28 de dezembro de 2009

"Arbeit macht frei"

Mea culpa, tenho andado a escrever pouco. Deve ser da qualidade da lenha que ando a utilizar, incita-me mais à contemplação que ao trabalho. Mas há acasos na vida. Eis, pois, um desses acasos: a propósito do furto da placa da entrada de Auschwitz (donde o título deste post), há dias, descobri que o compositor francês Olivier Messiaen foi preso pelas tropas alemãs mais ou menos ao tempo do início da invasão polaca. Não esteve inicialmente em Auschwitz, mas numa prisão vizinha, igualmente no Sul da Polónia.

O. Messiaen, Quatuor pour la fin du temps

Nessa condiçã,o compôs Quatuor pour la fin du temps. Entre os seus companheiros de cela figuravan um clarinetista, um violinista e um violoncelista. Messiaen padecia de subnutrição e tinha frequentemente visões acerca do princípio da eternidade. A peça foi pela primeira vez exibida em 1941 perante cinco mil prisioneiros do campo. Acerca do segundo movimento, Messiaen escreveu: "The first and third parts (very short) evoke the power of this mighty angel, a rainbow upon his head and clothed with a cloud, who sets one foot on the sea and one foot on the earth. In the middle section are the impalpable harmonies of heaven. In the piano, sweet cascades of blue-orange chords, enclosing in their distant chimes the almost plainchant song of the violin and violoncello".
É uma peça incontornável na música contemporânea, sobretudo na associação de instrumentos que coloca em cena (o que faz um piano nesta peça? O que fazia um piano em Auschwitz?). Mas é muito mais que isso. Marca o fim da linha para Messiaen, como para tanta gente, entre a qual, o compositor checo Pavel Haas, cuja obra acabo de começar a descobrir.

29 de novembro de 2009

2ª Sinfonia de Mahler, "Ressureição"

Cerca do minuto 22´ da peça acima, que coincide com o final do primeiro andamento, irrompem aplausos do público. É algo comum no decurso de uma peça, mas muito provavelmenteno neste caso, numa campa rasa no cemitério de Grinzig, perto de Viena, Gustav Mahler contorce-se na sua sepultura. Apenas porque quando compôs a peça deixou instruções específicas para que houvesse cinco minutos de silêncio entre o Primeiro e os demais andamentos, os quais deveriam ser utilizados para contemplação (1).

Um acto de fé? Provavelmente não, mas serve pelo menos para a meditação acerca da pergunta "há vida depois da morte?" que cada um de nós se faz em cada funeral, retratado no Primeiro Andamento e a recordação de uma existência feliz do falecido, celebrada no Segundo. A peça prossegue, entre dúvidas e questões que de certa forma permitem a reconciliação entre Deus e o homem, terminando com uma mensagem de esperança segundo a qual ninguém deve temer o Dia do Juízo Final, independentemente da fé que professe.

Voltamos então à pergunta: "um acto de fé?". Seguramente que não, por não haver a referência a um Deus explícito. Tudo se cinge ao simples "eu" humano. E quando dizemos "eu", é mesmo de Mahler que se trata. Donde, a necessidade da pausa entre a primeira parte da peça (o Primeiro Andamento) e a segunda parte (composta pelos quatro andamentos seguintes). De resto, é um tema caro ao compositor, que o repete nas suas sinfonias seguintes. Disto isto, refira-se, a parte musical é sublime (a mais interessante peça de Mahler?), fazendo lembrar a "nona" de Beethoven a espaços, quiça por culpa de um coro que repete vozes de andamentos anteriores? Mas como evitá-lo, se as dúvidas e os pensamentos que reflecte são emuladas dos versos anteriores, enquanto preparam o apoteótico e optimista final?

Apague a luz e deixe-se guiar. No final encontrará, com comoção garantida, outro "eu". Se tiver a sorte de saber onde encontrar a peça conduzida por Leonard Bernstein em DVD, acrescente-a à sua "wish list" deste Natal.

