27 de fevereiro de 2009
Jheza é bela, muito bela. A sua beleza só é comparável ao som da sua voz quando desliza até ao poço de água equilibrando o cântaro no alto da cabeça. O rosto jovem é de uma simplicidade desconcertante e ao fim do dia parece-me que se alonga como se procurasse diluir-se nas sombras do entardecer. Os olhos negros parecem-me duas pedras preciosas pelo brilho que deles irradia. O branco que os rodeia ainda é imaculado e quando fala, mesmo sem perceber o que diz, bebo as suas palavras, uma por uma, tentando em vão descodificar as sílabas. Por vezes tenho a sensação que se me dirige. A sua voz perdura no ar mesmo quando fica silenciosa e a sua presença flutua até mim quando se ausenta, deixando para trás, impressas no solo empoeirado, as marcas dos seus pés delicados.
Partiu para Sul dois dias antes de eu próprio sair da cidade, acompanhando os do seu povo para o grande mercado anual de Bamako. Sei que a verei todos os dias até ao fim da minha vida, há rostos que não se esquecem na eternidade de uma vida.
Jheza é bela, muito bela. A sua pele, de um tom ébano claro, é lisa. Por vezes, quando inclina o rosto para trás, este ilumina-se ainda mais, batido pelo sol; nesses instantes, quase lhe sinto a respiração e o bater do coração e se me olha, o seu sorriso branco invade-me e fico preso na curva fina dos seus lábios, até que estes se cerram e então volto a concentrar-me no brilho dos olhos, que uma leve tristeza não consegue apagar em nenhuma circunstância.
Quando o vento se levanta e o deserto parece querer aterrar em Tombuctu com estrépito, Jheza começa a cantar pausadamente uma canção milenar. E então dá-se um milagre ou apenas uma mera coincidência que a minha imaginação alimenta: a tempestade passa, a luz do dia regressa e os habitantes do bairro começam a reconstruir as suas casas ainda antes de os últimos remoinhos abandonarem a cidade despertando um gato ocasional do torpor a que regressara, estendido ao sol. Pediu-me que nunca a fotografasse.
Road to forty
25 de fevereiro de 2009
upampoganikeysofalodentu
Encho-me de pena
upampo yena lokajozename
pena do vazio
ogakyena ogaratinga ammanshinshonkarinsi
que me enfada
amakyena upanpoganike popyentyi
tampurave
Enfada-me o eco que o vento traz
pogyentima vermeziloke shinonka
do casco do cavalo batendo na pedra
temp temp temp shiniy vokapu
Há já três luas
amkyena upampoganike tampurave
popyenyi
enche-me de pena o eco do vazio
das pessoas
.
O Pensador de Tombuctu
24 de fevereiro de 2009
20 de fevereiro de 2009
Mano Dayak
A voz de Dayak, ou Mano, entre os seus, no deserto ou na Sorbonne. A voz é quase tudo quanto me lembro dele. Pausada, detida, como o sussuro do vento nas dunas de areia escaldante e vermelha no crepúsculo. Não guardei nenhuma fotografia do momento, nem me recordo se cheguei a tirar alguma, mas quis crer sempre que o Sol nunca se poria sobre a sua África e que teria por isso uma próxima oportunidade antes de o tempo que o levou se despenhar. Imaginar ainda hoje a voz de Mano a percorrer as planícies do Níger, rodopiando na copa das raras árvores, pausada, serena como o orvalho na noite do país Dogon, evaporando-se nos grãos de areia no romper de cada manhã, é algo que perdura no adolescente que deixei de ser quando apenas lia sobre si. A voz segura de Mano, comandando as caravas do Teneré, desviando-as do seu caminho para deixar uma pétala de rosa do deserto junto da árvore de Sabine, ajoelhar-se e verter uma lágrima, partindo em seguida enxaguando as faces macilentas com as costas da mão negra e áspera que liderou um povo na tragédia silenciosa da ausência de uma nação, é algo que fica. A lenda confunde-se com mil relatos e livros lidos. E vão 15 anos desde um breve encontro em Portalegre.
16 de fevereiro de 2009
Alguém tinha sido atropelado na estrada e o motorista nem sequer tinha parado. A pouco e pouco foi-se juntando uma multidão em torno do cadáver, de modo que sob a canícula do meio-dia a atmosfera rapidamente se tornou irrespirável, mesmo antes da chegada das moscas e dos cães, atraídos pelo odor do sangue espalhado pela berma da estrada. Procurei, por isso, refúgio entre as prateleiras de uma taberna próxima, onde as garrafas acumulavam o pó da estrada que serpenteava pelo deserto adentro, rumo a cidade das caravanas. Os rótulos confundiam-se com o poeira e no interior das garrafas tanto podia haver Southern Comfort como mijo de dromedário, pelo que não arrisquei. No canto da sala havia um mestiço que se ria segurando uma lata de cerveja quente e ao lado uma espingarda pronta a cuspir a sua lei.
Ignorei-o por pouco tempo:
- Um copo de aguardente para o branco - ouvi nas minhas costas.
Voltei-me e agradeci, mas apontei para a chaleira que fervia no fogão rudimentar.
- A nossa aguardente não te agrada? provocou.
Escolhi cautelosamente as palavras acenando com a cabeça lá para fora:
- Quem é o morto?
- Carne! respondeu com os olhos vermelhos de sangue. E nem sequer presta para comer
- Há testemunhas? - perguntei.
- Que importa isso? Não há justiça nesta terra, a não ser esta - disse, enquanto alongava os dois canos sobre o colo.
