No dia seguinte ao referendo que ditará a saída do Reino Unido da União Europeia, mas ainda longe do necessário rescaldo que se lhe seguirá, a Europa desperta para uma realidade nova com a qual pode ter uma grande dificuldade em lidar, assim como os próprio britânicos.
Ontem, imediatamente a seguir à publicação dos primeiros resultados, vários eurocépticos europeus clamaram por referendos nos seus próprios países, procurando cavalgar a onda do resultado do referendo britânico. Por outro lado, a demissão de Cameron (uma das poucas coisas sensatas no dia de ontem) permitiu perceber claramente que os próprios partidários do "leave" não têm ainda um plano para orientar a forma de saída da UE. Senão vejamos: Nigel Farage, do UKIP - com o qual os eleitores não se identificam e que apenas mantem um deputado em Westminster - clama por este referendo há 20 anos e nesses tempo não preparou um plano, nem se lhe conhece o pensamento para os anos que se seguem. Ainda há dias dizia que se o resultado do referendo fosse 52%-48% a favor do "remain", deveria haver novo referendo. Acertou no resultado, mas uma vez que foi ao contrário, não é de crer, pelo tom dos festejos, que seja capaz de demonstrar algum tipo de coerência.
Quanto a Boris Johnson, limitou-se a dizer que não existe pressa em invocar o artigo 50 do tratado de Lisboa, que corresponde ao despoletar formal do processo de saída. Não se percebe bem o que pretende, mas é evidente que não será esse o entendimento em Bruxelas, que agora exigirá uma rápida clarificação de Londres, não parecendo estar disposta a dar ao Reino Unido a hipótese de ganhar algum fôlego na sua Economia para os duros anos que se avizinham, porventura porque não se pode deixar passar a mensagem que a saída será fácil e indolor a fim de não haver encorajamento de outros casos.
Em Belfast e Edimburgo, onde o "remain" saiu claramente vitorioso (os escoceses votaram há dois anos a favor da permanência no Reino Unido com a promessa de Cameron que ficaria na União Europeia), soaram imediatamente as trombetas da secessão, sendo que no caso da Irlanda do Norte parece que nem há necessidade de referendar a saída do Reino Unido para haver uma união com a República da Irlanda. Paradoxalmente, o risco de secessão no Reino Unido (que deixaria de ser a quinta economia mais forte do mundo), pode ser o polo aglutinador da Europa ao abrigo dos princípios egoístas de "com o mal dos outros posso eu bem" ou " ainda bem que não sou eu".
Seja como for, o processo será longo. Raramente os tratados preveem cláusulas de desvinculação e normalmente apenas são previstas sanções para incumprimentos pontuais, mas raramente é descrito um processo de saída ou denúncia. É a aplicação pura da regra latina, velha como o Direito dos povos, do "pacta sunt servanda" (os contratos são para cumprir nos seus precisos termos).
O caso do Tratado de Lisboa não é uma exceção. O artigo 50 apenas trata da denúncia, mas não contém em si uma descrição do processo de saída de um estado-membro. Nem podia, porque a União Europeia é um bloco legal inteiro, que regula milhares de matérias e agora é necessário acordar quase relativamente a cada uma delas com o Reino Unido, partindo de um "quase zero". O próprio Reino Unido tem de legislar internamente em diversas matérias. E isso leva tempo, muito tempo. Donde, avisava ontem Donald Tusk, é imperioso que não se caia no risco do vazio legal que necessariamente existe e portanto é imensamente difícil escolher um caminho que seja rápido e ao mesmo tempo seguro, embora não seja evidentemente fácil que se consiga negociar a saída de um tratado ao mesmo tempo que se estabeleçam de imediato acordos e parcerias com a parte de que se pretende a separação ao mesmo tempo. A crispação pode não ser boa conselheira à mesa das negociações e ela existe.
E chegamos ao ponto fulcral: a crispação, que deve ser evitada a todo o custo. A União Europeia precisa do Reino Unido e este da União Europeia. Há mais a perder para ambos os lados que a ganhar com a separação e é preciso que o afastamento não seja grande nem duradouro. Não vale a pena criar grandes clivagens, nem fechar portas. Não é esse o espírito da Europa que está em construção. O regresso do Reino Unido deverá ser sempre algo a não descartar e a ver como positivo; e nessa medida deve ser semeado já o caminho desde o primeiro instante.
Cabe agora aos britânicos escolherem a via a seguir: a do corte radical e o trilhar de um caminho desde o "grau zero" ou uma longa e morosa negociação de novos acordos com a União Europeia? E essa decisão deve ser uma decisão do parlamento britânico, ou deve ser referendada? E nesse possível referendo deve ser feita nova consulta aos cidadão britânicos, posto que não foram informados de quais as opções de que dispunham para tomar uma decisão informada? São demasiadas questões a resolver e por isso é impossível que haja resposta no imediato.
Parece óbvio todavia que Londres acorda para uma dura realidade hoje, como comprova o facto de ontem, menos de 24 horas após o referendo já terem sido reunidas mais de 110.000 assinaturas clamando por um novo referendo (e bastariam 100.000 para o assunto ser levado a discussão parlamentar) e o hashtag #whathavewedone já ser um dos mais populares no Twitter.
Diga-se ainda que há apenas cem anos atrás, a rotura de um tratado por uma parte contratante despoletava quase imediatamente uma guerra entre estados. Hoje, felizmente, não parece ser assim e grande parte dessa segurança e paz vem sendo assegurada na Europa desde o Tratado de Roma. E essa deveria ser, por si só uma razão para a subsistência da união em detrimento da escolha da desagregação ao sabor dos ventos dos populismos e dos nacionalismos.
Com tantas incertezas, não parece que seja possível dizer já adeus ao Reino Unido, mas apenas até já. E numa Europa verdadeiramente multicultural, até será possível responder-se, sem complexos, Insha'Allah.
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