(1) Uma excepção a isto foi feita pelo próprio Mahler, numa carta dirigida a Julius Buths, Maestro, que dirigiu a Orquestra de Dusseldorf em 1903 o qual conseguiu arranjar a peça, dotando-a de uma pausa entre o quarto e quinto andamentos. Apesar disso, Mahler não deixouu de observar que não se devia abdicar da primeira pausa.

4 de novembro de 2009

2666




Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi usada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madrid, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma por cada um. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasiões e a palavra felicidade numa (empregou-a Espinoza). A palavra resolução foi dita em doze ocasiões. A palavra solipsismo, em sete. A palavra categoria, no singular e no plural, em nove. A palavra estruturalismo, numa (Pelletier). O termo literatura norte-americana, em três. As palavras jantar e jantamos, pequeno-almoço e sandes, em dezanove. As palavras olhos, mãos e cabeleira, em catorze. Depois a conversa tornou-se mais fluída.

Roberto Bolano, 2666
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A escrita tem coisas espantosas. Pegue-se no diálogo transcrito acima, por exemplo, da autoria do chileno Roberto Bolaño, onde o próprio autor utiliza um método quantitativo para analisar o excerto do diálogo entre dois amigos filólogos. O número associado à palavra revela um grande domínio desta, de tal forma que a estatística se constitui como um método para acentuar uma ideia, ou apenas para subtilmente a introduzir na narrativa. Por si só, o exercício constitui um recurso literário fabuloso, pela liberdade que proporciona ao autor. Mas há mais. Para melhor o exemplificar refira-se que, há dias, Saramago referia, a propósito do dilúvio de críticas que se abateu sobre Caim, que mais não fez que analisar a bíblia sob um ponto de vista puramente linguístico, olhando apenas para as palavras e para a sua sequência, posição e organização. Não teceu considerações morais, nem nenhumas de outra natureza especial. A análise da palavra no seu estado puro, portanto, numa perspectiva meramente linguística ou literária, se assim preferirmos. Eis então o que há de especial em Bolaño, a perfeita escolha das palavras, não meramente no aspecto qualitativo, mas sobretudo - não vá o leitor estar distraído - no quantitativo. A mesma palavra assume-se como verbo, nome e adjectivo, liberta-se das convenções, torna-se fim e princípio, como o algarismo num número composto.
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Mas há mais: se nos abstrairmos da estatística que a mera contabilidade das palavras constitui e pegarmos numa ferramenta como o Wordle, por exemplo, é possível reutilizar o método estatístico para criar composições literárias a partir de textos nos quais as palavras mais predominantes são visualmente salientadas, permitindo de forma mais ou menos directa fixar as suas principais ideias e matrizes. E então a palavra assume um conteúdo gráfico e visual, sem se esvaziar, porque se mantém intacta, porventura livre de amarras emergentes de leis gramaticais.
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Eis-nos então a olhar para 2666 sob o ponto de vista estético. E quanto ao conteúdo? Proust disse a dada altura que a prova de que estamos perante um grande escritor reside no facto de a sua escrita nos surgir imediatamente como feia. Na verdade, apenas escritores mais medíocres devem escrever maravilhosamente, uma vez que eles simplesmente procuram reflectir a nossa pré-concebida noção do que a que beleza é; não temos qualquer problema de compreender que um escritor medíocre o é, dado que já lemos o que escreve, se não nas suas páginas, pelo menos nas de outro, muitas vezes, anteriormente. Quando um escritor é verdadeiramente original, o fracasso em ser convencionalmente atractivo faz-nos vê-lo, inicialmente, como disforme, desajeitado, ou até perverso. Só depois aprendemos como lê-lo e então percebemos que a fealdade da escrita é realmente um novo tipo, totalmente inesperado, de beleza e que aquilo que parecia errado na sua escrita é exactamente o que o torna grande.
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Isto aplica-se a 2666. E aplica-se à forma, ao posicionamento, mas igualmente ao conteúdo das palavras no texto. Olhe-se por que perspectiva se olhar, à décima página estamos definitivamente agarrados como a uma maldição da qual não queremos libertar-nos. A este propósito, a Slate afirmou que 2666 é a trajectória do universo no limiar do apocalipse. Sem dúvida. Mas acrescentamos que é o apocalipse de Bolaño, mergulhado no mais íntimo do seu incontornável legado: o seu próprio sangue.

