30 de julho de 2008

Rokia Traorè: one that brings luck (kounandi)



Rokia Traorè (Mali)

Dounia, Tchamanché

As sombras alongavam-se já sobre os telhados e as açoteias de Sevilha quando Javier Falcón saiu do prédio de Alícia Aguado. A conversa com a psicóloga tinha corrido de forma lenta, detendo-se longamente em cada detalhe. Javier tinha tentado extirpar tudo de dentro de si, mas a experiente Alícia tinha-o segurado e levado a repensar e a reanalisar cada ideia que expressou. Estranha consulta aquela. Por vezes Alícia detinha-se em pormenores que lhe pareciam sem importância, noutras passava por cima de factos que a ele lhe pareciam essenciais. E tudo o que Alícia Aguado então fazia - o método Alícia Aguado, como gostava de dizer - era segurar-lhe o pulso entre o dedo médio e polegar, prestando atenção ao palpitar das veias. Por vezes Alícia recostava-se para trás na cadeira, como que surpreendida pela força da corrente sanguínea que corria sob a pele do paciente e as pontas dos seus dedos, mesmo quando para aquele o assunto não assumia qualquer tipo de importância. A psicóloga cega conduzia habilmente a conversa e quando Javier julgava que ia chegar a algum ponto de relevo, ela terminava abruptamente a conversa, levantava-se e, sem qualquer auxílio ou sequer sem se apoiar na parede do longo corredor, ia até à cozinha e regressava segurando nas duas mãos uma bandeja prateada contendo um bule de chá fumegante, cujo odor preenchia a ampla sala de atendimento arranjada propositadamente para o efeito, no terceiro andar recuado de um pequeno edifício de apartamentos perto da Giralda, que igualmente lhe servia de habitação. O compartimento dava para um amplo terraço revestido a tijoleira tradicional, parcialmente coberto por uma trepadeira que na nascia a partir da parede do lado nascente e uma bouganvilia no lado oposto, sendo que esta separava o espaço do apartamento vizinho, dotando-o de uma perfumada privacidade acolhedora. Em diversas ocasiões Javier pensou que aquele terraço era um oásis na frequente falsa pacatez de Sevilha, mas aquele não era um desses dias. Alícia fora agressiva com ele e Javier não se sentia melhor que quando entrara.
Saiu pela porta principal do edifício, atravessou a rua e parou num quiosque na Plaza Nueva. As manchetes dos vespertinos ainda falavam no atentado terrorista e no ABC chamava-se a atenção para uma entrevista feita à irmã de Agnes, na qual supostamente aquela traçaria o perfil da irmã. Javier não tocou no jornal, sabia que elas pouco se falavam, pelo que seria natural que o artigo fosse um chorrilho de inverdades com cuja leitura não valia a pena perder tempo. Nas páginas centrais do El País havia uma foto sua, tirada de costas no meio dos escombros do prédio onde se dera o atentado, envergando um fato cinzento e um capacete amarelo, a falar ao telefone. Deu-se conta nesse momento que praticamente só tinha fatos cinzentos no seu guarda-fatos. E camisas brancas. Provavelmente seria uma pessoa monótona, que nem se dava ao trabalho de mudar de corte de cabelo: "- Olá Juan, que há de novo com o Bétis? Nada? Portanto ainda não será este ano que serão campeones, certo? Por favor mantem como está e tira dois dedos no comprimento" - era sempre assim a sua ida ao barbeiro, no bairro de Triana, quando aproveitava para se colocar ao corrente das novidades desportivas de la liga.
Numa caixa à margem do texto, um pequeno artigo com o título "no tienes corazón, Javier Falcón" chamou a sua atenção. Alícia Aguado teria sentido um palpitar imenso no seu pulso se nesse instante estivesse ali. Leu o texto em sofreguidão, dobrando apressadamente em quatro o jornal aberto, mas verificou que a notícia não era nada de verdadeiramente especial; a caixa referia-se apenas ao facto de ter abordado um acompanhante no funeral de uma das crianças vítimas do atentado, a fim de lhe solicitar que o acompanhasse à jefatura para ser interrogado, sem qualquer pressa. Simples rotina, que conduzira, ao que julgava, com discrição, mas que a pessoa deve ter soprado para os jornais, sempre ávidos de notícias.
O telefone tocou nesse instante:
- Javier? - do outro lado ouvia-se a voz de Pablo Blanco, um dos inspectores do departamento de homicídios da jefatura - Só para te dizer que a Citroen Berlingo branca com os logotipos da empresa de administração de condomínios que estava estacionada na garagem do edifício de Agnes ainda não foi removida. Os tipos da empresa dizem que não lhes pertence e entretanto descobrimos que a fechadura da porta de trás está arrombada. Não sabemos se já estava, ou se foi recente.
- Gracias Pablo. Por favor vê o que podes saber sobre o proprietário e informa-me.
- Está em nome de um banco, aparentemente foi comprada em leasing e o banco deve demorar a dar-nos um nome. Pelo menos até amanhã. Ligo-te assim que souber algo, Javier. Hasta, Javier.
- Hasta luego, Pablo!
.
Imagem acima: Sevilha, Reales Alcázares

