Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi usada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madrid, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma por cada um. A palavra horror foi pronunciada em seis ocasiões e a palavra felicidade numa (empregou-a Espinoza). A palavra resolução foi dita em doze ocasiões. A palavra solipsismo, em sete. A palavra categoria, no singular e no plural, em nove. A palavra estruturalismo, numa (Pelletier). O termo literatura norte-americana, em três. As palavras jantar e jantamos, pequeno-almoço e sandes, em dezanove. As palavras olhos, mãos e cabeleira, em catorze. Depois a conversa tornou-se mais fluída.
Roberto Bolano, 2666
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A escrita tem coisas espantosas. Pegue-se no diálogo transcrito acima, por exemplo, da autoria do chileno Roberto Bolaño, onde o próprio autor utiliza um método quantitativo para analisar o excerto do diálogo entre dois amigos filólogos. O número associado à palavra revela um grande domínio desta, de tal forma que a estatística se constitui como um método para acentuar uma ideia, ou apenas para subtilmente a introduzir na narrativa. Por si só, o exercício constitui um recurso literário fabuloso, pela liberdade que proporciona ao autor. Mas há mais. Para melhor o exemplificar refira-se que, há dias, Saramago referia, a propósito do dilúvio de críticas que se abateu sobre Caim, que mais não fez que analisar a bíblia sob um ponto de vista puramente linguístico, olhando apenas para as palavras e para a sua sequência, posição e organização. Não teceu considerações morais, nem nenhumas de outra natureza especial. A análise da palavra no seu estado puro, portanto, numa perspectiva meramente linguística ou literária, se assim preferirmos. Eis então o que há de especial em Bolaño, a perfeita escolha das palavras, não meramente no aspecto qualitativo, mas sobretudo - não vá o leitor estar distraído - no quantitativo. A mesma palavra assume-se como verbo, nome e adjectivo, liberta-se das convenções, torna-se fim e princípio, como o algarismo num número composto.
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Mas há mais: se nos abstrairmos da estatística que a mera contabilidade das palavras constitui e pegarmos numa ferramenta como o Wordle, por exemplo, é possível reutilizar o método estatístico para criar composições literárias a partir de textos nos quais as palavras mais predominantes são visualmente salientadas, permitindo de forma mais ou menos directa fixar as suas principais ideias e matrizes. E então a palavra assume um conteúdo gráfico e visual, sem se esvaziar, porque se mantém intacta, porventura livre de amarras emergentes de leis gramaticais.
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Eis-nos então a olhar para 2666 sob o ponto de vista estético. E quanto ao conteúdo? Proust disse a dada altura que a prova de que estamos perante um grande escritor reside no facto de a sua escrita nos surgir imediatamente como feia. Na verdade, apenas escritores mais medíocres devem escrever maravilhosamente, uma vez que eles simplesmente procuram reflectir a nossa pré-concebida noção do que a que beleza é; não temos qualquer problema de compreender que um escritor medíocre o é, dado que já lemos o que escreve, se não nas suas páginas, pelo menos nas de outro, muitas vezes, anteriormente. Quando um escritor é verdadeiramente original, o fracasso em ser convencionalmente atractivo faz-nos vê-lo, inicialmente, como disforme, desajeitado, ou até perverso. Só depois aprendemos como lê-lo e então percebemos que a fealdade da escrita é realmente um novo tipo, totalmente inesperado, de beleza e que aquilo que parecia errado na sua escrita é exactamente o que o torna grande.
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Isto aplica-se a 2666. E aplica-se à forma, ao posicionamento, mas igualmente ao conteúdo das palavras no texto. Olhe-se por que perspectiva se olhar, à décima página estamos definitivamente agarrados como a uma maldição da qual não queremos libertar-nos. A este propósito, a Slate afirmou que 2666 é a trajectória do universo no limiar do apocalipse. Sem dúvida. Mas acrescentamos que é o apocalipse de Bolaño, mergulhado no mais íntimo do seu incontornável legado: o seu próprio sangue.
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