Há dias, mais exactamente na segunda-feira passada, enquanto passeava o cão (na verdade é uma cadela, mas para o efeito é irrelevante), de casaco vestido (o facto de ter casaco vestido também é irrelevante), pensava para com os meus botões (e, de resto, o tal casco vestido não tem nenhum botão) sobre onde diabo teria eu a cabeça quando decidi adoptar um cão que me obriga a sair de casa para ir alçar a perna duas vezes por dia, que se diverte a babar o chão e a manifestar efusivamente a sua alegria de cada vez que acordo de manhã ou quando chego a casa ao final do dia. Embora a pergunta fosse de retórica, lá a fui repetindo de quando em vez, enquanto procurava uma faixa no leitor de música, ao mesmo tempo que me tornava num voyeur das abluções da minha quadrúpede companheira. Encontrada a faixa certa, ajeitei os fones e "stand up comedy" invade-me o inner space no exacto momento em que avisto uma fila de lagartas à beira do passeio. Páro por instantes, saltando em seguida por cima dos bichos com o cuidado de não os pisar ou perturbar a sua labuta e viro-lhes costas seguindo caminho... quando subitamente um arrepio me percorre friamente a espinha assim que me recordo que as lagartas não são assim tão irrelevantes se pensarmos que os cães, para além de um instinto e de um olfacto muito apurado, são igualmente as criaturas que melhor conhecem a Lei de Murphy. Desgraçadamente, descubro então que sou o feliz proprietário de um animal que conhece a famigerada lei ao detalhe pois, quando termino de me virar tão lentamente quanto posso constato imediatamente um pequeno hiato na fila de lagartas, prontamente confirmado pelo ar satisfeito da Blackie (considere-se o leitor apresentado ao cão que para efeitos desta crónica é indiferente que seja cadela). E assim, pela segunda vez nessa noite, volto a trocar ideias com os meus botões inexistentes no casaco irrelevante enquanto acelero pela 125 que já tevedias mais azuis fora, a tentar perceber que graça achará um cão (ou uma cadela) em provar o sabor de um cacho de lagartas do pinheiro às dez da noite. Nesta altura, no leitor já desfilava "cedars of Lebanon", o que até batia certo com o aspecto do focinho do animal, que então tinha mudado de raça, numa metamorfose notável que a levou a passar do típico aspecto bonacheirão de uma labrador para o de uma temível bull terrier. Se quisermos, mais realisticamente ainda, pense-se na imagem de uma daquelas respeitáveis senhoras cuja auto-estima se recarrega a seringas de botox cirurgicamente administradas aos sábados à tarde, em festas de solidariedade para com os seus egos, para termos uma imagem mais fiel do aspecto do animal.
Já no regresso, aliviado pelo facto de o bicho se ter safado sem grandes mazelas (pelo menos menores que as que tenho desde que me armei em Fabien Barrel ontem de manhã), decidi castigá-la (não sei se já referi que se trata de uma cadela, mas não é importante) com a Leninegrado de Shostakovich, mas o esgar de dor do animal, fez-me mudar de ideias e fiquei-me pelas Goldberg Variations porque, convenhamos, seis ou sete lagartas não deixam ninguém com apetite para os vinte e tal minutos do primeiro andamento da Leninegrado. Assim, tomei acessoriamente a decisão de até ao final da semana não mais querer saber de lagartas. Evidentemente, isso foi sem pensar que, depois dos cães, as segundas criaturas que melhor conhecem a Lei de Murphy são os jogadores do Sporting. Ponto final portanto, neste assunto de lagartos e lagartas.
Mas dizia, eis como um animal nos muda a vida e nos põe a conversar com os botões (o que apesar de tudo sempre é mais saudável que falar com o espelho, não se vá cair na tentação do botox) e a andar de havaianas e calcões pela rua de um recomendável bairro familiar, à noite, dando motivo aos vizinhos que se cruzam connosco a caminho do caixote do lixo, de nos perguntarem com o ar mais complacente, retoricamente é certo, enquanto nos conta os pelos das pernas ainda brancas "então lá vai passear o cãozinho, não é verdade?". Nessas alturas respondo (para com os meus botões evidentemente) "não, vou ali a uma festa botox no 89", mas evidentemente que mesmo que o dissesse sempre seria desmentido pela trela que ostento na mão e pelas Helly Hansen de onde sobressaem os dedos "white as snow" dos meus pés.
E porque um mal nunca vem só, como se não bastassem o vizinhos, a minha própria filha mais nova de vez em quando passou a perguntar-me "pai, porque é que agora usas chinelos?" o que, convenhamos, sempre é melhor que a mais velha que rindo me pergunta porque é que bebo sempre vinho às refeições. Tenho conseguido adiar a resposta porque desconfio que nenhuma delas se satisfaria com um "porque sim", por isso aproveito para desencaixar as Helly Hansen e encher o copo (de vinho) enquanto procuro uma repostas convincente, até para mim. Saúde. I'll Go Crazy If I Don't Go Crazy Tonight. À tua Blackie, morituri te salutant em Tripoli.
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PS: antes que me esqueça: tudo quanto acima se escreveu é tão perfeitamente irrelevante quanto o casaco que no episódio relatado este humilde escriba tinha vestido
2 comentários:
EOLH'
Goldbrown upon the sated flood
The rockvine clusters lift and sway;
Vast wings above the lambent waters brood
Of sullen day.
A waste of waters ruthlessly
Sways and uplifts its weedy mane
Where brooding day stares down upon the sea
In dull disdain.
Uplift and sway, O golden vine,
Your clustered fruits to love's full flood,
Lambent and vast and ruthless as is thine
Incertitude!
Solução1: deixa o vinho
Solução 2: torna os passeios da Blackie à noite numa saída familiar (o tempo que se aproxima convida)
Solução 3: começa a beber whisky
Solução 4: arranja outro companheiro para a Blackie
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