PangeaDay.org

28 de julho de 2008

-Clara? parto afinal para Arles.
- Então? que se passou Xavier?
- Lembras-te de Louis, o alfarrabista?
- Sim, que tem?
- Não conseguiu localizar o terceiro livro de Sevlak. Parece que o nosso Erik Sevlak publicou o terceiro livro em francês, apenas, e fê-lo com um editor diferente, de Arles. Todavia, aparentemente, o depósito de livros ardeu em circunstâncias misteriosas e quase todos os exemplares pereceram.
- Que maçada. E não se chegaram a vender nenhuns livros?
- Acho que sim, mas ninguém consegue garantir isso. Louis acha que deverei ser capaz de encontrar algum exemplar numa loja de Arles, ou talvez encontrar alguém que tivesse conhecido Sevlak, mas parece que ele esteve pouco tempo na cidade.
- E porque teria Sevlak escolhido Arles para publicar o seu terceiro romance? - perguntou Clara. Xavier notou o seu interesse crescente, mas a resposta era difícil:
- Não te sei dizer ao certo. Mas recordas-te do conteúdo do prefácio da segunda edição da tradução francesa?
- Sim... - respondeu Clara apreensiva.
- "...je regarde ce Rhône si serein par la nuit, sous ce ciel epargné d' étoiles, traversant une petite ville Provençale..."
- Não me digas que se refere a Arles?... - perguntou Clara - como sabes isso?
- Lembras-te do quadro que eu estava a observar no dia em que nos conhecemos? Quero dizer, no Musée d' Orsay?
- O de van Gogh? O que inspirou a música... como se chama a música?...
- A de Don McLean? - atalhou Xavier.
- Sim, sabes a que me refiro... como se chama?
- Starry night...
- Isso Xavier, bravo, a pintura chama-se Starry Night over the Rhône, certo?
- Exactamente, Clara. Parece que o nosso Sevlak também gostava de van Gogh e no texto do livro refere-se ao efeito que o quadro teve no seu personagem.
- Mas van Gogh pintou centenas de quadros, Xavier, porque é que Sevlak se interessaria em particular por aquele?
- É isso que pretendo descobrir em Arles, Clara. Acho que o nosso Sevlak é muito mais profundo que aquilo que a sua escrita deixa transparecer.
- Aproveita para ver o anfiteatro romano Xavier.
- Conheces Arles, Clara? Decididamente...
- Não Xavier, mas li sobre Arles. Nunca se sabe quando chega o dia em que o homem da nossa vida nos fala sobre Arles e temos de dizer alguma coisa sobre o assunto.
- Clara?
- Sim Xavier?!
- Queres vir a Arles?
- Por momentos temi que não tencionasses convidar-me Xavier Dias. Quando partimos?

Ruins

Beware of ruins: they have a treacherous charm;
Insidious echoes lurk among their stones;
That scummy pool was where the fountain soared;
The seated figure, whose white arm
Beckons you, is a mock-up of dry bones
And not, as you believe, your love restored.

The moonlight lends her grace, but have a care:
Behind her waits the fairy Melusine.
The sun those beams refract died years ago.
The moat has a romantic air
But it is choked with nettles and obscene
And phallic fungi rot there as they grow.

Beware of ruins; the heart is apt to make
Monstrous assumptions on the unburied past;
Though cleverly restored, the Tudor tower
Is spurious, the facade a fake
Whose new face is a death-mask of the last
Despairing effort before it all went sour.

