A noite mantinha-se abrasadora. Javier Falcón vestiu-se e saiu. A manhã ainda vinha distante e no entanto já havia movimento nas margens do Guadalquivir, ao longo do Paseo de Juan Carlos I. Javier abandonou o rio e avançou pela cidade percorrendo a pé a calle Baños até perto da Clínica de Aranzazu e daí percorreu o barrio de San Lorenzo até chegar perto da calle Dueñas (foto acima), onde parou e se sentou em desalinho no degrau da entrada de uma pequena capela com a fachada em pedra e a escultura do santo alojada num nicho debruado por cima da porta de entrada . A alvorada principiava a romper o céu de Sevilha e um pouco por toda a cidade os badalos dos sinos das igrejas davam as sete. Javier tinha de interrogar Mendez Nuñez, um conhecido apresentador de televisão nesse dia e não gostava particularmente do personagem. Já se tinham encontrado em pelo menos duas ocasiões, eventos sociais para os quais era convidado por ser cunhado de Angél, casado com uma irmã sua e amigo de Nuñez. Angél era editor da secção de política da edição regional do ABC e conhecido por ser próximo das elites andaluzas do Partido Popular. Mas havia outro motivo para não gostar de Nuñez: depois do fim do seu relacionamento com Consuelo Jimenez, esta tinha mantido um caso com o apresentador. Durara pouco, é certo, mas o suficiente para Javier sentir uma antipatia natural por Nuñez que se somava à falta de empatia que os dois tinham um pelo outro sentida desde o primeiro encontro entre ambos. Agnes morava no mesmo prédio de apartamentos de Nuñez e Javier procurava saber se qualquer dos vizinhos dela ouvira ou sabia de algo que o pudesse auxiliar na investigação da morte da sua ex-mulher. O marido de Agnes, o respeitável juez Calederón fora imediatamente detido e era o principal suspeito do homicídio, mas algo na sua alegação de inocência - não fui eu Javier - lhe parecera sincero e merecedor pelo menos de dúvida, pelo que não se deixou levar pela solução mais fácil e pediu autorização superior para abrir uma investigação mais profunda, a qual lhe fora concedida na véspera.
E todavia Javier não suportava Calderón, fora por ele que Agnes tinha partido, fora com ele que ela o enganara, fora com ele que ela figurara durante semanas em fotografias como o par perfeito das revistas sociais da Andaluzia, torturando-o em cada escaparate e quiosque onde entrasse. Ironicamente, Agnes e Calderón tinham-se conhecido e tornado colunáveis graças à sua equipa de investigação, quando desmantelara parcialmente uma rede de pedofilia que funcionara durante anos na Andaluzia, entre os quais figurava o ex-marido de Consuelo, Raúl Jimenez. Agnes era então a jovem Procuradora e Calderón o juez de instrução do processo, ambos muito bem parecidos e fotogénicos, pelo que não apenas os holofotes da imprensa tradicional lhes foram apontados, como também os da imprensa cor-de-rosa, que viu neles e num proverbial caso mediático, potencial para aumento de tiragem. -Tu no tienes corazón, Javier Falcón - as palavras mais contundentes alguma vez proferidas por Agnes voltaram a ecoar na sua cabeça nesse instante. Assim como as últimas que lhe dirigira, nas horas que antecederam o seu brutal assassínio, quando o procurara em sua casa, sem conseguir verbalizar o que pretendia. Era isso que Javier se propusera agora descobrir, conduzindo a sua própria investigação à margem da oficial que, enquanto inspector-jefe, efectuava no seio na jefatura de polícia de Sevilha.
Tirou o telefone do bolso, procurou na lista de nomes e em seguida premiu o botão de chamada quando no visor de iluminou o número de Alícia Aguado, a sua psicóloga. Não estava longe do consultório de Alícia e sabia que esta preferia ver os seus pacientes cedo, para depois descansar durante o período de maior calor do dia. O telefone de Alícia estava desligado, pelo que entrou numa cafetería próxima para tomar um expresso no preciso momento em que no ecrã da televisão pendurada na parede do fundo da sala sintonizada no jornal da manhã do Canal Sur, aparecia o rosto sorridente de Mendez Nuñez.
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