Rokia Traorè (Mali)
Dounia, Tchamanché
Lou Reed, Satellite of Love
Eagles may soar
but weasels don't get sucked into jet engines
(John Benfield)
Anos volvidos depois da minha fuga, eis-me em Berlim Leste, pisando os passos de Bertolt Brecht. Ontem estive no 3 Groschen Bar, mas já nada parece ser o que era. O próprio Brecht é agora uma sombra do que foi. Há dias bebi uma cerveja com ele - a última - e a seguir passeámos no parque. Não se confessa arrependido de ter regressado a Berlim, mas é um homem desencantado com a vida. Não falo de uma decadência própria de quem tem toda a esperança de uma boa vida e de quem acha que legitimamente pode esperar ou fazer tudo, até perder tempo; falo antes do desencanto mortal que faz com que quem contrai semelhante vírus esteja morto muito antes do coração parar de pulsar. Foi este Brecht que recentemente conheci, apesar da sagacidade que emana do olhar que derrama por trás das armações que suportam as suas lentes grossas. É ainda uma pessoa impressionante, mas está morto.
Num apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para atravessar para ocidente. Procuro reunir as condições indispensáveis para eu próprio atravessar a fronteira e me juntar à alma que se separou de mim há anos, quando, ainda jovem, parti de Bratislava. Estou há demasiado tempo longe da alma que me viu crescer. Dela e de Hannah, a minha fiel companheira, a quem dedicarei este livro. Porque me compreende, aceitou e aceita como sou, este ser incompleto, imperfeito e difícil em quem me tornei. Ela me mostrou o caminho do amor e deu-me a maior prova de carinho possível.
O meu primeiro livro nunca se vendeu. Não passo de um escritor medíocre, ou se calhar nem sequer sou um escritor. Intencionalmente, escrevi sempre em alemão, mas talvez não saiba alemão suficiente para a minha escrita ser atractiva. Ou talvez apenas não escreva o que as pessoas querem ler. Ler e compreender Nietzsche não basta. Admito o meu erro - valha-me isso - : reconheço o meu pessimismo. Nos tempos actuais as pessoas querem ouvir falar de coisas alegres, querem finais felizes. E comédias ligeiras. Brecht falou-me disso num dos raros momentos em que o ouvi rir, enquanto ajeitava a gola do casaco para se proteger do orvalho do cair da tarde. E tal não é nada de diferente do que desejo. A minha alma disante é feliz. Vagueia livre, pelas planícies sul-americanas. Nunca pensei dizer isto, mas sou feliz. Mais do que alguma vez fui.
Neste apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para passar para ocidente. Sei que a Stasi me ignora, apesar do que por vezes escrevo, mas vivo apavorado com receio de ser encarcerado. Sei que sou apenas um pobre escritor que ninguém lê. E este livro - agora perto de estar terminado - é o destino que o meu espírito procura incansavelmente. Preciso, pois de o alcançar. O Sul é a minha liberdade para lá de Mühlenstraße, donde o título que escolhi antes de começar a escrevê-lo.
Berlim Ocidental, 20 de Agosto de 1961
PS: Brecht morreu em 1956. Este texto é dessa altura e mede o tempo que demorei a conseguir passar para o Ocidente e a encontrar um editor. Curiosamente, só o consegui fazer há dias, depois de terem construído um muro que me criou uma insuportável sensação de claustrofobia e me fez tomar a decisão de tentar a minha sorte. Não consegui assistir ao funeral de Brecht. Seria fácil mudar o que escrevi sobre si, mas hei por bem não o fazer. Espero poder visitar a sua campa um destes dias e depositar-lhe lírios.
Para Hannah, com todo o meu amor, onde quer que esteja.
Passeio-me nesta cidade cinzenta e chuvosa cuja atmosfera já de si irrespirável se agravou com a revolução do início do ano. A minha infância, adormecida nas margens do Danúbio, voou para ocidente, para além do lado austríaco na margem próxima que apenas conheço pelos relatos entusiasmados do avô. O meu corpo está preso deste lado de uma cortina de neblina que paira sobre o rio como uma muralha férrea, que ora se dissipa, ora permanece a pairar, o que sucede mesmo quando a Primavera cai sobre Bratislava. Ao cimo da colina por vezes a simples visão do Castelo esmaga-me, mesmo que muitos o considerem o orgulho da cidade. As sinfonias de Mozart e Haydn que enchem as ruas, que tantas vezes eu próprio dedilhei e tanto me alegravam, soam-me por vezes como marchas fúnebres. Deixei este ano de tocar violino como a minha mãe tanto queria. Apenas o chilrear dos pássaros me alegra, quando a relva cresce nos curtos momentos em que o Verão passa por estas paragens. O meu espírito voa. E só isso me mantém são. Há um ano, um viajante deu-me um livro seu de relatos de uma viagem pelo continente sul-americano. Tinha profusas ilustrações feitas à mão por si, que me libertaram o espírito muito para além do que imaginara possível. Por agora é-me impossível sair de Bratislava, por isso parto apenas em espírito, para uma longa viagem de libertação. Para um país imaginário. E por agora apenas nas páginas deste livro. Bratislava recupera já dos escombros da guerra, mas o destroço que eu sou não me permite ficar. Por isso parto para longe, desde esta primeira página, enquanto posso.
Nina Simone, "Feelings", Montreux Jazz Festival 1976
Palavras, as mesmas
caindo como um reposteiro velho
(des)feitas de pó
eternamente em suspensão
que olhamos sem reconhecer.
Nesta genial interpretação de Feelings (um original de Albert Morris), Nina Simone supera-se. Num determinado trecho da composição, a intensidade vocal é imensa e sente-se a dor de quem canta, que se estende a quem foi levado a escrever uma letra assim, como a própria Nina sublinha no início da perfomance. Essa intensidade é em seguida esmagada por um solo de piano que apenas acentua o que antecede, previamente acompanhado por uma subtil, mas oportuna percussão. No final, a voz acaba por prevalecer, mas sempre coberta pelo piano, sentindo-se a violência dos sentimentos num momento de quase-grito-em-surdina, calado mesmo ao rasgar de um coração trespassado que nos atravessa enquanto ouvintes e espectadores. A ironia está em que, roubando o pesadelo retratado por Morris no original, Nina transforma-o numa interpretação de sonho.