There are ruins, too, of a less obvious kind;
I go back; cannot believe my eyes; the place
Is just as I recall: the fire is lit,
The table laid, bed warmed; I find
My former world intact, but not, alas,
The man I was when I was part of it.

A. Hope

24 de julho de 2008

A noite mantinha-se abrasadora. Javier Falcón vestiu-se e saiu. A manhã ainda vinha distante e no entanto já havia movimento nas margens do Guadalquivir, ao longo do Paseo de Juan Carlos I. Javier abandonou o rio e avançou pela cidade percorrendo a pé a calle Baños até perto da Clínica de Aranzazu e daí percorreu o barrio de San Lorenzo até chegar perto da calle Dueñas (foto acima), onde parou e se sentou em desalinho no degrau da entrada de uma pequena capela com a fachada em pedra e a escultura do santo alojada num nicho debruado por cima da porta de entrada . A alvorada principiava a romper o céu de Sevilha e um pouco por toda a cidade os badalos dos sinos das igrejas davam as sete. Javier tinha de interrogar Mendez Nuñez, um conhecido apresentador de televisão nesse dia e não gostava particularmente do personagem. Já se tinham encontrado em pelo menos duas ocasiões, eventos sociais para os quais era convidado por ser cunhado de Angél, casado com uma irmã sua e amigo de Nuñez. Angél era editor da secção de política da edição regional do ABC e conhecido por ser próximo das elites andaluzas do Partido Popular. Mas havia outro motivo para não gostar de Nuñez: depois do fim do seu relacionamento com Consuelo Jimenez, esta tinha mantido um caso com o apresentador. Durara pouco, é certo, mas o suficiente para Javier sentir uma antipatia natural por Nuñez que se somava à falta de empatia que os dois tinham um pelo outro sentida desde o primeiro encontro entre ambos. Agnes morava no mesmo prédio de apartamentos de Nuñez e Javier procurava saber se qualquer dos vizinhos dela ouvira ou sabia de algo que o pudesse auxiliar na investigação da morte da sua ex-mulher. O marido de Agnes, o respeitável juez Calederón fora imediatamente detido e era o principal suspeito do homicídio, mas algo na sua alegação de inocência - não fui eu Javier - lhe parecera sincero e merecedor pelo menos de dúvida, pelo que não se deixou levar pela solução mais fácil e pediu autorização superior para abrir uma investigação mais profunda, a qual lhe fora concedida na véspera.
E todavia Javier não suportava Calderón, fora por ele que Agnes tinha partido, fora com ele que ela o enganara, fora com ele que ela figurara durante semanas em fotografias como o par perfeito das revistas sociais da Andaluzia, torturando-o em cada escaparate e quiosque onde entrasse. Ironicamente, Agnes e Calderón tinham-se conhecido e tornado colunáveis graças à sua equipa de investigação, quando desmantelara parcialmente uma rede de pedofilia que funcionara durante anos na Andaluzia, entre os quais figurava o ex-marido de Consuelo, Raúl Jimenez. Agnes era então a jovem Procuradora e Calderón o juez de instrução do processo, ambos muito bem parecidos e fotogénicos, pelo que não apenas os holofotes da imprensa tradicional lhes foram apontados, como também os da imprensa cor-de-rosa, que viu neles e num proverbial caso mediático, potencial para aumento de tiragem. -Tu no tienes corazón, Javier Falcón - as palavras mais contundentes alguma vez proferidas por Agnes voltaram a ecoar na sua cabeça nesse instante. Assim como as últimas que lhe dirigira, nas horas que antecederam o seu brutal assassínio, quando o procurara em sua casa, sem conseguir verbalizar o que pretendia. Era isso que Javier se propusera agora descobrir, conduzindo a sua própria investigação à margem da oficial que, enquanto inspector-jefe, efectuava no seio na jefatura de polícia de Sevilha.

Tirou o telefone do bolso, procurou na lista de nomes e em seguida premiu o botão de chamada quando no visor de iluminou o número de Alícia Aguado, a sua psicóloga. Não estava longe do consultório de Alícia e sabia que esta preferia ver os seus pacientes cedo, para depois descansar durante o período de maior calor do dia. O telefone de Alícia estava desligado, pelo que entrou numa cafetería próxima para tomar um expresso no preciso momento em que no ecrã da televisão pendurada na parede do fundo da sala sintonizada no jornal da manhã do Canal Sur, aparecia o rosto sorridente de Mendez Nuñez.

