17 de junho de 2008

... - como já disse, não é absolutamente certo que me tenha ouvido - atalhou Javier Falcón, sem levantar os olhos do espesso copo de vidro enquanto terminava de beber o último dedo travesso do seu tinto de veraño, recordando a visita que Agnes lhe fizera na noite anterior. O mais recente cadáver de Sevilha era o da sua ex-mulher - sabes, Xavier? Passam-se coisas estranhas na mente de um homem que pensa que resolveu o seu sentimento por uma mulher até ao dia em que ela aparece morta no chão da sua cozinha, com sangue espalhado pelo chão e azulejos da parede. Percebes isto?
Xavier assentiu num gesto de cabeça e depois limitou-se a emitir uma frase feita e não pensada - Acho que as mulheres são muito mais pragmáticas que nós nisso - disse, mas rapidamente se deteve. Lembrou-se que nada pode ser generalizado e que qualquer ideia pré-concebida ou radicalismo sentimental se acaba por pagar ou voltar contra o seu autor, a médio ou longo prazo com algum sofrimento, como ondas que se propagam e regressam numa pedrada dada num charco de água da chuva. Fosse como fosse, sem a ter conhecido pessoalmente, Xavier sabia que Agnes tinha sido a mulher do seu amigo e, apesar da dor que lhe tinha inflingido, tornava-se claro que uma pequena ponta de sentimento permanecia viva, ainda que apenas referente a uma esguia viela de um passado mal resolvido. Agnes não tinha tido dignidade na forma como partira, e isso permitira a Javier seguir a sua vida. Mas uma coisa era a partida súbita de uma pessoa amada em vida, outra, muito diferente, a sua morte provocada, ensanguentada e violenta, sob a canícula inclemente de um verão que se anunciava chocante. Agnes era a décima sétima vítima de homicídio naquele princípio de verão andaluz e, não por coincidência certamente, era a ex-mulher do inspector-chefe da brigada de homicídios de Sevilha, casada com o mais promissor, bem-parecido e adúltero juiz de instrução criminal de toda a província.

Sem comentários: