Rokia Traorè (Mali)
Dounia, Tchamanché
As sombras alongavam-se já sobre os telhados e as açoteias de Sevilha quando Javier Falcón saiu do prédio de Alícia Aguado. A conversa com a psicóloga tinha corrido de forma lenta, detendo-se longamente em cada detalhe. Javier tinha tentado extirpar tudo de dentro de si, mas a experiente Alícia tinha-o segurado e levado a repensar e a reanalisar cada ideia que expressou. Estranha consulta aquela. Por vezes Alícia detinha-se em pormenores que lhe pareciam sem importância, noutras passava por cima de factos que a ele lhe pareciam essenciais. E tudo o que Alícia Aguado então fazia - o método Alícia Aguado, como gostava de dizer - era segurar-lhe o pulso entre o dedo médio e polegar, prestando atenção ao palpitar das veias. Por vezes Alícia recostava-se para trás na cadeira, como que surpreendida pela força da corrente sanguínea que corria sob a pele do paciente e as pontas dos seus dedos, mesmo quando para aquele o assunto não assumia qualquer tipo de importância. A psicóloga cega conduzia habilmente a conversa e quando Javier julgava que ia chegar a algum ponto de relevo, ela terminava abruptamente a conversa, levantava-se e, sem qualquer auxílio ou sequer sem se apoiar na parede do longo corredor, ia até à cozinha e regressava segurando nas duas mãos uma bandeja prateada contendo um bule de chá fumegante, cujo odor preenchia a ampla sala de atendimento arranjada propositadamente para o efeito, no terceiro andar recuado de um pequeno edifício de apartamentos perto da Giralda, que igualmente lhe servia de habitação. O compartimento dava para um amplo terraço revestido a tijoleira tradicional, parcialmente coberto por uma trepadeira que na nascia a partir da parede do lado nascente e uma bouganvilia no lado oposto, sendo que esta separava o espaço do apartamento vizinho, dotando-o de uma perfumada privacidade acolhedora. Em diversas ocasiões Javier pensou que aquele terraço era um oásis na frequente falsa pacatez de Sevilha, mas aquele não era um desses dias. Alícia fora agressiva com ele e Javier não se sentia melhor que quando entrara.
A noite mantinha-se abrasadora. Javier Falcón vestiu-se e saiu. A manhã ainda vinha distante e no entanto já havia movimento nas margens do Guadalquivir, ao longo do Paseo de Juan Carlos I. Javier abandonou o rio e avançou pela cidade percorrendo a pé a calle Baños até perto da Clínica de Aranzazu e daí percorreu o barrio de San Lorenzo até chegar perto da calle Dueñas (foto acima), onde parou e se sentou em desalinho no degrau da entrada de uma pequena capela com a fachada em pedra e a escultura do santo alojada num nicho debruado por cima da porta de entrada . A alvorada principiava a romper o céu de Sevilha e um pouco por toda a cidade os badalos dos sinos das igrejas davam as sete. Javier tinha de interrogar Mendez Nuñez, um conhecido apresentador de televisão nesse dia e não gostava particularmente do personagem. Já se tinham encontrado em pelo menos duas ocasiões, eventos sociais para os quais era convidado por ser cunhado de Angél, casado com uma irmã sua e amigo de Nuñez. Angél era editor da secção de política da edição regional do ABC e conhecido por ser próximo das elites andaluzas do Partido Popular. Mas havia outro motivo para não gostar de Nuñez: depois do fim do seu relacionamento com Consuelo Jimenez, esta tinha mantido um caso com o apresentador. Durara pouco, é certo, mas o suficiente para Javier sentir uma antipatia natural por Nuñez que se somava à falta de empatia que os dois tinham um pelo outro sentida desde o primeiro encontro entre ambos. Agnes morava no mesmo prédio de apartamentos de Nuñez e Javier procurava saber se qualquer dos vizinhos dela ouvira ou sabia de algo que o pudesse auxiliar na investigação da morte da sua ex-mulher. O marido de Agnes, o respeitável juez Calederón fora imediatamente detido e era o principal suspeito do homicídio, mas algo na sua alegação de inocência - não fui eu Javier - lhe parecera sincero e merecedor pelo menos de dúvida, pelo que não se deixou levar pela solução mais fácil e pediu autorização superior para abrir uma investigação mais profunda, a qual lhe fora concedida na véspera.
Lou Reed, Satellite of Love


Eagles may soar
but weasels don't get sucked into jet engines
(John Benfield)
Anos volvidos depois da minha fuga, eis-me em Berlim Leste, pisando os passos de Bertolt Brecht. Ontem estive no 3 Groschen Bar, mas já nada parece ser o que era. O próprio Brecht é agora uma sombra do que foi. Há dias bebi uma cerveja com ele - a última - e a seguir passeámos no parque. Não se confessa arrependido de ter regressado a Berlim, mas é um homem desencantado com a vida. Não falo de uma decadência própria de quem tem toda a esperança de uma boa vida e de quem acha que legitimamente pode esperar ou fazer tudo, até perder tempo; falo antes do desencanto mortal que faz com que quem contrai semelhante vírus esteja morto muito antes do coração parar de pulsar. Foi este Brecht que recentemente conheci, apesar da sagacidade que emana do olhar que derrama por trás das armações que suportam as suas lentes grossas. É ainda uma pessoa impressionante, mas está morto.
Num apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para atravessar para ocidente. Procuro reunir as condições indispensáveis para eu próprio atravessar a fronteira e me juntar à alma que se separou de mim há anos, quando, ainda jovem, parti de Bratislava. Estou há demasiado tempo longe da alma que me viu crescer. Dela e de Hannah, a minha fiel companheira, a quem dedicarei este livro. Porque me compreende, aceitou e aceita como sou, este ser incompleto, imperfeito e difícil em quem me tornei. Ela me mostrou o caminho do amor e deu-me a maior prova de carinho possível.
O meu primeiro livro nunca se vendeu. Não passo de um escritor medíocre, ou se calhar nem sequer sou um escritor. Intencionalmente, escrevi sempre em alemão, mas talvez não saiba alemão suficiente para a minha escrita ser atractiva. Ou talvez apenas não escreva o que as pessoas querem ler. Ler e compreender Nietzsche não basta. Admito o meu erro - valha-me isso - : reconheço o meu pessimismo. Nos tempos actuais as pessoas querem ouvir falar de coisas alegres, querem finais felizes. E comédias ligeiras. Brecht falou-me disso num dos raros momentos em que o ouvi rir, enquanto ajeitava a gola do casaco para se proteger do orvalho do cair da tarde. E tal não é nada de diferente do que desejo. A minha alma disante é feliz. Vagueia livre, pelas planícies sul-americanas. Nunca pensei dizer isto, mas sou feliz. Mais do que alguma vez fui.
Neste apartamento com vista para a Mühlenstraße, conto as tentativas semanais que os desesperados fazem para passar para ocidente. Sei que a Stasi me ignora, apesar do que por vezes escrevo, mas vivo apavorado com receio de ser encarcerado. Sei que sou apenas um pobre escritor que ninguém lê. E este livro - agora perto de estar terminado - é o destino que o meu espírito procura incansavelmente. Preciso, pois de o alcançar. O Sul é a minha liberdade para lá de Mühlenstraße, donde o título que escolhi antes de começar a escrevê-lo.
Berlim Ocidental, 20 de Agosto de 1961
PS: Brecht morreu em 1956. Este texto é dessa altura e mede o tempo que demorei a conseguir passar para o Ocidente e a encontrar um editor. Curiosamente, só o consegui fazer há dias, depois de terem construído um muro que me criou uma insuportável sensação de claustrofobia e me fez tomar a decisão de tentar a minha sorte. Não consegui assistir ao funeral de Brecht. Seria fácil mudar o que escrevi sobre si, mas hei por bem não o fazer. Espero poder visitar a sua campa um destes dias e depositar-lhe lírios.
Para Hannah, com todo o meu amor, onde quer que esteja.
Passeio-me nesta cidade cinzenta e chuvosa cuja atmosfera já de si irrespirável se agravou com a revolução do início do ano. A minha infância, adormecida nas margens do Danúbio, voou para ocidente, para além do lado austríaco na margem próxima que apenas conheço pelos relatos entusiasmados do avô. O meu corpo está preso deste lado de uma cortina de neblina que paira sobre o rio como uma muralha férrea, que ora se dissipa, ora permanece a pairar, o que sucede mesmo quando a Primavera cai sobre Bratislava. Ao cimo da colina por vezes a simples visão do Castelo esmaga-me, mesmo que muitos o considerem o orgulho da cidade. As sinfonias de Mozart e Haydn que enchem as ruas, que tantas vezes eu próprio dedilhei e tanto me alegravam, soam-me por vezes como marchas fúnebres. Deixei este ano de tocar violino como a minha mãe tanto queria. Apenas o chilrear dos pássaros me alegra, quando a relva cresce nos curtos momentos em que o Verão passa por estas paragens. O meu espírito voa. E só isso me mantém são. Há um ano, um viajante deu-me um livro seu de relatos de uma viagem pelo continente sul-americano. Tinha profusas ilustrações feitas à mão por si, que me libertaram o espírito muito para além do que imaginara possível. Por agora é-me impossível sair de Bratislava, por isso parto apenas em espírito, para uma longa viagem de libertação. Para um país imaginário. E por agora apenas nas páginas deste livro. Bratislava recupera já dos escombros da guerra, mas o destroço que eu sou não me permite ficar. Por isso parto para longe, desde esta primeira página, enquanto posso.
Nina Simone, "Feelings", Montreux Jazz Festival 1976
Palavras, as mesmas
caindo como um reposteiro velho
(des)feitas de pó
eternamente em suspensão
que olhamos sem reconhecer.
Nesta genial interpretação de Feelings (um original de Albert Morris), Nina Simone supera-se. Num determinado trecho da composição, a intensidade vocal é imensa e sente-se a dor de quem canta, que se estende a quem foi levado a escrever uma letra assim, como a própria Nina sublinha no início da perfomance. Essa intensidade é em seguida esmagada por um solo de piano que apenas acentua o que antecede, previamente acompanhado por uma subtil, mas oportuna percussão. No final, a voz acaba por prevalecer, mas sempre coberta pelo piano, sentindo-se a violência dos sentimentos num momento de quase-grito-em-surdina, calado mesmo ao rasgar de um coração trespassado que nos atravessa enquanto ouvintes e espectadores. A ironia está em que, roubando o pesadelo retratado por Morris no original, Nina transforma-o numa interpretação de sonho.