22 de julho de 2008

O não-Nobel


Em 1982 Jorge Luís Borges recebeu a notícia que o Nobel havia sido atribuído a um escritor sul-americano. Mas não a si. E Borges era o maior escritor sul-americano vivo. A sua reacção foi: "- Extraordinário. Magnífico. Foi essa a melhor escolha que a Academia Sueca podia fazer."

O premiado fora Gabriel García Marquez. E sobre o assunto Borges disse: "-Eu li Cem Anos de Solidão e basta este livro. É um livro difícil de definir. A mim, pessoalmente, a primeira parte parece-me superior à última. Não há dúvida de qualquer forma que se trata de um livro original, longe de qualquer escola, de todo o estilo e sem antepassados".

Mais tarde, numa outra entrevista perguntam-lhe se não sentia uma certa mágoa por nunca ter sido galardoado com um Nobel. Borges terá encolhido os ombros e respondido: "– A inteligência dos europeus demonstra-se pelo facto de nunca me terem dado o Prémio Nobel... E sabe porquê?!... Não existe um escritor mais aborrecido do que eu. É um grande equívoco que as pessoas me leiam, porque nem eu próprio gosto do que escrevo e por isso nem sequer me leio... Nunca me li. Tudo o que escrevi, tudo, não passa de rascunhos... rascunhos!... papéis soltos... Não compreendo as pessoas. E por exemplo nesta biblioteca que vê aí, não tenho livros meus... Para quê?"
Borges nasceu em Buenos Aires, em 1899, descendente de portugueses e faleceu em Genebra, em 1986, cego e rodeado de livros. Ali permanece sepultado por sua vontade expressa.
Acerca da sua obra escreveu uma vez: "Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso as minhas emoções directamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem nas minhas emoções."

21 de julho de 2008

Two dirty old guys

A escolha não era óbvia, mas no final não havia outra alternativa: perder Lou Reed no Campo Pequeno ou dar uma saltada ao Passeio de Algés e - possivelmente - despedirmo-nos de Leonard Cohen? Se tivesse mesmo de optar? Duro, duro... possivelmente Lou Reed teria ganho, mas felizmente, por uma vez, valeu a pena morar na província e ir aos dois.
.
Cohen representou ao longo de todo o concerto um papel que não é o seu, mas ficou-lhe bem ser cavalheiro aos 73 anos. Dir-se-ia que o foi toda a vida. O Judeu esteve impecável em 5 ou 6 músicas do alinhamento e o arranjo de Hallellujah foi brilhante, com a estrela de David estilizada em dois corações entrelaçados (um romântico, este Cohen?) com neon ao melhor jeito de um casino de Las Vegas. Mas que casino, é de dizer. Valeu a pena no entanto sentir todo o cinismo de I' m Your Man (quase que se conseguia ouvir Cohen a rir baixinho por baixo do chapéu preto), emoldurado por 4 ou 5 apresentações dos músicos, onde se destacaram talvez Rafael Gayol, o baterista, o pianista Neil Larsen e a vocalista Sharon Robinson, tudo devidamente caricaturizado pela excessiva repetição de uma vénia agradecendo aos cerca de dez mil espectadores com um delicadíssimo - Thank you for your kind attention. Até houve direito a intervalo de quase 15 minutos, como nos melhores cabarets, apenas interrompido quando o público o chamou de regresso ao palco. E o velho Cohen voltou, a trote (desta vez sem o cavalo branco de outras actuações), mas evitou tocar no tema do amor profundo - esquivou-se a tocar o que quer que fosse de Songs of Love and Hate - mas mergulhou no sex, drugs & rock and roll (e mais fundo até) do seu repertório, sem contemplações, mas com o mesmo ar com que agradecia ao público a sua presença. Um facínora, no seu melhor estilo, este Cohen. E o público gostou e saiu a tocar sinos; there's a crack in everything, that's how the light gets in.
.
Já Lou Reed: sabia-se ao que vinha, nada de passar a pente fino um repertório, que vamos antes falar de Berlin, de um sucesso ao retardador, uma bomba-relógio que demorou mais de 30 anos a explodir. E que explosão, que arranjos perfeitos, as músicas perfeitamente mascaradas. Qui plus est, ouvir Reed com uma filha de oito anos ao lado, é uma experiência inolvidável. Berlin, o album mais depressivo de Reed, amadureceu e tornou-se uma referência com o passar do tempo. Nada de cinismos aqui, portanto. Reed é claro, mesmo no desprezo que demonstra por vezes pelo público, com quem comunica através de um ou outro gesto, ou de uma palavra. Mas não desta vez, Lou Reed estava bem disposto, não cancelou nenhum dos concertos em Portugal, em Loulé foi pontual e terminou com um inolvidável Satellite of Love, completamente rearranjado e em dueto com Fernando Saunders, devidamente acompanhado ao longo da actuação por membros do New London's Children Choir e da London Metropolitan Orchestra.
.
E deixou-nos um segredo, em jeito de Action Against Hunger que dá pelo nome de Power of Heart. How far would you go for love? - é a pergunta do teaser.