Fez-me sinal para que me sentasse ao seu lado.
- Estás longe do teu caminho, branco. Que procuras?
- A estrada para Tombuctu.
- Estás longe dela.
- Esta estrada não vai dar a Tombuctu?
Por instantes pareceu dormitar:
- Todas as estradas vão para Tombuctu, as pessoas é que ficam pelo caminho. Há gerações que é assim, não sei o que vão lá fazer que não possam fazer aqui.
Acenou ao empregado, que prontamente lhe trouxe uma garrafa e dois copos.
- Bebe um copo para o caminho, branco, a viagem é longa e a estrada tem demasiada poeira para quem não está habituado ao pó das patas dos camelos. Conselho de amigo.
Sem uma pausa, bebeu o copo de um trago e ergueu-se como pôde, cambalenado até à porta, onde se esgueirou tropegamente entre as raras sombras da ainda curta tarde.
Vários dias depois, em Kenenkou, na continuação da Elyne Road, oitocentos quilómetros a Sul de Tombuctu, percebi o que me dissera o mestiço, naquele breve encontro, acerca da carne humana.
Road to forty.
7 de fevereiro de 2009
Ainda sobre o timbre da cor
Ainda regressando ao tema do timbre da cor: os instrumentos de corda maxime o violino e um bom piano serão porventura os que melhor expressam a ideia subjacente ao timbre da cor, ou se preferirmos, à tonalidade do som da nota. De resto, poucos compositores conseguiram expressar tão bem a ideia do timbre da cor quanto Vivaldi. Mas será efectivamente assim? E se é, porque o é? Igor Stravinsky referiu à saciedade que Antonio Vivaldi não escreveu quinhentos concertos, mas sim quinhentas vezes o mesmo concerto. Terá o compositor russo algum tipo de razão? Seja como for, a expressão ganhou força e Antonio Vivaldi caiu em desgraça no dealbar do Séc. XX, e só recentemente foi reabilitado nos círculos mais eruditos. Mas Vivaldi foi de facto um génio? Serão os seus concertos uma monótona repetição, ou uma fantástica variação do modo, uma ténue variação do tom, do timbre que faz a diferença? Será tal variação suficiente para permitir a catalogação da peça como algo novo?
Como qualquer peça, o leque de interpretações permitidas é que muitas vezes define a respectiva riqueza da obra. E no campo da interpretação, Vivaldi é riquíssimo na amplitude de interpretações, de variações, de timbres, que a sua composição permite. E porque será assim?
Provavelmente não haverá apenas uma resposta, mas Vivaldi teve a sorte de viver no período mágico do apogeu dos Stradivarius. e tais instrumentos foram determinantes para a sua obra. Há já algum tempo que me debruço sobre esta matéria, pelo enigma que representa. Há cerca de três anos li um artigo escrito por Joseph Nagyvary, um hungaro, especialista em bioquímica, radicado nos Estados Unidos, no qual relatava que através da análise das cinzas de lascas de verniz de alguns dos melhores Stradivarius e tambéms dos Guarneris, chegou à conclusão que os mestre lutiers da época dourada dos violinos teriam trabalhado em estreita colaboração com os fabricantes de verniz locais de Veneza ou Cremona, por forma a elaborararem um verniz resistente aos insectos da madeira, uma praga comum na época. A análise da cinza do verniz permitiu isolar uma percentagem elevada de boro, que todavia não é suficiente para explicar tudo o que diga respeito à superior qualidade acústica dos violinos Stradivarius, pelo que o mistério permanece.
Após quase trinta anos de pesquisas, Nagyvary conseguiu produzir um violino capaz de ombrear com os mais fracos Stradivarius. Todavia, a primeira série de instrumentos de Stradivari mantém-se como a referência, o padrão (da cor) pelo qual afinam os demais violinos. Porque, tratando-se de um Stradivarius, dificilmente será igualado, pela extraordinária concorrência de factores que pode ter contribuído para o impressionante resultado final.
A obra de Vivaldi está irremediavelmente aliada à extraordinária qualidade dos Stradivarius, que, sem dúvida, beneficiaram, por sua vez, das teses de Giuseppe Tartini, a que já se fez aqui referência. Na tese principal de Tartini brilha a teoria do timbre médio (terzo suono), que sumariamente explica que na vibração sonora de um corpo existe uma diferença entre a tonalidade emitida pela vibração e aquilo que o nosso ouvido de facto percepciona. O que permite um leque enorme de afinações para os diversos instrumentos musicais, mas em particular para os instrumentos de corda. Sabendo isto, o executante de uma partitura poderá adaptar a afinação do instrumento ao ouvido da audiência, ou às condições acústicas do ambiente em que a peça é executada. No lado da composição, a música poderá incluir vibrações/variações de tonalidade discretas em que as notas sobem ou descem décimas de tom dentro de um mesmo tempo de compasso, enriquecendo extraordinariamente a música, se houver um executante com uma sensibilidade fora do comum para a realizar. Por comparação, dir-se-á o mesmo de uma pintura monocromática, não necessariamente minimalista por isso, mas na qual ou da qual se pode extrair uma riqueza que uma mistura obstinada de cores não consegue traduzir.
Voltando ao tema, o principal obstáculo que Stravinsly porventura teve ao apreciar a obra de Vivaldi terá sido a diferença de estilos; enquanto Stravinsky é um precursor da realidade musical contemporânea, Vivaldi representa por sua vez a musicalidadade clássica, sendo porventura o primeiro compositor monocromático, estilo particularmente evidente n' As Quatro Estações. O seu portanto a seu dono.
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