18 de outubro de 2009

'A flor máis grande do mundo'

A Inês enviou-me uma mensagem muito bonita. Fui lê-la e tive uma surpresa, que partilho convosco. Espero que gostem, como eu gostei. Obrigado filha.


6 de outubro de 2009

"Tout est lié. Tout est vivant. Tout est interdependant". Com esta citação começa "Le viol de l'imaginaire", 2002, livro escrito por Aminata Traoré, antiga Ministra da Cultura do Mali, à margem do Forum Social de Porto Alegre, realizado em 2001, aquele acerca do qual Boaventura de Sousa Santos afirmou ser o princípio do futuro.


C’est tel un tambour à l’aube des temps nouveaux que l’appel de Porto Alegre m’est parvenu. Mon cour de femme africaine, qui sait pourquoi il pleure, s’est alors mis à chanter l’esperance en exprimant mon rêve d’alternative à haute voix. Nous étions venus des milliers dans la capitale du Rio Grande do Sul (Bresil), munis de nos histoires de vie individuelles et collectives que nous voulions désormais différentes. Nous nous côtoyons - Rouges, Noirs, Blancs, Jaunes - en peuples arc-en-ciel - et solidaires dans cette quête commune d’un monde meilleur, conscients, fiers et respectueux de nos différences qui font le sel de la terre. Je me sentais de mon peuple, de mon continent et de ce monde de "quêteurs" de liens et de sens à la vie. Et je me sentais bien.
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No livro, Amina denuncia a voracidade do liberalismo e do racismo dos tempos coloniais e ao mesmo tempo o neo-liberalismo e o neo-racismo pós-coloniais, ideias que acentua numa obra escrita en 2004, "Lettres d'une Africaine à la France". Os seus discursos indiciam um combate pela dignidade, pela igualdade e pelo transnacionalismo africano cuja unidade e dignidade procura defender contra a ideia da piedade por África, afinal e em última análise o factor primordial em que assenta o mais enraizado racismo europeu, fonte do falhanço do continente, que é apenas igualado pelas políticas desastrosas do FMI, do Banco Mundial e da corrupção de alguns governantes africanos. Donde, para Amina, o falhanço actual de África assenta na ruína de três ideias, a saber: a económica, a política e a falha civilizacional, cuja correcção constitui a chave da resolução do problema e do princípio do futuro. À data, Amina preparava o Forum Social que decorreu em Bamako, Mali, em 2006.
Concorde-se ou não, as ideias de Amina merecem ser debatidas, repensadas e articuladas num contexto de relacionamento entre continentes, mas sobretudo entre gentes que são transcontinentais, sobretudo porque encontram reflexo numa forma de pensar que, no que nos interessa, pode ser africana, sul-americana ou asiática. Mas sobretudo, porque constitui uma maioria entre as minorias, o sentir africano não se cinge hoje aos africanos de e em África, mas aos muitos milhões que povoam a Europa do presente e que se sentem traídos no passado, alimentando um profundo ódio que abraça e alcança o futuro, hipotecando-o enquanto semeia as bases de uma discórdia que a breve trecho se não resolve. A falta de informação gera a incompreensão, a crise de identidades e o conflito, que apenas acentua a ruptura e a violência. No limite, o maior flagelo, a flor do racismo, desabrocha nestes confrontos ideológicos onde a intolerância se revela total e onde a herança cultural, a religião e raça procuram forjar heranças que mais não são que traços defensivos que assentam em identidades que, como dizia Amin Maalouf, se revelam, afinal, assassinas.


