6 de janeiro de 2009

Folheando uns poemas antigos
com palavras semeadas
desconjuntadas
como ervas meio rapadas
Arrepio-me
e sinto o frio da estação
o corpo submerso
num mar que não se vê
que ninguém sabe ver
Encolho os ombros
e enquanto os jardins hibernam
e os pássaros migram
instala-se progressivamente o inverno da memória.

Eric Sevlak, Time after Time

À meia-noite em ponto o trem de aterragem do vôo RY 2354 proveniente de Barcelona tocou suavemente o novo asfalto da pista do aeroporto de Sevilha, como se o piloto tivesse tido o máximo cuidado para não perturbar o sono de alguns dos passageiros que dormitavam na penumbra da cabine. Quando a porta exterior se abriu, o cheiro da humidade da terra da planície andaluza penetrou no habitáculo, estimulando os sentidos de Consuelo.




Enquanto aguardava que Richard recuperasse as bagagens de ambos, Consuelo olhou distraidamente em volta, evitando pensar nas luzes fluorescentes e amareladas da zona de chegadas. Percorreu devagar a nave e reparou num jornal esquecido num trolley de bagagens, relatando as últimas notícias do dia

"Polícia continua sem pistas quanto aos autores do atentado contra o prédio em Sevilha"

Na primeira página do jornal, uma fotografia de Javier Falcón de óculos escuros perscrutando pela enésima vez os escombros em frente a uma tenda de campanha instalada pela Protecção Civil, cujos membros trajavam de branco, protegidos por máscaras equipadas com filtros de ar. Consuelo levou instintivamente a mão ao bolso do casaco, de onde retirou o telefone, no qual digitou apressadamente um número, aguardando ansiosamente pela voz do interlocutor. Nesse preciso instante Richard chegou, chamando-a ao seu encontro, empurrando o carro com as malas de ambos. Consuelo desligou o telefone sem se certificar que a chamada tivesse sido atendida

- Estou preocupada, a ama não atende, importas-te de me deixar em casa, Richard? Desculpa...

O inglês puxou-a para si, abraçando-a ao mesmo tempo que sorria afavelmente, encaminhando-se em seguida para o exterior, dirigindo-se para um táxi na fila próxima. Já na avenida de Kansas City, o odor das laranjeiras invadiu o habitáculo, mas só mais tarde Consuelo Jimenez o notou, concetrada que estava em encontrar a melhor forma de se despedir de Richard sem o magoar e sobretudo sem ter de lhe explicar que não queria que ele estivesse ao seu lado nessa noite. Sobretudo não nessa noite em que não queria misturar a perfeição aparente das duas noites anteriores, com o perfeito isolamento de que carecia então. Por isso o tacto da pele de Richard lhe pareceu insuportável quando lhe tentouu segurar na mão, por isso o cheiro dos seus cabelos, tão impecavelmeten lavados lhe pareceram insuportável. despediu-se como pôde, com a pressa de um artista que escolhe sem tempo as cores da tela que pinta num túnel de metro antes da chegada iminente da polícia. Sem o beijar, mas agradecendo delicadamente, com uma delicadeza criadora de distância, os dois dias maravilhosos que haviam passado juntos.

- Posso ligar-te amanhã?

- Sim, claro que sim, estarei cedo no Asador, depois de deixar as crianças na escola.

- Almoçamos?

- Sim, mas combinamos amanhã - respondeu Consuelo, na esperança de conseguir encontrar uma forma de se esgueirar.

E saiu do táxi beje, percorrendo num passo rápido a distância até à entrada do luxuoso bloco de apartamentos onde residia. Enquanto isso, Javier Falcón adormecia junto ao fogão da cozinha, com a mão direita descansando sobre a arma poisada nas suas coxas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cada um de nós hiberna para uma cápsula que ninguém mais pode ler. Apenas vemos claramente a distância a que estamos das restantes cápsulas. Como pombos voando, apenas aparentemente juntos.

Creio aliás que os blogues são um exorcismo desse isolamento celular, para poderem ser partilhados por todos, sem serem com ninguém.

Não é mau, e por vezes chega mesmo a ser bom. T