24 de junho de 2008

Quando terminou a visita, Xavier dirigiu-se ao pequeno mas bonito café do Musée d' Orsay. Pediu um capuccino com uma Perrier e predispunha-se a beber o primeiro ao balcão de um trago só, quando o seu olhar, passeando pela sala, se deteve e poisou na criatura que instantes antes vira na sala trinta e cinco, agora sentada a uma mesa. Haviam trocado um breve olhar quando ela abandonou a sala, depois de se demorar a contemplar o noite estrelada sobre o Reno e ele cumprimentara-a com um aceno de cabeça, que ela devolveu com um breve mas iluminado sorriso quando ele lhe deu a primazia na passagem à sala seguinte, apertando contra o peito um livro encarnado de capa envelhecida que segurava numa mão de tez morena e dedos compridos desprovidos de qualquer adorno. O autor do livro era Eric Sevlak e, coincidência ou não, Xavier estava a ler um livro do mesmo autor, embora um título diferente.
...
- Creio que o pai de Sevlak foi aluno de Sigmund Freud - disse Clara, enquanto poisava o copo na beira da mesa, empurrando o cabelo longo para trás num gesto estudado, que nela parecia natural - e devem ter vivido durante algum tempo em Viena. Sevlak nasceu em Bratislava e apenas veio para o ocidente nos anos sessenta ou setenta. Isso explica porque os seus personagens são por vezes sombrios, densos e sisudos.
- Como sabe que são sisudos? - perguntou Xavier, recostando-se na cadeira, como se esperasse uma revelação grandiosa.
- Não sei se são, imagino-os apenas assim. E sabe uma coisa? É algo que me incomoda, mas não consigo imaginar os personagens de Sevlak sem serem sisudos, é algo que lhe colei na pele e, acho, é algo com que teria de viver para sempre, se ainda fosse vivo.
- Bem, acho que um escritor será sempre vivo enquanto os seus livros se lerem - retorquiu Xavier - pelo menos deveria ser assim.
- Talvez tenha razão - respondeu Clara - mas é algo que é indiferente. Para mim, Sevlak será sempre um autor sisudo, esteja vivo ou morto.
- E como classificaria os personagens de Kafka? Quer dizer, sem dúvida que são bastante mais sombrios...?
Clara deteve-se a pensar um instante e respondeu com um seco encolher de ombros: horríveis. Xavier não insistiu e mudou de assunto no momento em que Clara chamou a atenção do empregado. Apenas falariam de Kafka numa outra ocasião.

3 comentários:

Anónimo disse...

Eu sei que tenho qualquer coisa de bonito a dizer acerca deste post. Mas tenho a massa cinzenta à beira da liquefacção. Espero a vossa compreensão.

Estou a precisar urgentemente dos meus habituais dias de retiro na Mina de S. Domingos.

Hoje até vou dormir 2 horas mais cedo. Boa noite *

T, o palco é teu. Faz as honras da casa.

Anónimo disse...

Então Lucy eu vou dizer o que acho de bonito neste post do E., nesta escrita que ele faz o favor de nos conceder. Não tenho a cabeça em desintegração, mas o corpo. Amanhã vou tentar não fazer nada, o que em mim é altamente improvável.

Quanto ao post: o belo é a frase em que Xavier, discordando de Clara,sobre Slevak e Kafka, desvia o assunto e elegantemente decide nada dizer. Há um estado de graça no amor a instalar-se, uma condescendência infinita, uma paciência de frisálides que só acontece num hiato marginal da relação.

Nesta campânula de tolerância, ninguém compete, a razão é apenas um elemento da filosofia grega e os dois seres tudo relativizam.

O segredo, mais um (!) de uma relação madura: Manter este estado de graça, alternando com picos de agressividade necessária, que é destilada num sexo deliciosamente selvagem. T

Anónimo disse...

Pois eu gostaria imenso de dormir agarrada a alguém maior do que o meu cãozinho de pelúcia. Quanto ao resto... só a duas pessoas diz respeito ;)