Diego Stocco Sound Design Video Reel 2008 from Diego Stocco on Vimeo.

Já aqui se falou do som das cores ou da cor do som. E nessa medida tudo à nossa volta seria som, ou antes tudo seria cor. É absolutamente irrelevante, na medida em que os dois universos se confundem e catalogar uma das duas realidades tornar-se-ia impossível, porventura, no limite, um absurdo. Mas será assim mesmo? E se, as próprias palavras, adquirindo um ritmo e sons próprios, também tivessem cores? Ou se as cores tivessem palavras? Múltiplas palavras? E um poema ou um texto pudesse ter uma conotação pictórica? Afinal, não raras vezes dizemos que um livro é cinzento, ou que determinado autor é pesado, como se o peso em si pudesse definir a densidade das palavras.
E se agora se imaginasse que tudo à nossa volta, em vez de cor e som, fosse... música? Ou seja, como se o som das coisas, a reverberação de cada corpo, pudesse ter múltiplas notas musicais com as quais fosse possível compor paletes de sons, que por sua vez pudessem permitir a criação de composições, sinfonias, concertos? Imagine-se uma composição composta com o som de passos num soalho, ou de areia do mar a cair sobre diversas superfícies, ou uma árvore de um jardim, ou até um instrumento musical utilizado de forma completamente diversa daquela para a qual foi criado. Um exemplo descrito na primeira pessoa:
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Imagine-se a infinitude de possibilidades que o sampling dos sons do mundo poderia ter se, adaptado numa realidade musical que combinada com o código das cores e das luzes, pudesse criar uma dimensão nova e paralela com a nossa. Delírio puro, pensar-se-ia. E no entanto, Diego Stocco - um auto-intitulado sound designer - vem fazendo isso há alguns anos a esta parte. Goste-se ou não, o resultado tem um impacto a que não se consegue ficar indiferente.
O vídeo acima é uma mistura de vários vídeos de Stocco.

28 de setembro de 2009

Cai o pano

(e depois do pano cair)
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Tu não entendeste
a importância de um corpo metamorfoseado
em silêncio a cada grito calado
no reflexo dos amanheceres calcários da cidade

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Tu não entendeste
a relevância de cada percurso nómada
ou o contorno longínquo dos sopés
irrigados de orvalho e geada em deriva lenta

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Tu desdenhaste
os meus amanheceres imperfeitos
à beira de um rio imaginário
sem atenderes ao movimento dos meus lábios
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Tu
somente as esquinas maquilhadas

das avenidas do mundo

25 de setembro de 2009

XI Encontro de Música Antiga de Loulé

A XI edição começa hoje e prolonga-se até 25 de Outubro. Imperdíveis deverão ser os espectáculos desta noite, em Quarteira, mas igualmente o espectáculo de homenagem a Handel de 4 de Outubro, na Edifício Duarte Pacheco, em Loulé e o Concert Brisé de dia 16, na Igreja de Querença.
olhar o Mar
sem pensar
é tudo o que sei fazer
sem acreditar em nada
sem tocar na água
antes Arder

[aquáticas palavras]
em lume brando
a 25 de Setembro

23 de setembro de 2009

Às voltas na blogosfera


felicita sala é romana e estudou filosofia. ouve nick cave, tom waits, seu jorge, ojos de brujo, aquaragia drom, moni ovadia, nino meloni, chavela vargas, cocorosie, harry belafonte, midlake, j. tillman, beirut, massimo giangrande, la rue kétanou, camarón de la Isla, portishead, architecture in helsinki, the dirty three, roots reggae, beck, björk, françoiz breut e klezmer. não se pode portanto falar de mau gosto musical. e para além do mais, pinta. muito bem. vale, pois, a pena passar demoradamente pelo babouche rouge.

17 de setembro de 2009


A vida escoando-se em torrente
Ruin
uma dispersão em que medito
is when man-made
sem nostalgia
becomes part of nature