29 de janeiro de 2009

Água de Janeiro

Climas, de Nuri Bilge Ceylan

Em Janeiro
um lírio à beira do caminho
serpenteante entre as falésias
desperta-me os sentidos
Ouço bem uma voz
a tua voz ecoando
errando pelo tempo
dividida pela neblina
que cobre os canaviais
baloiçando
Triste
é assim que a escuto
ainda hoje
por vezes quase-muda
nas copas das árvores
esqueléticas
uma folha tombando aliquando
a anunciar a morte perfeita
de outro dia
Ao entardecer
por vezes
recordo os olhos que deitavas para o largo
onde a espuma das vagas se forma
antes de adormecer na areia húmida da maré vasa
As tuas palavras
costumavam formar-se nesses instantes
brotando do silêncio dos teus lábios
eram a minha alma nesses dias
em que o teu rosto se iluminava com a chegada da lua
Íamos
embalados pelas vozes do vento vagabundo
cujas sílabas eram o sentimento puro
e o calor
que no rigor da estação
tornavam o Inverno
um lugar distante
e a chuva que caía
água fora do tempo.

27 de janeiro de 2009

[Freeport]

Já muito se disse acerca do caso Freeport de Alcochete. Já muito se disse acerca de um processo que veio a lume há cerca de quatro anos e no qual se sugeria que o Primeiro-Ministro pudesse estar envolvido. Já muitos se indignaram pela questão de fundo, já se ouviram na praça pública várias opiniões acerca do assunto e a Presidência do Conselho de Ministros, através de Pedro da Silva Pereira, veio explicar a visão da governação acerca do assunto em entrevista a Mário Crespo. As televisões já entrevistaram o tio, o primo, o Smith e o Pedro, não tenho a certeza se a empregada doméstica e a dona do café habitualmente frequentado por cada um deles, penso que até o porta-voz do Grupo de Forcados Amadores de Alcochete já deu o seu bitaite e um importante contributo para o pluralismo opinativo. Penso, pois, que não falta mais ninguém. Mas o que ainda não consegui perceber, nem penso que tenha sido explicado - e isso preocupa-me enquanto cidadão - foi porque motivo é que uma investigação que aparentemente está em curso há pelo menos quatro anos e no qual existe o nome de um Primeiro-Ministro envolvido ainda não produziu qualquer conclusão, acusação, ou despacho de arquivamento. Como é possível que José Sócrates tenha passado por um mandato inteiro sem saber o que estava ou está em causa e como é possível que vá passar por um novo período de campanha eleitoral nesta incerteza. É que, e isso é que é preocupante, significa uma de duas evidências: ou estamos perante uma inaceitável lentidão da investigação (sobretudo quando está em causa a estabilidade de um governo) e a consequente incompetência e laxismo de quem a dirige ou deveria dirigir, ou perante uma preocupante instrumentalização do processo-crime, que ficou adormecido para agora ser despertado num momento escolhido. Numa e noutra hipótese há, evidentemente, responsáveis a quem devem ser pedidas responsabilidades, a quem se deve exigir outro sentido de Estado, a quem o civismo não pode permitir o exercício de cargos que devem ser exercidos com imparcialidade e respeito. Já vai sendo tempo de se perceber que a lentidão e/ou a instrumentalização da justiça ferem profundamente o Estado de Direito, a cidadania e a Democracia. Qualquer cidadão tem direito à justiça (leia-se, a uma decisão) em tempo minimamente útil; obviamente, tratando-se de um membro de órgão de soberania, pela exposiçao mediática, desgaste e exemplo que representa, o cuidado tinha de ser maior, muito maior.
Não está, sublinhe-se, em causa, o conteúdo ou as motivações da decisão que conduziram ao despacho que permitiu a criação do empreendimento, nem nada de parecido. Está apenas em causa, apurar porque motivo a justiça não conseguiu reunir ou afastar a existência, em quatro anos, de qualquer indício de crime e, obviamente, identificar os responsáveis por esse atraso ou manipulação. E já agora, saber que razões determinaram o atraso ou que intenções estão por trás da manipulação da informação.

20 de janeiro de 2009

Resumo do vigésimo dia de Janeiro

chuva
acentuado arrefecimento nocturno
flores sopradas pelo vento
Sasha.
passos molhados
sorrisos de criança
azinho incandescente
noite serena
fogo segredado
tous les lits ouverts sur la mer
ou nous nous avons aimé

15 de janeiro de 2009

Esta noite
partirei
quando a lua tocar o teu rosto
e alongar a tua sombra sobre o lençol
O mar chama-me
Os meus passos perdem-se na areia
e na opacidade do mar
do tempo
O meu tempo
Esgota-se
nas rugas que sinto como sangue a pulsar
Esta noite
partirei
e as pétalas do girassol de pé
dentro do solitário
cairão
maciamente sobre o contador
sem arranhar a superfície
despedindo-se lentamente
como palavras
adormecendo.