Lou Reed, Satellite of Love

18 de julho de 2008

Ventosul

Cinjo o tronco de uma árvore
como cingi a tua cintura
contornando-o com o braço
e acariciando-o com bravura
Uma mão
traçando um percurso de nómada
em extinção
expressando ao longo da nervura
O mais genuíno e luminoso
desejo de sedentarização.
Estás ausente deste gesto
finges não perceber
o conteúdo silencioso
talvez orgulhoso
das palavras que não profiro
porque [sei] intuis o meu silêncio
e compreendes as cores garridas
do florido que nele subsiste.

Safe decisions in my bed
é o verso da estrofe resiliente
persistente
nesta manhã
de ventosul exultante
e música minimalista.
Irreconhecível assim,
a luminosidade transparente
com que sinto alegria nascente
nas lágrimas que verteste
vazando nas montanhas,
fendendo abismos e vales, a água
que encheu lagos, rios
e a fresta de uma fonte.

Soltem os prisioneiros!

14 de julho de 2008

Lisbon comes alive


Interessante, o artigo do New York Times sobre Lisboa, catalogando-a como a mais recente capital cultural da Europa. Num artigo cheio de links, existem notas de sugestões e recomendações curiosas sobre a capital que lá fora está na moda. Vale, pois, a pena passar pela página on-line do NYT dedicada ao assunto. E já agora, porque não, igualmente, estender a visita à página genérica sobre Portugal.

11 de julho de 2008

Prefácio de "Sul"


Eagles may soar

but weasels don't get sucked into jet engines

(John Benfield)


Anos volvidos depois da minha fuga, eis-me em Berlim Leste, pisando os passos de Bertolt Brecht. Ontem estive no 3 Groschen Bar, mas já nada parece ser o que era. O próprio Brecht é agora uma sombra do que foi. Há dias bebi uma cerveja com ele - a última - e a seguir passeámos no parque. Não se confessa arrependido de ter regressado a Berlim, mas é um homem desencantado com a vida. Não falo de uma decadência própria de quem tem toda a esperança de uma boa vida e de quem acha que legitimamente pode esperar ou fazer tudo, até perder tempo; falo antes do desencanto mortal que faz com que quem contrai semelhante vírus esteja morto muito antes do coração parar de pulsar. Foi este Brecht que recentemente conheci, apesar da sagacidade que emana do olhar que derrama por trás das armações que suportam as suas lentes grossas. É ainda uma pessoa impressionante, mas está morto.

Num apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para atravessar para ocidente. Procuro reunir as condições indispensáveis para eu próprio atravessar a fronteira e me juntar à alma que se separou de mim há anos, quando, ainda jovem, parti de Bratislava. Estou há demasiado tempo longe da alma que me viu crescer. Dela e de Hannah, a minha fiel companheira, a quem dedicarei este livro. Porque me compreende, aceitou e aceita como sou, este ser incompleto, imperfeito e difícil em quem me tornei. Ela me mostrou o caminho do amor e deu-me a maior prova de carinho possível.

