[...] às primeiras horas da madrugada aproximou-se da cancela que delimitava ao acesso à linha do caminho-de-ferro. Ajeitou, como conseguiu, a gola do casaco enquanto aguardava a passagem da composição proveniente de Potsdam. Distinguiu os faróis da locomotiva primeiro varando penosamente a escuridão e a densidade cortante do ar frio que a temperatura de Fevereiro impunha, antes de perceber a silhueta dos vagões que a seguiam. Sentiu no corpo o ronco do motor, que se confundiu com o tremor que o percorreu, fruto do frio e do pânico que se esforçava por a custo domar dentro de si. Aproximou-se à passagem da composição. A linha arcaica e em mau estado obrigava a um vagaroso progresso e por vezes mesmo a uma paragem antes da entrada na gare de Friedrichstraße. Os flocos de neve que caíam, a humidade e o frio tornavam penoso o progresso e o próprio ato de respirar. Ardiam-lhe os pulmões e os olhos. Apertou as mãos dentro dos bolsos, enterrou a testa o mais que lhe foi possível no chapéu de feltro surrado pelo tempo e lançou-se evitando pensar que poderiam ser os últimos passos que dava na vida.
Evitou olhar na direção da gare, mas adivinhava o movimento dos guardas à aproximação da composição. Adivinhou o engatilhar das armas, julgou distinguir o ladrar dos cães, excitados pelo movimento do comboio e o quebrar da rotina da noite. Aspirou levemente uma golfada de ar frio e avançou à passagem da composição, procurando adaptar a vista ao bréu e aos chuviscos de neve. Alcançou instantes depois o último vagão imobilizado e distinguiu os guardas, uns que caminhavam em sentido contrário, outros verificando um a um os vagões agora detidos, mas não olhando na sua direção. O tempo deteve-se. A sua respiração deteve-se. O seu coração parou de bater enquanto julgou ver a eternidade quando o seu olhar inevitavelmente se cruzou com o de um dos guardas. O cão que o guarda trazia pela trela ladrou. Furiosamente. Por sorte, na direção da composição. Vários guardas acorreram ao local. As lanternas apontaram para a parte inferior de um dos vagões e ouviu-se o ruído de armas a serem aprontadas. Ainda sem respirar, Eric Sevlak continuou no seu passo, esperando pela ordem que impediria o seu progresso. Ouviu-a, mas sem se deter encolheu os ombros aguardando pelo momento em que sentiria os seus ossos a serem despedaçados por balas antes de cair à vista da fronteira para berlim Ocidental.
Nada. O tempo arrastou-se. E nada.
O guarda esqueceu-se por instante do rosto do homem que cruzara olhar consigo, antes de a sua atenção ser atraída pelo cão para debaixo de um dos vagões provenientes de Potsdam. Estava enregelado e com saudades de rever os seus familiares, que deixara numa aldeia nos arredores de Dresden havia mais de três anos de serviço ininterrupto. E agora desejava que de debaixo do vagão não saísse uma pobre alma a tentar passar para o ocidente a coberto da noite. Eram aos milhares os clandestinos e não raras os seus superiores vezes ordenavam que os fuzilassem sumariamente para poupar o incómodo de um interrogatório longo e moroso, alegando que haviam tentado fugir.
Um disparo. Outro. O ruído das vozes humanas, do latir dos cães e do disparo das armas fundiu-se com a escuridão da noite e um após outro os passos de Sevlak aproximaram-no da fronteira que aos poucos se tornou visível. O guarda federal pareceu surpreendido quando viu a sua silhueta e não teve de lhe pedir que se detivesse antes de atravessar a linha branca. Sevlak desfaleceu quando o seu pé direito transpôs pela primeira vez a fronteira ocidental, ou seja, no preciso instante em que, muito embora disso não se tenha apercebido, se tornou um homem sem passado e sem futuro.
1 comentário:
The past is never dead. It's not even past.
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