30 de julho de 2008

As sombras alongavam-se já sobre os telhados e as açoteias de Sevilha quando Javier Falcón saiu do prédio de Alícia Aguado. A conversa com a psicóloga tinha corrido de forma lenta, detendo-se longamente em cada detalhe. Javier tinha tentado extirpar tudo de dentro de si, mas a experiente Alícia tinha-o segurado e levado a repensar e a reanalisar cada ideia que expressou. Estranha consulta aquela. Por vezes Alícia detinha-se em pormenores que lhe pareciam sem importância, noutras passava por cima de factos que a ele lhe pareciam essenciais. E tudo o que Alícia Aguado então fazia - o método Alícia Aguado, como gostava de dizer - era segurar-lhe o pulso entre o dedo médio e polegar, prestando atenção ao palpitar das veias. Por vezes Alícia recostava-se para trás na cadeira, como que surpreendida pela força da corrente sanguínea que corria sob a pele do paciente e as pontas dos seus dedos, mesmo quando para aquele o assunto não assumia qualquer tipo de importância. A psicóloga cega conduzia habilmente a conversa e quando Javier julgava que ia chegar a algum ponto de relevo, ela terminava abruptamente a conversa, levantava-se e, sem qualquer auxílio ou sequer sem se apoiar na parede do longo corredor, ia até à cozinha e regressava segurando nas duas mãos uma bandeja prateada contendo um bule de chá fumegante, cujo odor preenchia a ampla sala de atendimento arranjada propositadamente para o efeito, no terceiro andar recuado de um pequeno edifício de apartamentos perto da Giralda, que igualmente lhe servia de habitação. O compartimento dava para um amplo terraço revestido a tijoleira tradicional, parcialmente coberto por uma trepadeira que na nascia a partir da parede do lado nascente e uma bouganvilia no lado oposto, sendo que esta separava o espaço do apartamento vizinho, dotando-o de uma perfumada privacidade acolhedora. Em diversas ocasiões Javier pensou que aquele terraço era um oásis na frequente falsa pacatez de Sevilha, mas aquele não era um desses dias. Alícia fora agressiva com ele e Javier não se sentia melhor que quando entrara.
Saiu pela porta principal do edifício, atravessou a rua e parou num quiosque na Plaza Nueva. As manchetes dos vespertinos ainda falavam no atentado terrorista e no ABC chamava-se a atenção para uma entrevista feita à irmã de Agnes, na qual supostamente aquela traçaria o perfil da irmã. Javier não tocou no jornal, sabia que elas pouco se falavam, pelo que seria natural que o artigo fosse um chorrilho de inverdades com cuja leitura não valia a pena perder tempo. Nas páginas centrais do El País havia uma foto sua, tirada de costas no meio dos escombros do prédio onde se dera o atentado, envergando um fato cinzento e um capacete amarelo, a falar ao telefone. Deu-se conta nesse momento que praticamente só tinha fatos cinzentos no seu guarda-fatos. E camisas brancas. Provavelmente seria uma pessoa monótona, que nem se dava ao trabalho de mudar de corte de cabelo: "- Olá Juan, que há de novo com o Bétis? Nada? Portanto ainda não será este ano que serão campeones, certo? Por favor mantem como está e tira dois dedos no comprimento" - era sempre assim a sua ida ao barbeiro, no bairro de Triana, quando aproveitava para se colocar ao corrente das novidades desportivas de la liga.
Numa caixa à margem do texto, um pequeno artigo com o título "no tienes corazón, Javier Falcón" chamou a sua atenção. Alícia Aguado teria sentido um palpitar imenso no seu pulso se nesse instante estivesse ali. Leu o texto em sofreguidão, dobrando apressadamente em quatro o jornal aberto, mas verificou que a notícia não era nada de verdadeiramente especial; a caixa referia-se apenas ao facto de ter abordado um acompanhante no funeral de uma das crianças vítimas do atentado, a fim de lhe solicitar que o acompanhasse à jefatura para ser interrogado, sem qualquer pressa. Simples rotina, que conduzira, ao que julgava, com discrição, mas que a pessoa deve ter soprado para os jornais, sempre ávidos de notícias.
O telefone tocou nesse instante:
- Javier? - do outro lado ouvia-se a voz de Pablo Blanco, um dos inspectores do departamento de homicídios da jefatura - Só para te dizer que a Citroen Berlingo branca com os logotipos da empresa de administração de condomínios que estava estacionada na garagem do edifício de Agnes ainda não foi removida. Os tipos da empresa dizem que não lhes pertence e entretanto descobrimos que a fechadura da porta de trás está arrombada. Não sabemos se já estava, ou se foi recente.
- Gracias Pablo. Por favor vê o que podes saber sobre o proprietário e informa-me.
- Está em nome de um banco, aparentemente foi comprada em leasing e o banco deve demorar a dar-nos um nome. Pelo menos até amanhã. Ligo-te assim que souber algo, Javier. Hasta, Javier.
- Hasta luego, Pablo!
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Imagem acima: Sevilha, Reales Alcázares

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