O meu primeiro livro nunca se vendeu. Não passo de um escritor medíocre, ou se calhar nem sequer sou um escritor. Intencionalmente, escrevi sempre em alemão, mas talvez não saiba alemão suficiente para a minha escrita ser atractiva. Ou talvez apenas não escreva o que as pessoas querem ler. Ler e compreender Nietzsche não basta. Admito o meu erro - valha-me isso - : reconheço o meu pessimismo. Nos tempos actuais as pessoas querem ouvir falar de coisas alegres, querem finais felizes. E comédias ligeiras. Brecht falou-me disso num dos raros momentos em que o ouvi rir, enquanto ajeitava a gola do casaco para se proteger do orvalho do cair da tarde. E tal não é nada de diferente do que desejo. A minha alma disante é feliz. Vagueia livre, pelas planícies sul-americanas. Nunca pensei dizer isto, mas sou feliz. Mais do que alguma vez fui.

Neste apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para passar para ocidente. Sei que a Stasi me ignora, apesar do que por vezes escrevo, mas vivo apavorado com receio de ser encarcerado. Sei que sou apenas um pobre escritor que ninguém lê. E este livro - agora perto de estar terminado - é o destino que o meu espírito procura incansavelmente. Preciso, pois de o alcançar. O Sul é a minha liberdade para lá de Mühlenstraße, donde o título que escolhi antes de começar a escrevê-lo.

Berlim Ocidental, 20 de Agosto de 1961

PS: Brecht morreu em 1956. Este texto é dessa altura e mede o tempo que demorei a conseguir passar para o Ocidente e a encontrar um editor. Curiosamente, só o consegui fazer há dias, depois de terem construído um muro que me criou uma insuportável sensação de claustrofobia e me fez tomar a decisão de tentar a minha sorte. Não consegui assistir ao funeral de Brecht. Seria fácil mudar o que escrevi sobre si, mas hei por bem não o fazer. Espero poder visitar a sua campa um destes dias e depositar-lhe lírios.

Para Hannah, com todo o meu amor, onde quer que esteja.




Portishead, Roads
banda sonora de Requiem for a Dream

Prefácio de "Noites do Estreito"

[...] à noite, iluminado pela luz difusa de um candeeiro de leitura, Xavier desfolhou páginas dispersas do primeiro dos romances de Eric Sevlak. Por fim deteve-se no minúsculo prefácio, onde se lia:

Por sobre o Eu que eu sou
nunca houve uma ponte edificada
apenas torres de marfim
demasiado altas.

Passeio-me nesta cidade cinzenta e chuvosa cuja atmosfera já de si irrespirável se agravou com a revolução do início do ano. A minha infância, adormecida nas margens do Danúbio, voou para ocidente, para além do lado austríaco na margem próxima que apenas conheço pelos relatos entusiasmados do avô. O meu corpo está preso deste lado de uma cortina de neblina que paira sobre o rio como uma muralha férrea, que ora se dissipa, ora permanece a pairar, o que sucede mesmo quando a Primavera cai sobre Bratislava. Ao cimo da colina por vezes a simples visão do Castelo esmaga-me, mesmo que muitos o considerem o orgulho da cidade. As sinfonias de Mozart e Haydn que enchem as ruas, que tantas vezes eu próprio dedilhei e tanto me alegravam, soam-me por vezes como marchas fúnebres. Deixei este ano de tocar violino como a minha mãe tanto queria. Apenas o chilrear dos pássaros me alegra, quando a relva cresce nos curtos momentos em que o Verão passa por estas paragens. O meu espírito voa. E só isso me mantém são. Há um ano, um viajante deu-me um livro seu de relatos de uma viagem pelo continente sul-americano. Tinha profusas ilustrações feitas à mão por si, que me libertaram o espírito muito para além do que imaginara possível. Por agora é-me impossível sair de Bratislava, por isso parto apenas em espírito, para uma longa viagem de libertação. Para um país imaginário. E por agora apenas nas páginas deste livro. Bratislava recupera já dos escombros da guerra, mas o destroço que eu sou não me permite ficar. Por isso parto para longe, desde esta primeira página, enquanto posso.

