(Aqui, um excerto da versão original do filme preferido de João Bénard da Costa
23 de maio de 2009
7 de maio de 2009
Sobre o post anterior:
Imagine-se que Mozart, o jovem compositor, certo do seu sucesso e farto do jugo paternal, decide emancipar-se e destarte, por altura do seu vigésimo quinto aniversário, refugia-se em Viena, a capital. Imagine-se que essa mesma Viena, a magnífica capital do império, se encontra atravessada, varada, submersa por diversas culturas que ali fervilham. Menos de cinquenta anos antes, a cidade encontrava-se cercada pelos otomanos e resistira bravamente, marcando, com a ajuda do exército polaco, o princípio do declínio dos turcos. Evidentemente, a cidade vencedora não é estanque, nem imune à influência e às marcas que o invasor deixou nos arredores da capital. O comércio fervilha, os mercadores empreendem e, alcançada a paz, uma fervorosa troca de contactos com o oriente inicia-se e enraiza-se. As feiras, os mercados, as trocas intensificam-se e os mesmos espaços são partilhados tanto a oriente como a ocidente; as fronteiras são incertas e as religiões atravessam as regiões, as pessoas convivem mais ou menos pacífica e harmoniosamente, mesmo que os fiéis não se cruzem nas ruas geladas do inverno vienense.
A urbe possui templos católicos, ortodoxos, muçulmanos e judeus e na rua os pregadores atropelam-se na oração e na propalação da palavra de deus. De um deus, de um qualquer deus. N´importe qui, c´est dieu quand même.
Mozart apaixona-se pela pessoa errada, que não é outra senao a filha do seu senhorio vienense, alguém que não agrada a Leopold, a figura paterna. O amor chama, mas não triunfa imediatamente pela oposição paternal. Há a questão material e há uma emancipação não inteiramente conquistada, nem assegurada enquanto Leopold é vivo.
Mas o amor sucumbre a um pedido de casamento, adiado para um dia, mas é um pedido sério, dependente de uma emancipação futura. Uma promessa de espera que se manterá porque o jovem Wolfgang tem apenas 25 anos e tem de se afirmar na sociedade vienense, económica e pessoalmente. Entretanto, uma comissão para uma peça é-lhe proposta, um libretto em alemão, para quebrar a hegemonia italiana, frequentemente criticada pelo seu pobre texto, francamente em desequilíbrio face à qualidade musical que as peças evidenciavam. Eis pois a tentação de audaciosamente aproveitar excertos de composições menores que resvalam entre o fracasso e o fiasco, mas que dão origem a versões sucessivamente retocadas de Die Entführung aus dem Serail, uma peça clássica, totalmente dedicada ao amor de um jovem casal cujo happy end na versão final permitiu a consagração de Mozart, homenageada até pelo arcebispo com um encorajador nada mau. A peça é marcada pela influência turca, admissível tendo em conta um fraco império otomano que não mais constituiu uma ameaça para o império austro-húngaro, e apresenta-nos a magnanimidade de um senhor otomano que poupa a vida a um cristão quando este procura salvar a sua amada de um harém. Possivelmente o otomano representa a figura paterna de Leopold, algo que também pode ser visto na estátua no Don Giovanni.
A primeira das peças foi retratada até no odioso Amadeus de Milos Forman, mas mesmo ali é possível ver a influência oriental na música do compositor de Salzburgo. E tudo teria ficado por aqui, não fosse um certo Rondo alla Turca, onde o tema é retomado, mas há sobretudo a enigmática missa em Dó menor cujo sexto andamento, um Qui Tollis magnífico, quase divino, volta a apresentar o mesmo ritmo oriental, a despeito da religiosidade católica que o impregna. A explicação (uma mera especulação?) pode estar no facto de a missa em Dó menor poder ter sido dedicada a Constanze, a sua amada, e ter sido composta para ser representada aquando do casamento de Mozart com esta. No Qui Tollis parece ter sido recuperado um compasso oriental, o que é tanto mais estranho dado o carácter solene e religioso da composição, mas parece evidente uma subliminar batida de coração, ou o arfar de uma respiração própria das composições orientais, ao longo da peça, onde o ritmo é marcado quase ao balanço de um tempo por segundo, o que é algo de inédito e único (que eu saiba) na composição mozartiana, facto que não passou igualmente despercebido ao criticado Hugues de Courson no trabalho Mozart l'égyptien vol. 2 (2005).
O mais surpreendente, porventura a pedra de toque, reside no facto de uma grande parte do Qui Tollis voltar a estar presente no Kyrie da derradeira composição mozartiana, o Requiem com que encerra a sua carreira de compositor. Que sentido fará, pois, tudo isto? Evidentemente, podemos voltar ao princípio deste blog e dizer que a realidade é circular. Todavia, podemos tirar um significado mais profundo de tudo isto e chegar à conclusão que na música, na composição e na obra de Mozart, parafraseando Rabih Abou-Khalil, existe uma fascinante porta, uma brecha que permite a comunicação entre diversas culturas, afinal a maior porta que se ambiciona abrir, aquelaque separa o ocidente do oriente. Não estamos, pois, apenas perante uma influência, mas sim perante uma verdadeira troca cultural que pode perfeitamente ser recíproca, ou não fosse a Azan muçulmana coincidente nos seus desígnios com o Qui Tollis mozartiano.
Mais, o próprio tempo da entoação do cântico é compatível com a composição de Mozart. O Oriente encontra, pois, o Ocidente - suprema ironia - numa composição religiosa do maior compositor de todos os tempos.
Para finalizar, porque nada é inocente: experimente-se , no post anterior, depois de se ouvir individualmente cada uma das peças, colocar as três peças a tocar ao mesmo tempo, adaptando o volume de som, num rudimentar sampling de vozes (no nosso caso experimentámos misturar as três utilizando o Windows Movie Maker e o resultado foi espantoso) . Veja-se então o efeito e diga-se se no ponto exacto da mistura de vozes não se retira um sentido que, sendo pessoal e variando com a sensibilidade de cada um, não deixa de arrepiar. Sim, a realidade é, de facto, circular, acrescentaria apenas, no limite da sensibilidade de cada um.
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