In tempus praesens: Bach encontra Gubaídulina (II)

Perdoe-se a insistência na matéria, mas é impossível resistir. A gravação da Deutsche Grammophon reproduz dois concertos de Bach com os clássicos três andamentos em cada um deles, seguido do concerto composto por Sofia Gubaidulina, este último dividido em cinco partes.
Bebendo directamente de Bach, Gubaidolina estabelece contemporaneamente uma ponte entre o ocidente e o oriente, que é também uma ponte entre o passado e o presente, que se faz (também) com apoio directo no tema da fé, posto que a compositora russa é crente, embora ortodoxa. A composição In tempus praesens (o próprio título em latim invoca a contemporaneidade da peça e ainda a retrospectiva de uma antiguidade clássica) traz-nos por isso o peso da religiosidade, do combate entre a luz e as trevas ou as sombras, manifestadas estas pelo peso das tubas, trombones e contrabaixos nos acordes iniciais, os quais passam a alternar com a luz trazida pelos timbres mais altos e agudos dos violinos e dos violoncelos, que têm o seu expoente máximo no solo minimalista (divino?) interpretado por Anne-Sophie Mutter, que anuncia em êxtase o triunfo definitivo do bem e da luz sobre as trevas. Afinal, um tema caro em Bach (donde a importância da presença dos dois concertos que antecedem a peça de Sofia), que Gubaidulina assume por inteiro, "condenando-nos" à luz e a um destino próspero, sentença "inflingida" na última parte da peça.
O corolário expressa-se como o fresco na abóbada de uma catedral, traçando um arco de estrutura perfeita, onde a matéria musical se contém dentro de formas arquitectonicas delicadamente proporcionais e harmoniosas, de cores equilibradas.
No poema anterior procurámos expressar a ideia de esferas contidas sob um tecto, flutuando, como notas desafiando a gravidade de uma pauta, despertando a sensibilidade de quem as ouve. E pode muito bem ser esse o sentimento de quem ouve In tempus praesens, na certeza de que a luz triunfa... sempre?

12 de janeiro de 2009


Foto: Dee Caffari, onboard Aviva, Sudoeste do Cabo Horn

I am a nimbus
a metallic nimbus chained to a space
of spheres and clouds
that rains crystal waters
and defies the gravity of a true heart
with a grain of light
to a common destiny.

6 de janeiro de 2009

Folheando uns poemas antigos
com palavras semeadas
desconjuntadas
como ervas meio rapadas
Arrepio-me
e sinto o frio da estação
o corpo submerso
num mar que não se vê
que ninguém sabe ver
Encolho os ombros
e enquanto os jardins hibernam
e os pássaros migram
instala-se progressivamente o inverno da memória.

Eric Sevlak, Time after Time

À meia-noite em ponto o trem de aterragem do vôo RY 2354 proveniente de Barcelona tocou suavemente o novo asfalto da pista do aeroporto de Sevilha, como se o piloto tivesse tido o máximo cuidado para não perturbar o sono de alguns dos passageiros que dormitavam na penumbra da cabine. Quando a porta exterior se abriu, o cheiro da humidade da terra da planície andaluza penetrou no habitáculo, estimulando os sentidos de Consuelo.




Enquanto aguardava que Richard recuperasse as bagagens de ambos, Consuelo olhou distraidamente em volta, evitando pensar nas luzes fluorescentes e amareladas da zona de chegadas. Percorreu devagar a nave e reparou num jornal esquecido num trolley de bagagens, relatando as últimas notícias do dia

"Polícia continua sem pistas quanto aos autores do atentado contra o prédio em Sevilha"

Na primeira página do jornal, uma fotografia de Javier Falcón de óculos escuros perscrutando pela enésima vez os escombros em frente a uma tenda de campanha instalada pela Protecção Civil, cujos membros trajavam de branco, protegidos por máscaras equipadas com filtros de ar. Consuelo levou instintivamente a mão ao bolso do casaco, de onde retirou o telefone, no qual digitou apressadamente um número, aguardando ansiosamente pela voz do interlocutor. Nesse preciso instante Richard chegou, chamando-a ao seu encontro, empurrando o carro com as malas de ambos. Consuelo desligou o telefone sem se certificar que a chamada tivesse sido atendida

- Estou preocupada, a ama não atende, importas-te de me deixar em casa, Richard? Desculpa...

O inglês puxou-a para si, abraçando-a ao mesmo tempo que sorria afavelmente, encaminhando-se em seguida para o exterior, dirigindo-se para um táxi na fila próxima. Já na avenida de Kansas City, o odor das laranjeiras invadiu o habitáculo, mas só mais tarde Consuelo Jimenez o notou, concetrada que estava em encontrar a melhor forma de se despedir de Richard sem o magoar e sobretudo sem ter de lhe explicar que não queria que ele estivesse ao seu lado nessa noite. Sobretudo não nessa noite em que não queria misturar a perfeição aparente das duas noites anteriores, com o perfeito isolamento de que carecia então. Por isso o tacto da pele de Richard lhe pareceu insuportável quando lhe tentouu segurar na mão, por isso o cheiro dos seus cabelos, tão impecavelmeten lavados lhe pareceram insuportável. despediu-se como pôde, com a pressa de um artista que escolhe sem tempo as cores da tela que pinta num túnel de metro antes da chegada iminente da polícia. Sem o beijar, mas agradecendo delicadamente, com uma delicadeza criadora de distância, os dois dias maravilhosos que haviam passado juntos.

- Posso ligar-te amanhã?

- Sim, claro que sim, estarei cedo no Asador, depois de deixar as crianças na escola.

- Almoçamos?

- Sim, mas combinamos amanhã - respondeu Consuelo, na esperança de conseguir encontrar uma forma de se esgueirar.

E saiu do táxi beje, percorrendo num passo rápido a distância até à entrada do luxuoso bloco de apartamentos onde residia. Enquanto isso, Javier Falcón adormecia junto ao fogão da cozinha, com a mão direita descansando sobre a arma poisada nas suas coxas.