele vira o desespero nos olhos desta gente junto ao arame das cercas dos campos de refugiados de Ceuta e Melilla. Os que andavam por Sevilha, pelas raras sombras de Sevilha vendendo objectos e não só. Venderiam a própria alma se pudessem. O músico continuou:

- É gente desesperada Javier. Tu vê-los na rua. Aqui. Em Madrid, mas estão em toda a parte. São sombras. Ninguém os suporta, mas eles, a minha gente, veio para ficar, pelo menos enquanto África não for viável. A Europa tornou-se asséptica, fecha-se e procura manter-se limpa, ou limita-se a fechar os olhos ao que se passa a Sul, imitando os Estados Unidos. E enquanto isso, gente sem escrúpulos arma esta gente, dá-lhes um saco de milho por semana e uma espingarda e forma-se um pequeno exército que se ramifica por toda a parte, para qualquer fim. E com a vantagem de qualquer coisa que se faça ser sempre culpa da Al-Qaeda ou da ETA.
- Mas a ETA e a Al-Qaeda continuam a ser perigos reais, não?
- Sim, mas hoje aproveitam-se destas estruturas para exporem menos os seus efectivos, com a mesma ou maior eficácia. Repara, que hoje basta dizeres a um desses desgraçados que encontras na rua que garantes o acesso à água da sua família sedenta lá longe, na Guiné ou no Níger caso ele aqui te faça um trabalhinho...
- Entendo – pronunciou Javier, sentindo um arrepio percorrer-lhe a espinha, vendo o alcance das palavras do seu amigo.
- Nenhuma estrutura, nenhuma pessoa, está a coberto desta realidade Javier. A tua mulher a dias, a ama que trata dos vossos filhos, o motorista do presidente da Telefónica, ninguém sabe de onde vieram, quem são os seus familiares, e quão permeáveis estão a este tipo de submissão. Repara que hoje não basta que enviem dinheiro para os seus familiares, há lugares em que o dinheiro de pouco serve, ou então é preciso muito mais dinheiro do que aquele que lhes enviam. Entendes?

Javier desviou o olhar discretamente na direcção de um casal africano bem vestido que jantava na mesa ao lado e acenou afirmativamente para o amigo.

- E – continuou o maliano – isso sente-se em todos os campos. Há dias, num concerto em Amesterdão, a Bjork dizia-me que sente o mesmo e olha que ela é islandesa. Mas consegue ver, Javier, porque está de fora da vossa União Europeia, faz parte de uma minoria e sente na pele alguns dos problemas da “boa velha Europa” porque defende o direito à diferença. Bom, mas chega deste assunto. Brindemos. Continuas sozinho?
- Sim..
- Estás a dizer-me que desde Agnes não houve mais ninguém?
- Houve, mas não resultou – disse Javier e pegou no copo.
- Não resultou? Explica-me isso melhor, meu velho.
- Não resultou, Toumani. Ritmos diferentes de vida, falta de planos, sonhos, expectativas goradas, desilusões, essas coisas que fazem fracassar uma relação, sei lá. Enfim, adiante. Olha tens ido a Tan-Tan Plage?

O maliano não insistiu:

- Nunca regressei Tan-Tan Plage. Lembras-te Javier?
- Lembro-me imensas vezes de Tan-Tan Plage, Toumani. De como a vida era despreocupada.
- Para nós Javier, para ti e para mim. O teu pai era um pintor bem sucedido e o meu era um músico. Apesar de ter falecido cedo, deixou-nos algum conforto e a minha mãe beneficiou de um certo estatuto. Mas concordo que a vida era bem mais fácil naquele tempo.
- Lembras-te naquele ano em que fomos para a estrada, de madrugada, para vermos passar os carros do Dakar?
- O rali Paris-Dakar?
- Sim.
- Estás a falar daquele ano em que eras o único branco do grupo e resolveste passar cinza de fogueira na pele e excrementos de ovelha no cabelo para pareceres um negro?
- Sim
- Nesse ano os carros não passaram Javier.
- Não passaram?
- Esperámos duratnte horas e nunca passaram. Foram horas na estrada, mas nesse ano a Frente Polisário ameaçou a segurança do rali e a organização desviou o percurso. Creio que estás antes a falar daquele ano em que toquei numa das etapas e tu foste visitar-me. Em Bamako, no acampamento fora da cidade, na Elayne Road. Há trinta anos Javier...
- É verdade. O tempo...
- ...voa Javier.
- Definitivamente. Creio que são horas de irmos Toumani. O dia amanhã vai ser longo
- Sim, vamos – disse o músico colocando-se de pé num gesto apenas – mas recorda-te Javier: conduz as tuas investigações nunca descartando o que te disse esta noite. Mesmo na investigação da morte de Agnes.
- Achas que...?
- Não acho nada Javier, não faço ideia do que se passou e em todo o caso seriam apenas boatos.
- Que boatos?
- Nada de concreto Javier, mas sugiro-te que verifiques a lista de casos que Agnes tinha em mãos.
- Assim farei, Toumani. Obrigado pela sugestão.

Os dois amigos despediram-se com um aperto de mão caloroso seguido de um abraço selando a amizade de ambos com um sorriso franco, após o que se separaram. Javier caminhou um pouco ainda pela rua e depois tomou um táxi que o deixou em casa. Pelo caminho recebeu um sms de Pablo Blanco: “Identificámos o proprietário da Berlingo branca estacionada na garagem de Agnes. É de Córdoba. Amanhã falamos.”

1 comentário:

Anónimo disse...

Jávier carrega o sabor das trevas, e o feitiço dos homens que trazem África no sangue.

Jávier busca o sentido das causas perdidas, enquanto se busca na pesquisa do sumo que torna dois num só.

Haverá um outro destino para esta África descarnada, que de tão maltratada se torna maldita?

Lembro-me das minhas árvores, do cheiro a terra do meu sul, da água como xarope ensopando o meu corpo franzino. Culpo-me por ter partido, e julgo-me por não ter ainda voltado.

Mas culpo-me incluindo-me em toda uma civilização europeia, que falhou antes e falha agora como um parente apodrecido que rejeita as origens, e despreza a essência do que já explorou. Mas pior, como diz o maliniano amigo de Jávier, é que permanece cega, sem ver que se mata a si mesma nesta cegueira. T