Bratislava, 1948



L. van Beethoven, La Appassionata
(ou sonata para um homem bom)
excerto de Das Leber der Anderen (A Vida dos Outros)

9 de julho de 2008

Pablo Picasso, Boulevard Montmartre de Nuit
.
Enquanto esperava, Louis trouxe-lhe um embrulho, que depositou numa mesa baixa de carvalho puído pelo tempo e pelo uso. Podia sentir-se a textura das palavras e dos estilos literários que lhe passaram pelo tempo aveludado.
- Cá estão Xavier, não foi fácil, mas cá estão! - exibiu o alfarrabista com um sorriso generoso.
- Nem sei como te agradecer, Louis... - retribuiu Xavier.
- Tomei a liberdade de lhes passar uma vista de olhos e não são grande peça literária. Quer dizer, prendem a atenção, mas não são nada de magnífico. Em todo o caso, o segundo é melhor que o primeiro.
- E o terceiro? - perguntou Xavier ansioso.
- Vou precisar de mais tempo, meu caro. Há um depósitos de livros perto de Montigny que fica com as sobras das editoras falidas. O responsável é um velho conhecido meu e ele está a pesquisar os títulos, mas aquilo é um mundo e portanto demora o seu tempo, dado que os exemplares mais antigos não estão no registo informático.
Cuidadosamente, Xavier puxou pelo cordel que encerrava o embrulho e abriu-o cuidadosamente. Dentro, iluminados pela luz baixa, dois volumes em capa discreta, o primeiro em tons de violeta e o segundo em tons esverdeados. Em ambos, as páginas amarelecidades e os tipos empregues no texto denunciavam a idade. O primeiro tinha por título "Noites do Estreito" e o segundo "Sul". Ambos de Eric Sevlak. Quando encontrara Clara, nessa tarde, ela lia o primeiro, enquanto Xavier tinha o segundo, mas tratavam-se de edições mais recentes. Louis acabara de lhe obter as primeiras edições de cada um deles, com os respectivos prefácios redigidos pelo próprio escritor.
[...]
Xavier descia devagar as escadarias de Montmartre com os livros debaixo do braço, quando novamente o telefone soou:
-Xavier? Sou eu, Clara, o avião parte daqui a instantes, apenas queria agradecer a tarde.
- Por favor, não agradeça, Clara, o prazer foi meu, gostei imenso.
- Adeus Xavier, espero que tenha tido sorte em Montmartre.
- Em parte sim. Depois conto-lhe o que descobri sobre Sevlak. Tenha um óptimo vôo.
- Até breve Xavier.
- Até breve Clara.
[...]
Cerca da meia-noite Javier levantou-se e foi à varanda. O ar de Sevilha era agora respirável e as cortinas do quarto esvoaçavam levemente. Acendeu um cigarro, sentou-se numa cadeira por baixo do tecto abobadado e ficou no escuro a ouvir os ecos da Judería que lhe chegavam por cima dos muros exteriores do jardim.
[...]
A essa mesa hora Consuelo Jímenez fechava a porta do seu gabinete, nas traseiras do edifício onde funcionava o mais recente dos Asador Jímenez, uma pequena cadeia de restaurantes que aprendera a gerir de forma superior. Consuelo tinha-se tornado numa empresária de sucesso depois da morte de Raúl, seu marido. Era igualmente uma mãe extremosa de três crianças pequenas, mas não era uma mulher feliz apesar de ser essa a imagem que dela emanava.

8 de julho de 2008

Montreux Jazz Festival

Nina Simone, "Feelings", Montreux Jazz Festival 1976

Palavras, as mesmas

caindo como um reposteiro velho

(des)feitas de pó

eternamente em suspensão

que olhamos sem reconhecer.

Nesta genial interpretação de Feelings (um original de Albert Morris), Nina Simone supera-se. Num determinado trecho da composição, a intensidade vocal é imensa e sente-se a dor de quem canta, que se estende a quem foi levado a escrever uma letra assim, como a própria Nina sublinha no início da perfomance. Essa intensidade é em seguida esmagada por um solo de piano que apenas acentua o que antecede, previamente acompanhado por uma subtil, mas oportuna percussão. No final, a voz acaba por prevalecer, mas sempre coberta pelo piano, sentindo-se a violência dos sentimentos num momento de quase-grito-em-surdina, calado mesmo ao rasgar de um coração trespassado que nos atravessa enquanto ouvintes e espectadores. A ironia está em que, roubando o pesadelo retratado por Morris no original, Nina transforma-o numa interpretação de sonho.