21 de junho de 2017

Este verão não era para ter começado assim. Com as labaredas a crepitar na copa dos castanheiros e dos pinheiros, com os pássaros atordoados, com o céu enegrecido, vidas perdidas. Desfeitas. Era suposto ter chegado de mansinho, fazer-se anunciar, com um raio de sol de cada vez, filtrado pelos ramos mais altos das árvores do bosque, o astro-rei recortado nos telhados e nas chaminés, entorpecendo os sentidos dos gatos dormitando nas aldeias, ao mesmo tempo que as cigarras afastavam o silêncio. As andorinhas jovens deixariam sem pressa os seus ninhos e preparar-se-iam para gozar o calor antes da sua primeira viagem de regresso ao local onde nunca tinham estado, mas onde sabiam ter de regressar. O amarelo instalar-se-ia progressivamente nos campos, montes e vales, substituindo suavemente o verde primaveril . Era assim que o verão devia ter chegado. E no entanto, desta vez os cardos mal floriram, as giestas ainda tinham flor, no pinhal os animais jovens ainda não se tinham libertado do leite materno. Hoje, os pássaros foram substituídos pelos drones e o olhar apenas alcança o negrume da terra, do silêncio da falta de vida. O fogo chegou, como no poema de Eugénio de Andrade:

Um dia chega 
de extrema doçura: 
tudo arde 
Arde a luz 
nos vidros da ternura. 
As aves 
no branco 
labirinto da cal. 
As palavras ardem, 
a púrpura das naves. 
O vento, 
onde tenho casa 


Custa a crer que ainda ali existam pessoas agarradas às cinzas, que viram as chamas a passar por cima das suas casas e nelas permaneceram para defender os seus bens, as suas vidas, sozinhas, com um balde de água. As suas vidas, enterradas numa casa, onde prefeririam ficar sepultadas se esse fosse o desígnio do deus em que muitas acreditam. Por vezes assim foi, a casa, a vida, confundidas numa só realidade. O fogo, ainda mal dominado, esse alastrará ao Terreiro do Paço, aos ministérios, à procura de culpados pelo incêndio no paraíso. A chuva desejada chegará tarde demais, mas não deixarão de chover acusações cruzadas com que se entreterão comissões à chegada do outono. Enquanto isso, no Pedrogão Grande, em Castanheira de Pera, na Portela do Fojo, em Góis, na Lousã, em Vilarinho, as gentes procurarão recuperar as suas vidas como puderem, a natureza procurará repor o que perdeu, as ciagarras voltarão a cantar, ainda que a ferida aberta demore muito a cicatrizar.

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